Texto: Marcos Anubis
Fotos: Zeca Milléo




Curitiba é uma cidade única no cenário musical brasileiro. Porém, essa realidade não foi construída apenas por boas bandas, que são a matéria-prima para que qualquer cenário se estabeleça. A capital paranaense também é diferente de outros centros no país porque nunca celebrou o sucesso nacional de um filho da terra. Mesmo assim, Curitiba possui uma cena forte e estabelecida com uma pequena, mas essencial diferença: na terra dos pinheirais, ser underground é a grande característica.

Com a intenção de mostrar essa cena ao grande público, um projeto capitaneado pelo advogado e músico Fabiano Neves vem fazendo um resgate histórico desse cenário tão rico e, ao mesmo tempo, tão obscuro, mesmo para os curitibanos.

Neste domingo (22), na Cinemateca, acontece a estreia do “segundo passo” do projeto, o documentário “Uma Fina Camada de Gelo”. Com direção do cineasta Vinicius “Tchê” Ferreira e produção executiva de Fabiano Neves, o filme busca, justamente, resgatar as histórias que cercam esse cenário.

O projeto começou a nascer em 2012, em uma conversa entre Fabiano e o também advogado e músico Eduardo Mercer. “Nós estávamos falando sobre as bandas, os shows e as rádios daquela época e percebemos que algumas histórias foram contadas, mas existem inúmeras ainda por contar”, conta Fabiano.

A partir daí, teve início o processo de produção tanto do livro quanto do documentário. Cinco anos depois, em 2017, foi lançado o primeiro fruto dessa iniciativa, o livro “Uma Fina Camada de Gelo – O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba”, escrito por Eduardo Mercer. “Nós, que vivemos aquela época, sabemos que foi muito forte, pois envolveu inúmeras pessoas com o sonho, o trabalho e o empreendedorismo de muitos músicos. Principalmente do J.R. e de todas as bandas”, diz Fabiano.

Paralelamente ao lançamento do livro, na produção do documentário, começavam a surgir algumas adequações durante o processo. Inicialmente, Fabiano sugeriu que o filme abordasse a cena rock curitibana dos anos 1980/90. “Eu não conhecia esse cenário, então, fui descobrindo durante as pesquisas e entrevistas”, conta Vinicius “Tchê” Ferreira.

Vinicius é gaúcho, mas está radicado há dez anos em Curitiba. No processo de pesquisa para o filme, ao ter contato com esse material, o diretor começou a descobrir uma característica que sempre esteve bem presente na cena curitibana. “Eu notei que eram bem pra baixo. Então, na primeira montagem do documentário, eu não cheguei a um filme satisfatório”, explica. “Ao conhecer essas histórias, a gente vê que elas se repetem”, complementa.

Nesse processo de pesquisa de imagens e vídeos, Vinicius teve o auxílio do pesquisador Manoel Neto por meio do acervo do Museu do Som Independente (Musin).

Na sequência, surgiu a ideia de retroceder um pouco mais, até os anos 1970 e, depois, seguir até os anos 2000. Nenhum desses caminhos agradou completamente os idealizadores, então, uma decisão ficou clara para todos os envolvidos: era preciso mudar o rumo.

A solução encontrada foi abordar a música curitibana de forma mais ampla. Dessa maneira, o documentário apresenta personagens que são os alicerces dessa cena, entre eles, o guitarrista do Blindagem, Paulinho Teixeira, e também nomes mais recentes, caso do compositor Leo Fressato.




Mão na massa

Por meio de depoimentos de personagens importantes que ajudaram a construir a cena musical curitibana, o documentário procura criar um quadro desse cenário nas últimas décadas. Entre as entrevistas, algumas são bem marcantes. É o caso da participação do músico e criador do bar 92 Graus, J.R. Ferreira. Um das cenas mais emblemáticas do filme mostra, justamente, o antigo porão do 92 Graus. Ao descer as velhas escadas do local, J.R. revive algumas histórias que fazem parte da vida de todos que frequentaram o 92, naquela época.

Outra fala interessante é a do músico e compositor Rodrigão Barros del Rei (Beijo AA Força, Maxixe Machine). Usando toda a sua experiência de mais de 30 anos tocando em bandas curitibanas, ele faz uma análise dos erros que se repetem dentro desse cenário.

O projeto também procura destacar uma maneira de encarar a música que era uma característica muito forte nas primeiras gerações da cena curitibana. “Quem teve banda nos anos 1970, 80 e 90 sabe que isso era um projeto de vida. Eram sonhos que envolviam muita dedicação e também muita festa e diversão”, opina Fabiano.

Esse resgate histórico, que é o grande fio condutor do projeto, também acabou revelando algumas nuances muito próprias da música curitibana. “Curitiba não teve o histórico de outras cidades, como Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre. Curitiba abafou tudo isso durante muito tempo, até porque nenhuma banda conseguiu alcançar o sonho de uma forma mais ampla. Hoje, como os tempos são outros, as coisas são mais fáceis porque a tecnologia facilita o acesso à informação”, diz Fabiano.

De certa forma, o projeto “Uma Fina Camada de Gelo” reafirma a máxima punk “faça você mesmo”, que norteia a música curitibana desde os seus primórdios. “É melhor conhecer o passado para compreender o presente e construir um futuro melhor”, diz Fabiano. “Curitiba precisa desse legado cultural, roqueiro, ativista político, que existia antigamente e, talvez, esteja se perdendo”, complementa.

Fabiano Neves, que também é percussionista da banda curitibana Sr. Banana, é o grande mentor do projeto, no sentido de levantar essas questões e buscar parceiros para retratá-las em texto e vídeo. “Eu sou um empreendedor, um entusiasta. Eu ajudei o Eduardo e o Vinicius no sentido de motivá-los e criar condições mínimas para que esses dois artistas produzissem os trabalhos deles. Eu ajudei com poucos recursos e, talvez, muito mais com metodologia, planejamento, organização e incentivo. Nós estávamos sempre conversando, estipulando um prazo para as coisas e eu acho foi por aí que a gente conseguiu realizar”, explica Fabiano.

Na prática, o projeto “Uma Fina Camada de Gelo” gerou um livro de mais de 600 páginas e, agora, um filme de aproximadamente uma hora de duração. Tudo materializado de forma corajosa e sem muitos recursos. “Só deu certo porque a história é boa, senão não daria. Se o livro e o documentário não fossem bons, não daria certo. A matéria-prima é formidável”, diz Fabiano. “O mais importante é que venham novas bandas e artistas e Curitiba compreenda que possui uma grande atividade cultural que não pode ser negada e nem renegada”, diz Fabiano.

Histórias e contextos

Obviamente, como é natural em qualquer projeto desta magnitude, nem tudo correu de forma tranquila na produção do documentário. Alguns personagens, por exemplo,  inicialmente demonstraram receio em compartilhar a sua vivência na cena. “Alguns foram meio resistentes porque não me conheciam. Já em outros, eu senti até certa mágoa, no sentido de não querer mais falar sobre esse assunto. Eu entendi e respeitei”, conta Vinicius.

Nos casos mais complicados, a solução encontrada para chegar a essas pessoas foi contar com a ajuda de outros integrantes da cena. “Alguns personagens que eu considerava essenciais não me deram atenção, então, eu busquei outros meios para conseguir. Por exemplo, eu falei com algumas pessoas que já entrevistaram ou eram amigos desses personagens para que, dessa forma, eles ficassem mais à vontade para conceder as entrevistas”, revela.

Além de todo o trabalho em si na construção das histórias do documentário, o processo de produção do filme também rendeu momentos marcantes para o próprio Vinicius. “Eu gravei três entrevistas com o Paulo Teixeira, por exemplo. Com o Fabio Elias foram duas e a última, que foi o depoimento mais simples e sincero, foi a que acabou entrando no documentário”, conta.

Aliás, quem acompanha a cena curitibana vai entender o contexto do cenário escolhido para o depoimento de Fabio Elias. “Embora a gente não toque nesse assunto no filme, o próprio fato de ter gravado o depoimento dentro de um carro tem uma simbologia, pois o Fabio perdeu um grande amigo em um acidente de carro”, explica Vinicius.

Outra entrevista carregada de significados é a do compositor Leo Fressato. “Ele costumava encontrar o ex-namorado na escadaria aonde eu gravei o depoimento. Foi para ele que o Leo compôs a música ‘Oração’. São coisas que vão sendo construídas com a intenção de buscar as melhores cenas e que, de repente, tocam mais quem está dentro da história. Eu acredito que os depoimentos mais sinceros, que mostram um lado bem íntimo dos personagens, foram os que acabaram entrando no documentário”, explica.

O futuro do projeto “Uma Fina Camada de Gelo” ainda não foi definido. Existem várias ideias, entre elas, a de criar um canal no YouTube ou um programa de rádio. Mesmo que não tenha continuidade, o que é improvável, o que foi produzido até o momento é essencial para que o público curitibano conheça e entenda que Curitiba tem uma cena musical riquíssima e que precisa ser valorizada. “Nós vamos fazer um balanço do filme e aí decidiremos. O importante é o que foi feito e eu tenho certeza de que foi muito bem feito”, finaliza Fabiano.

A estreia do documentário acontece hoje na Cinemateca em duas sessões: às 16h e às 16h15. A entrada é gratuita, por ordem de chegada. A capacidade do local é limitada (104 lugares) e a classificação etária é livre. A Cinemateca de Curitiba fica na Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174, no São Francisco.

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