Texto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira
Fotos: Felipe Diniz

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Gangrena Gasosa: Ge Vasconcelos (percussão), Jorge Allen (vocal), Heitor Peralles (percussão), Angelo Arede (vocal), Minoru Murakami (guitarra), Diego Padilha (baixo) e Renzo Borges (bateria)

Poucos artistas no mundo podem se orgulhar de terem criado um estilo ou, mais ainda, de serem o único representante de um gênero musical. No Brasil, existe uma banda chamada Gangrena Gasosa que se encaixa com orgulho nesses dois seletos grupos.

Unindo o peso do Heavy Metal ao folclore brasileiro, o grupo carioca criou o Saravá Metal. A ideia, em teoria, é simples: por que falar de longínquos deuses nórdicos se no Brasil existem inúmeros personagens interessantes, como o Preto Velho, a Pomba Gira e o Exu?

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Angelo Arede, o “Zé Pilintra”

O novo álbum e a campanha de financiamento coletivo

Agora, cinco anos após seu último trabalho, a banda está prestes a lançar um novo álbum. Para viabilizar o CD “Gente Ruim só Manda Lembrança pra Quem Não Presta”, eles apostaram em um financiamento coletivo na plataforma digital Embolacha. “Faz algum tempo que nós somos xingados na internet por causa da demora para lançar um disco novo. Depois de um tempo tentando viabilizar uma gravação decente, mas sem dinheiro na parada, chegamos a conclusão que os donos dos estúdios têm família para sustentar e a gente que é duro mesmo”, conta o vocalista da Gangrena, Angelo Arede.

A formação do grupo ainda conta com Ge Vasconcelos e Heitor Peralles (percussão), Minoru Murakami (guitarra), Renzo Borges (bateria), Jorge Allen (vocal) e Diego Padilha (baixo).

Cada um deles encarna um personagem do Candomblé: Ge é a Pomba Gira Maria Mulambo, Minoru é o Exu Caveira, Angelo é o Zé Pelintra, Renzo é o Exu Mirim, Jorge é o Omulu, Heitor é o Caboclo Sete Flechas e Diego é o Tranca Rua da Almas.

Em seus 26 anos de carreira, a Gangrena lançou apenas três álbuns de estúdio: “Welcome to Terreiro” (1993), “Smells Like a Tenda Spirita” (1999) e “Se Deus é 10 Satanás é 666” (2013). Foi o suficiente para criar uma aura cult que acompanha a banda até hoje.

O crowdfunding do novo álbum teve início no dia 21 de outubro e vai até o dia 20 de janeiro. Até o momento, ele alcançou 30% (R$ 9 mil) da meta pretendida (R$ 30 mil). “Nada mais justo do que pedirmos a ajuda dos seguidores do Saravá Metal para produzir um disco que seja útil na hora de atochar o volume máximo para azucrinar os vizinhos”, diz.

Qualquer pessoa pode ser parceira do projeto, basta acessar este link e escolher uma das opções de contribuição. Existem várias recompensas. Os valores vão de R$ 20 (permite o download antecipado das músicas do CD) a R$ 2 mil (dá direito a um pocket show). “Com as ​modificações na forma de produzir e de consumir música, o crowdfunding é uma alternativa muito boa porque dá a chance de quem curte a banda ser o viabilizador direto do projeto. A pessoa fica eternizada na ficha técnica e incentiva a banda a ter um material promocional mais elaborado para poder dar recompensas bacanas”, esclarece.

Além dessas recompensas, existem outras opções para quem quiser contribuir com o lançamento do álbum. “Estamos disponibilizando a oportunidade de fazer uma tatuagem do mascote da banda ou a visita a um ensaio para tomar uns gorós com a gente, ouvindo o disco novo antes de todo mundo. Também temos os crânios esculpidos por nosso Omulu, o Jorge Allen. Eles são feitos em tamanho real com o ponto da Gangrena entalhado na testa”, conta.

Na opinião de Angelo, uma dessas premiações é ainda mais especial. “A que eu curto mais é a possibilidade de o fã cantar nos pontos de Exu que vamos gravar, inclusive o nosso inédito ponto de abertura. Há também  uma capa de CD especial, feita de carne costurada com o nosso ponto riscado feito em látex, que só vai existir para quem contribuiu com a campanha. Depois, nós não vamos mais produzir essas premiações. O objetivo é que elas sejam exclusivas para quem chegou junto no projeto com a gente”, afirma.

Entre as faixas do novo álbum, estão: “Encosto”, “Terno do Zé”, “Vem nariz”, Carnossauro diet”, “O saci”, “Se liga doidão”, “Gente ruim só manda lembrança pra quem não presta”, “Fiscal de cu”, “Farda preta de caveira” e “Game of bicho”.

Histórias e lendas

A Gangrena é uma das bandas brasileiras que mais acumula lendas e histórias em sua carreira. Muitos desses “mitos” foram criados pelos próprios fãs nas marcantes apresentações do grupo. “A relação sempre foi de extremos. Não tem meio termo. Ou é pura tensão ou pura diversão”, diz.

Em alguns casos, essa relação de amor e ódio cria ainda mais subsídios para a já folclórica biografia da banda. Foi o que aconteceu em um show da Gangrena em 2009, no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. “Um fã pegou umas velas do nosso despacho e foi lançar uma decoração alternativa em casa. Deixou a vela lamber a cortina e depois a casa toda. No show seguinte por lá, alguém levou uma galinha viva e disse pra matarmos no palco. Obviamente, ignoramos a dica e ela ficou vagando a noite toda pelo camarim. No final do show ela virou o bicho de estimação de outro fã, pelo menos até a hora da canja”, conta.

“Desagradável”

Em 2014, a Gangrena lançou o documentário “Desagradável” que conta toda a história da banda. Produzido por Fernando Rick da BlackVomit, o filme soube retratar de forma muito fiel a realidade do grupo. “A repercussão foi sensacional! Além de abrir várias portas, ele situou muita coisa que carecia de registro da antiga cena rock do Rio de Janeiro. Foi importante também para esclarecer em definitivo todas as lendas urbanas que cercavam a banda no passado para poder apontar para o futuro”, diz.

A produção do DVD esteve cercada de dificuldades, inclusive com mudanças na formação do grupo pouco antes do show que seria gravado no Inferno Club, em São Paulo. “A produção foi bem louca! Fizemos um crowdfunding para o DVD que, a princípio, pensamos que seria somente do show. No final das contas, a coisa cresceu de uma forma que os depoimentos não podiam ser somente extras de um DVD e ele se transformou em um longa. Já o show não foi exatamente o que esperávamos porque dois integrantes antigos nos deixaram na mão poucos meses antes da gravação”, conta.

Durante a gravação do show, algumas surpresas que haviam sido preparadas não saíram como o planejado. “Na encenação do Satanás no final do show, quando o Omulu retira aquele feto podre, deveria rolar uma chuva gigantesca de sangue jorrando da cadeira. Mas vagabundo foi fazendo tudo fora de ordem, saiu tudo de sincronia. E eu, tentando ajeitar as coisas, acabei perdendo o timing e não apertei os botões de jorrar o sangue porque ficaria fora do momento, do contexto. Passei uns quatro meses tendo o pesadelo recorrente daquele momento acontecendo e me fazendo perder alguma coisa importante por não apertar os botões”, relembra. “Sem contar o trabalhão da porra que o Kapel Furman teve para viabilizar aqueles dois extintores enormes cheios de sangue que nem foram usados. Mó vacilo, que micão!”, complementa.

Mesmo com todas essas dificuldades, o documentário se tornou um registro que poucas bandas no país possuem. “Apesar disso tudo, eu curto aquele show pra caramba! O trabalho de cenografia e de direção de imagens ficou incrível. Mas prometo que nosso próximo DVD vai ter banho de sangue, nem que seja só em mim com um chuveirinho!”, diz.

Mas os fatos inusitados não acabaram após o show. Em função dos atrasos no dia da gravação, a banda acabou levando a culpa por algo que não fez. “Ficamos com fama de marrentos porque a casa teria uma balada imediatamente depois do show. Até aí Inês é morta. O problema é que nos entregaram a casa bem depois do combinado. Tudo atrasou e, no final do show, foram expulsando todo o público a toque de caixa. A galera ficou revoltada porque achou que tivemos algo com isso. Quando saímos do camarim vimos a casa vazia e perguntamos: ‘Caralho, cadê todo mundo?’. Se não for com emoção, não é Gangrena Gasosa, maluco!”, afirma.

Saravá para gringo ver

Um dos momentos curiosos do documentário retrata a excursão que a banda fez pela Europa, em 2001. Foram 28 shows na Alemanha e na Áustria. A turnê se chamou “Explicit Grossness Tour” e as performances da Gangrena nitidamente chamaram muito a atenção do público. Porém, na volta para o Brasil, a maioria dos integrantes parece ter se frustrado com a realidade que as bandas brasileiras de Rock/Metal precisam enfrentar na “terra do samba”.

Depois dessa turnê, eles não voltaram mais a se apresentar fora do país. A oportunidade quase surgiu durante a época de lançamento do documentário “Desagradável”, mas acabou não acontecendo. “Quando o Jello Biafra esteve no Brasil em 2012, ele quis ver um ensaio nosso por ter gostado muito do som e disse ter uns planos. Tínhamos ficado sem um dos integrantes um pouco antes e tentamos marcar um ensaio com um substituto, mas não rolou. Se estivéssemos com a formação atual naquela época teria rolado uma puta turnê, certamente. Se em 2001, com bem menos percussão nas músicas, vagabundo já pirou no chucrute, imagine agora”, conta.

Percussão

Apesar de ser a sua maior característica, estranhamente, a Gangrena demorou para fazer com que a percussão se tornasse um elemento que se destacasse em seu som. Ela sempre esteve ali, mas antes era uma coisa mais sutil.

Inclusive, no documentário “Desagradável”, o ex-vocalista do Dead Kennedys, Jello Biafra, demonstra ter essa mesma percepção.

A ideia de que era essencial ter a percussão na linha de frente da banda aconteceu quando eles estavam gravando o álbum “Se Deus é 10 Satanás é 666”, em 2013. “Sempre me incomodou pra caramba ter uma coisa ou outra de percussão, só compondo poucas partes de algumas músicas. A minha ficha foi cair completamente, mesmo, depois do tempo em que o Anjo Caldas esteve conosco, no processo de composição do último álbum”, conta.

Anjo tocava no Catapulta e, atualmente, faz parte da banda da cantora Elba Ramalho. “Ele é um percussionista monstro que acompanha os maiores nomes da música brasileira e teve papel determinante até para o nosso retorno, em 2004, depois de dois anos de inatividade”, elogia.

A participação de Anjo Caldas na gravação do álbum mudou definitivamente a maneira de pensar da Gangrena. “Foi incrível conviver com ele e aprender um monte de coisas desse universo dos ritmos percussivos brasileiros que, apesar da faca e do queijo na mão, visitávamos pouco até então. A partir daí, a percussão passou a ter papel de destaque definitivo na nossa música. Hoje em dia não são canções com pedaços de percussão, são essencialmente percussivas”, complementa.

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Saravá Metal em Curitiba

No ano 2000, a Gangrena fez um show em Curitiba que ficou marcado na memória da banda. Ele aconteceu no 92 Graus e, como não poderia deixar de ser, nada transcorreu como o planejado. “O show foi do caralho! A merda foi no final. O contratante do show simplesmente sumiu do mapa, não pagou a gente e nem deu as passagens de volta. Acabamos indo onde o cara morava, foi uma confusão do caralho”, relembra. “Eu lembro que tivemos que repetir uma porrada de músicas porque não deixavam a gente ir embora. A reação do público foi sensacional, mas tudo, exceto o show, foi um maldito pesadelo”, complementa.

Mas os problemas não acabaram por aí. A volta para o Rio de janeiro também ficou na memória dos integrantes da Gangrena por um motivo bem inusitado. “Na ida para rodoviária ainda colocaram um cara dentro do carro que ficava pagando de guia turístico. Realiza: aquele show com ‘trocentas’ bandas, o que faz você tocar com o dia quase raiando! Estávamos cheios de fome, duros que nem um cocô e estressados por termos ido atrás do contratante para arrancar as passagens de volta”, relembra.

O desfecho desse “causo” envolvendo a Gangrena não poderia ser outro. “O baterista estava com febre, fazia um frio da gota e estava lá o maluco no carro contando histórias de ponte, de praça, de estátua e, ainda por cima, com um sotaque castelhano fake. Nunca mais me esqueço dele falando ‘bueno si, bueno si’ até a hora que o mandamos gentilmente tomar no cu”, complementa.

A Gangrena Gasosa é uma das bandas mais batalhadoras do underground nacional. Afinal, o grupo se mantém vivo há 26 anos, enfrentando todo tipo de preconceito, da “ira” de “religiosos” até a falta de entendimento do mercado fonográfico brasileiro.

Mas como diz a letra de “Se Deus é 10 Satanás é 666”: “Você tem que se esforçar, mas o sacrifício vale a pena. O primeiro passo tu já deu comprando o disco da Gangrena”. Se não comprou, acesse o site do grupo, ouça as músicas no YouTube ou faça um despacho para que a banda toque na sua cidade.