Texto: Marcos Anubis
Fotos: Pri Oliveira, Rita de Jesus e Clostermann Antiques
Revisão: Pri Oliveira

O baterista dos Paralamas do Sucesso foi homenageado no Museu do Expedicionário, em Curitiba



2 de julho de 1944. Sem terem a real noção do que enfrentariam, os primeiros soldados brasileiros embarcam para a Europa para se juntar aos aliados. A missão, na verdade, era um gigantesco desafio: derrotar a poderosa máquina de guerra criada por Hitler.

Hoje, 73 anos depois, a luta dos brasileiros é outra: manter viva a história desses combatentes que arriscaram ou perderam as suas vidas na Segunda Guerra Mundial. Um dos maiores “soldados” nessa guerra é o baterista dos Paralamas do Sucesso, João Barone.

Nessa sexta-feira (29), ele foi homenageado no Museu do Expedicionário, em Curitiba, justamente por causa das batalhas que tem travado. O músico recebeu a Medalha Tenente Max Wolff Filho, honraria que é destinada a civis ou militares que tenham contribuído de alguma forma para divulgar a atuação dos ex-combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial.

A homenagem é mais do que merecida. Afinal, uma das grandes paixões de Barone é, justamente, a Segunda Guerra e a atuação brasileira no maior conflito que a humanidade já viu. Ele já escreveu dois livros sobre o assunto: “A Minha Segunda Guerra” (2009) e “1942: O Brasil e sua Guerra Quase Desconhecida” (2013). Barone também participou de dois documentários: “Um Brasileiro no Dia D”, exibido pelo History Channel, e “Redescobrindo a Segunda Guerra”, do National Geographic.



O interesse vem de família. O pai de Barone, João Lavor Reis e Silva, integrou o Regimento Sampaio, do Rio de Janeiro, o Primeiro Regimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Durante a sua infância e adolescência, as informações sobre a guerra chegaram até Barone por meio de outras pessoas de sua família. “Meu pai foi um dos 25 mil brasileiros que tiveram que ir para a guerra. As histórias que nós ouvíamos em casa eram recontadas por primos mais velhos. Na época em que ele voltou da guerra, nós não éramos nascidos, é claro. Foram os sobrinhos dele que ouviram todas aquelas histórias e viveram aquela mobilização do retorno dos heróis”, explica Barone.

Na verdade, não foi tão fácil conseguir fazer com que seu próprio pai contasse como foram os horrores vivenciados durante a guerra. “Demorou muito tempo para a gente ouvir alguma coisa dele, pessoalmente. As coisas que ele passou para a gente nunca foram glamourizando a guerra, nada disso. Meu pai não era militar. Ele era da reserva e teve que se apresentar. Foi um alistamento compulsório e ele, assim como muitos brasileiros, teve que comparecer ao quartel para ser treinado e ir para a guerra. Ele foi no segundo escalão que embarcou mais ou menos em setembro de 1944”, conta.

Pegos de surpresa

O governo brasileiro declarou guerra aos países do eixo (Alemanha, Itália e Japão) em agosto de 1942. O conflito já estava se desenrolando há três anos, mas o Brasil se mantinha neutro. Na realidade, o presidente Getúlio Vargas tinha construído uma forte relação comercial com a Alemanha e não achava prudente tomar partido no conflito.

Porém, como a pressão dos Estados Unidos aumentava cada vez mais, foi necessária uma mudança de postura. Além disso, entre 1941 e 1943, 33 navios brasileiros foram torpedeados por submarinos do eixo, matando cerca de 971 pessoas. Diante desse cenário, Vargas não teve outra saída a não ser se juntar aos aliados.

A promessa norte-americana era a de que o Brasil receberia dois “prêmios”: o primeiro era a construção de uma usina siderúrgica, que acabaria sendo a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.

O segundo era o compromisso de modernizar as Forças Armadas brasileiras. “A participação do Brasil na Segunda Guerra é um marco na nossa história. Foi o que garantiu o primeiro degrau na nossa industrialização, quando nós fechamos com os norte-americanos e ganhamos uma usina siderúrgica. O Brasil não tinha uma usina siderúrgica, não tínhamos como fazer aço em 1940! É interessante manter e fomentar essas discussões para conseguir engrossar esse nosso ‘caldo cultural’ e virar um país de verdade”, diz.

Em março de 1943, o Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, propôs a criação da força expedicionária. Vargas aceitou. Entretanto, formar uma tropa que pudesse lutar na linha de frente do conflito foi uma grande dificuldade. Em julho de 1943, três mil voluntários se apresentaram em uma convocação geral. Apenas metade foi considerada apta. Diante disso, o governo partiu para uma convocação compulsória. Obviamente, as pessoas que foram recrutadas eram cidadãos comuns e não possuíam treinamento militar.

No dia 2 de julho de 1944, o primeiro navio de brasileiros (que tinham recebido aproximadamente um mês de treinamento) foi enviado para a Itália. Entre esses soldados estavam 1.542 paranaenses. Desses, 28 morreram.

Na realidade, os pracinhas brasileiros foram praticamente jogados no covil dos lobos. Na prática, já na Itália, foram os norte-americanos que “ensinaram” os soldados da FEB a lutar e a manusear o armamento que seria usado nos combates. O pai de Barone foi um desses soldados que precisaram encarar essa dura realidade sem estar devidamente preparado para o que viria.

Apesar das dificuldades, ele acabou participando daquela que, provavelmente, foi a ação mais importante dos brasileiros na Segunda Guerra. “Quando chegou na Itália, ele ficou na intendência, que é mais ou menos a retaguarda. Lá por fevereiro de 1945, ele acabou participando de outros serviços e de patrulhas. Pelo que a gente soube, ele também participou do último ataque a Monte Castelo”, revela.

Entre as lembranças mais marcantes do período em batalha, o pai de Barone destacava a convivência diária com a morte. “A experiência que ele passou pra gente foi sempre ‘politicamente correta’. Que a guerra era muita destruição, muita gente sofrendo (mulheres, crianças e idosos) e que uma das lembranças mais fortes que ele tinha era a do ‘cheiro da morte’. Lá nos escombros onde eles passaram, naquelas pequenas comunidades onde aconteceram as escaramuças, tinha muita gente morta, ainda sem ter sido sepultada. Ele tinha essa lembrança mais terrível, justamente dos aromas, na qual a nossa memória é mais forte. Ele contava as coisas desse ponto de vista: que a guerra é uma coisa horrorosa e deve ser evitada”, relembra.



Um herói nascido em Curitiba

Barone se mostra um grande admirador do rico acervo do Museu do Expedicionário. E uma das mais interessantes histórias ressaltadas pelo baterista é a do piloto franco/brasileiro Pierre Henri Clostermann.

Alguns objetos do aviador estão expostos no museu e contam um pouco das suas façanhas. Mas o fato mais extraordiário sobre a vida de Clostermann não é de conhecimento do grande público. “Ele nasceu em Curitiba e tornou-se o maior ás da aviação francesa. Essa é uma história que dava um filme. A família dele era francesa e ele nasceu ‘acidentalmente’ em Curitiba”, explica.

O pai de Pierre, que era vice-cônsul da França no Rio de Janeiro, queria que o filho nascesse em seu país de origem. Sua esposa estava grávida de sete meses e, na época, o único meio de transporte disponível para ir até a Europa eram os barcos. Seu pai, então, conseguiu duas vagas no navio italiano Principessa Mafalda. Porém, a embarcação pegou fogo a aproximadamente 300 milhas do Porto de Santos, onde seria feito o embarque.

Como havia um ginecologista austríaco de muito renome em Curitiba, os pais de Pierre decidiram que era mais seguro que ele nascesse na capital paranaense. Clostermann viveu cerca de um ano e meio em Curitiba. “Ele aprendeu a voar no Brasil, em um aeroclube no Rio de Janeiro. Quando a guerra estourou, os pais dele o mandaram para os Estados Unidos para terminar os cursos de aeronáutica. Depois, ele foi servir nas esquadrilhas da França livre, que atuavam na Inglaterra já quando a guerra começou. Ele acabou servindo na Força Aérea Inglesa, que tinha esquadrilhas de várias nacionalidades”, explica.

Barone chegou a conhecer pessoalmente o aviador e conseguiu absorver um pouco da sua experiência na guerra. O encontro aconteceu quando o baterista foi para a França participar das comemorações dos 60 anos do desembarque na Normandia e gravar o documentário “Um Brasileiro no Dia D”.

O filme mostra um panorama muito interessante da guerra por meio de entrevistas com ex-combatentes. “Eu tive o privilégio de entrevistar o Pierre Clostermann em 2004, pouco antes de ele falecer e ele me falou uma coisa incrível. No prefácio de um dos livros que escreveu, ele diz que a guerra é um negócio onde os soldados têm que resolver os problemas que não são deles (risos). Então, eles se envolvem em uma encrenca sem tamanho porque outros caras resolveram fazer uma guerra. É uma ideia um pouco ingênua, porém, retrata bem o drama de todo mundo que é obrigado a pegar em armas para resolver uma situação que não foi ele quem criou”, diz.



Manter viva a história

Na visão de Barone, a grande “missão” dos museus que retratam as guerras ao redor do mundo é preservar a história. “A ideia é mostrar o que significou o sacrifício desses caras que foram para a guerra e ter a noção de que esses erros não acontecerão novamente. Que não vai haver outro holocausto, que não jogarão outra bomba atômica em cima de alguém ou que não vão perseguir ninguém por causa de religião ou raça”, diz.

O músico acredita que é primordial entender o que se desenrolou naquele conflito e, sobretudo, evitar que algo parecido volte a acontecer. “Nós temos que aprender com as lições do passado para não repetir os mesmos erros. Eu acho que esse é o grande legado que nós devemos a todo mundo, aos brasileiros, americanos e até mesmo aos alemães que lutaram no conflito. Ninguém queria morrer na guerra. Nós devemos esse respeito e, também, devemos pensar sobre isso para que nada parecido volte a acontecer”, complementa.

Valorizar os acontecimentos e os personagens que construíram a história se torna ainda mais importante em um país que parece não ter memória. “No Brasil, nós temos um problema muito sério com tradição, respeito e a valorização da nossa história. Nós temos uma lacuna, um vácuo enorme sobre isso. Nossas instituições são muito frágeis. É importante incentivar, valorizar os nossos acontecimentos históricos e gerar uma discussão sadia sobre o que aconteceu”, opina.

Hoje, existe quase uma tentativa de apagar certos acontecimentos que marcaram a história recente do Brasil. Poucas pessoas lutam para manter vivas essas memórias. Não é difícil, por exemplo, encontrar cidadãos brasileiros que não sabem ou não acreditam que o Brasil desempenhou um papel importante na Segunda Guerra, de acordo com as suas possibilidades. “Eu acho muito importante discutir se valeu ou não. Mas o importante é discutir porque o Brasil participou da Segunda Guerra e isso é uma verdade absoluta! Se nós fomos lá pagar um mico ou se voltamos como heróis, é importante discutir isso de uma forma saudável para formar um ‘caldo cultural’. Esse é um termo muito interessante que eu ouvi um dia desses. O caldo cultural não é só o samba e o futebol, o tango, o hambúrguer e o cachorro quente. O caldo cultural de um país é tudo que a gente tem e significa a nossa história. O Brasil precisa engrossar esse caldo”, afirma.

Manter esses assuntos em discussão também pode contribuir para que a sociedade evite certos erros recorrentes que insistem em se repetir. “É o caso da corrupção, que é endêmica no Brasil. Desde o dia em que o Imperador Dom João VI chegou aqui, deu mole, é corrupção. Todo mundo é amigo de alguém, todo mundo precisa pagar pra ter algum tipo de benefício. Isso acontece secularmente no Brasil. Então, é importante discutir isso”, afirma.

Barone é enfático na ideia de que a guerra não é um momento glorioso para ninguém por um simples motivo: ela sempre envolve milhares de mortes, muitas vezes, de pessoas civis. “Meu pai não queria ir para a guerra, assim como a maioria dos soldados que lutaram e morreram. Ninguém queria estar ali para morrer por uma causa. Todos queriam viver em paz e voltar para os seus entes queridos. A guerra é uma coisa dramática, terrível. A grande mensagem é antibélica. A gente vem aqui (no museu) e vê as medalhas, os capacetes e os uniformes, mas a ideia de tudo isso não é valorizar a guerra”, analisa.

Com seus companheiros do Paralamas do Sucesso, Herbert Viana (guitarra e vocal) e Bi Ribeiro (baixo), Barone já construiu 35 anos de uma trajetória repleta de sucessos. Agora, como escritor e pesquisador, ele também procura exercer a sua cidadania e transmitir um pouco desse sentimento para as novas gerações. “Eu costumo dizer que, no Brasil, existem muitos parafusos para apertar. Esse é apenas um deles, que eu escolhi porque tenho uma história pessoal (meu velho que foi para a guerra e tal). Nós precisamos fazer isso desse ponto de vista despretensioso”, diz.

Entre 50 e 80 milhões de pessoas perderam as vidas na Segunda Guerra Mundial. Entre elas, estavam 443 brasileiros. Evitar que todo esse sacrifício humano caia no esquecimento é uma das metas de João Barone. “Nós precisamos aprender com essas histórias e ajudar a sedimentar os nossos alicerces culturais como país e como nação. Ainda dá tempo de fazer isso!”, finaliza.

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