nei lisboa entrevista cwb live jornalista marcos anubis

Nei Lisboa, três décadas de poesia e boa música (Foto – Reprodução/Facebook Nei Lisboa)

 

“Venta. Ali se vê. Onde o arvoredo inventa um ballet. Enquanto invento aqui pra mim, um silêncio sem fim. Deixando a rima assim sem mágoas, sem nada”. Certamente você deve ter reconhecido esses versos e sua memória deve ter te levado para a década de 1980. Composta pelo gaúcho Nei Lisboa, “Telhados De Paris” retrata bem a aura poética de um dos últimos remanescentes do bom texto na música popular brasileira, fato raro no mundo fútil da indústria musical do século 21.

Há 30 anos, ligar o rádio e o sintonizar em sua estação preferida era quase uma garantia de que você ouviria uma fusão entre música e letra que te faria refletir sobre algum assunto, seja ele amor, política ou situações do cotidiano. Nei Lisboa, um dos artistas sobreviventes desse período, concedeu uma entrevista exclusiva ao jornalista Marcos Anubis, do Cwb Live, falando sobre poesia, música e as suas três décadas de estrada.

 

O texto e a mensagem

 

Nei demonstra uma preocupação muito grande com as letras de suas canções. Diferente da esmagadora maioria dos artistas nacionais, atualmente, ele procura trabalhar os textos de suas músicas e considera crucial passar uma mensagem aos seus ouvintes. “A música brasileira tem uma tradição de grandes letristas e de atribuir valor ao discurso da música popular, a qual eu gosto de pensar que honro. Dedico muito suor na composição para que as palavras possam ser saboreadas longamente, com seus vários e largos sentidos”, conta.

Partindo desse princípio, Nei compôs canções que expressam a sua visão do mundo e sua relação com o que o cerca. Uma das grandes pérolas de seu repertório é justamente “Telhados de Paris” do álbum “Hein?!” (1988). E diferente do que a maioria das pessoas acredita, a canção não se refere à capital francesa. “É a história de uma janela para o bairro Menino Deus, de estar em casa no outono, compondo, e visivelmente apaixonado também. Foi feita em 1988 em um apartamento onde eu morava na época aqui em Porto Alegre, e naquele momento eu nem sequer conhecia Paris”, explica.

 

A força da música gaúcha

 

A cena musical gaúcha é considerada uma das mais fortes do país. A lista de bandas e artistas oriundos das cidades do Rio Grande do Sul e que conseguiram destaque no Brasil, em maior ou menor escala, é enorme. Defalla, Engenheiros do Hawaii, Cachorro Grande e Nenhum de Nós são alguns desses exemplos. “Há uma ‘extremidade’ geográfica e cultural no jeito de ser daqui que constrói de fato um coletivo, mas creio que não é tão estruturado quanto se possa pensar”, analisa Nei.

Fora do eixo Rio-São Paulo, ou “longe demais das capitais” como canta Humberto Gessinger na música e álbum homônimos, a cena musical gaúcha talvez tenha sido a que mais conseguiu se destacar. Esse cenário, muito diferente do que acontece em Curitiba, por exemplo, onde o apoio aos artistas autorais praticamente inexiste, foi construído aos poucos. “Tudo acontece muito por insistência dos artistas e cumplicidade do público, com apoios bem pontuais. E em termos de espaços, de teatros e sua manutenção, por exemplo, a situação é até bastante crítica”, complementa.

 

As mudanças

 

Em 2013 o álbum “Pra Viajar No Cosmos Não Precisa Gasolina” completou 30 anos de seu lançamento. Nesse período, o Brasil e o mundo foram expostos a dezenas de modas passageiras, aos artistas de ocasião que lançam uma música qualquer, fazem um sucesso estrondoso e depois somem com a mesma rapidez com que surgiram. São poucos os que conseguem construir uma trajetória de mais de três décadas e continuam produzindo boas canções. Na avaliação de Nei, a evolução de seu trabalho aconteceu naturalmente. “Claro que, em tanto tempo, muita coisa mudou, mas não persigo nenhuma linha evolutiva. Simplesmente envelheço, para o bem e para o mal. E gosto disso. Não ambiciono ‘renovar’ meu público ou aderir ao Botox. Faço o que faço, há trinta anos, sem planejar muito, e vai seguir assim se possível por mais trinta”, diz.

No mercado fonográfico essas mudanças também aconteceram, principalmente em relação às gravadoras. E um dos maiores agentes dessa revolução é a internet, que tem possibilitado uma nova relação entre artistas e público. “O mercado musical continua sendo uma selva capitalista, como sempre e como todos os outros mercados. Mas as redes virtuais, ao menos temporariamente, têm criado instâncias de espontaneidade onde as coisas acontecem às vezes por fora e apesar do mercado. Que bom se isso durar, mas não devemos nunca subestimar o poder do sistema de engolir nossos sonhos”, afirma Nei.

Ninguém fica alheio a esse novo cenário. Saber usar e conviver com a rede mundial de computadores é essencial para os artistas, nessa nova concepção de mercado musical. “Pois é, tem ajudado muito e não há quem possa se situar totalmente fora dela nesse momento”, diz.

 

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Além de compositor e músico, Nei também é escritor (Foto – Reprodução/Facebook Nei Lisboa)

 

Arte em outras frentes

 

Além de seu trabalho como compositor e músico, Nei também tem dois livros lançados: “Um Morto Pula A Janela” (1991) e “É Foch!” (2007). Algumas canções do compositor gaúcho também foram usadas em trilhas de filmes, como “Pra Te Lembrar” que foi regravada por Caetano Veloso para o filme “Meu Tio Matou Um Cara” (2004), do diretor Jorge Furtado. “Na verdade eu tive várias canções minhas e interpretações utilizadas em trilhas de filmes, mas nunca fui responsável por uma trilha ou direção musical. Acho instigante essa ideia de compor e arranjar a partir de um roteiro, mas nunca fiz. Quem sabe ainda me animo”, explica.

 

O novo disco

 

O mais recente álbum de Nei Lisboa, “A Vida Inteira” (2013), foi lançado por meio de um financiamento coletivo chamado crowdfunding. Nele, os fãs contribuem com quantias pré-determinadas e recebem em primeira mão o disco e os brindes envolvidos no projeto. O músico gaúcho acredita que esse processo é uma das saídas para que os artistas brasileiros lancem os seus trabalhos. “É um dos caminhos, e muito interessante. Por definição, você já sai de um crowdfunding com uma relação estabelecida e um trabalho distribuído para o público, mesmo que não tenha entrado em estúdio ainda. O processo todo pode ser bastante cansativo, mas é também recompensante”, afirma.

Certamente muitos fãs que contribuíram para o crowdfunding são curitibanos. Nei Lisboa tem muitos fãs em Curitiba, desde a década de 1980 quando “Telhados De Paris” e “Carecas Da Jamaica” faziam parte da programação da extinta rádio Estação Primeira. E essa herança, ao que parece, continua. “Curto muito a cidade e o público é muito gentil. Espero voltar até o fim do ano. Já estou com saudades”, elogia.

E meio a tanta música descartável sendo produzida e imposta ao público por boa parte da mídia, sempre é bom saber que artistas que não seguem por esse caminho nefasto ainda estão produzindo, interessados em levar a sua arte ao que tem ouvidos para ouvir. “Estou focado na música, trabalhando o disco novo e com outros planos musicais para o futuro”, finaliza Nei.

Ouça as canções “A Vida Inteira” , do mais recente álbum de Nei, “Telhados De Paris”  e “E A Revolução”.