Texto: Marcos Anubis
Tradução e revisão: Pri Oliveira
Fotos: Panos Georgiou, Michael Lavine e Frey Ranaldo

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A guitarra é historicamente o principal instrumento do Rock ‘n’ Roll. É ela que simboliza toda a agressividade e a inconformidade do estilo. E por estar sempre em evidência, são poucos os guitarristas que conseguem criar uma forma de tocar e se destacam em meio a tantos instrumentistas.

Lee Ranaldo, ex-Sonic Youth, é um desses músicos especiais. Sua forma de usar a guitarra como algo que possa tanto “acariciar” quanto “ferir” é única. “Provavelmente cada guitarrista que eu já ouvi me influenciou de alguma forma, tanto os famosos quanto os desconhecidos. A guitarra é uma ferramenta, para ser usada como um martelo. É para ser utilizado sem preciosidade, para atingir um ponto final”, explica Lee.

No Sonic Youth, e agora em sua carreira solo, Lee compôs inúmeras canções que retratam bem essa afirmação. “Eu gosto de tocar músicas na guitarra, e eu gosto de usá-la como uma ferramenta produtora de barulho. Ambos, pra mim, são gestos válidos para a nossa idade”, diz.

Os primeiros passos e as influências

A guitarra começou a fazer parte da vida de Lee quando ele tinha treze anos. Aos poucos o interesse pelo instrumento foi crescendo e ele foi conhecendo músicos que o influenciaram na construção do seu estilo pessoal. “Eu acho que a ‘radicalização’ da minha maneira de tocar guitarra surgiu quando eu estava me mudando para Nova York e vendo músicos como Glenn Branca, Rhys Chatham, Lydia Lunch, Rudolph Grey e Tom Verlaine fazendo coisas extraordinárias com aquele instrumento. Foi inspirador”, relembra.

O contato inicial com esses instrumentistas acabou sendo fundamental na sua concepção de como usar a guitarra dentro de suas composições. “Na primeira vez em que eu ouvi os sons do ‘Rhys Guitar Trio’ tocando ao vivo no Max, uma nightclub no Kansas, eu senti que alguém havia soltado sons que eu gostaria de ouvir na minha cabeça para sempre. Depois de ouvir esses artistas, ficou claro que existiam novas formas de tocar esse instrumento e que havia um campo aberto à minha frente enquanto músico”, afirma.

Sonic Youth

O mundo conheceu o talento de Lee Ranaldo por meio de sua banda, o Sonic Youth. Durante seus 30 anos de vida, o grupo lançou álbuns emblemáticos, como “Sister” (1987), “Goo” (1990) e “Dirty” (1992), que quebraram as barreiras de qualquer estética musical pré-estabelecida.

O último show do Sonic Youth foi em novembro de 2011 no festival SWU, em Paulínia, interior de São Paulo. Ali se encerrava uma história de três décadas onde Lee Ranaldo e Thurston More (guitarras e vocais), Kim Gordon (baixo e vocal) e Steve Shelley (bateria) não só passaram pelo mundo da música: eles construíram um estilo.

Naquele 13 de novembro de 2011, não foi fácil para nenhum dos integrantes do Sonic Youth encarar a derradeira viagem com a banda. “Foi um dia estranho desde o início. Quando estávamos vindo para a América do Sul nós sabíamos que aqueles seriam os últimos shows que faríamos. Então havia uma estranha ‘finalidade’ que pairava sobre aqueles shows”, relembra Lee.

Mas, apesar de toda a carga emocional que pairava sobre si, o quarteto se esforçou para manter a concentração. Naquela chuvosa noite de novembro, “Teenage Riot” do álbum “Daydream Nation” (1988), colocou um ponto final na vida do Sonic Youth. “Nós tentamos fazê-los da mesma forma que sempre fizemos, e eu acho que na maior parte deles tivemos sucesso, mas não havia como escapar do fato de que era uma situação esquisita”, conta.

Um fato que chama a atenção é que a banda achava que o show seria na capital de São Paulo. Isso foi mais um ingrediente emocional que ajudou a compor aquela atmosfera de despedida. “Fomos informados de que o show seria em São Paulo, mas acabou sendo realizado em um local muito distante, no meio da chuva, em um local encharcado. Nós não sabíamos das outras bandas que estavam se apresentando, estava chovendo… A situação toda foi muito incomum”, conta.

As lembranças daquele dia, porém, ainda parecem pairar sobre o imaginário de Lee. “Enquanto estávamos no palco, era como sempre foi. Estávamos lá, vivendo o momento e imersos na música, mas assim que ele terminou nós sabíamos que tínhamos atravessado algum tipo de limite e que o futuro estava se aproximando rapidamente”, relembra.

Especula-se que um dos motivos que levou a banda a encerrar suas atividades foi a traição. Em uma entrevista dada à revista Elle em 2013, Kim Gordon revelou que seu marido, Thurston Moore, estava tendo um caso extraconjugal quando o Sonic Youth acabou. O casal, que estava junto há 27 anos, tentou resolver o “problema” até com terapia, mas não foi possível e eles resolveram se separar.

Diante de toda a carga emocional em que a banda estava envolvida, Lee acredita que a decisão tomada pelo quarteto foi correta. “Sim. Era a única decisão naquelas circunstâncias”, conclui.

Apesar da banda ter encerrado suas atividades, o site do Sonic Youth, www.sonicyouth.com, continua no ar. Seria um prenúncio de uma possível volta, algum dia. Encerrado seu ciclo com a banda, era hora de Lee olhar para frente e encarar novos projetos.

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The Dust

O The Dust

Após o fim do Sonic em 2011, Lee lançou seu primeiro álbum solo logo no início do ano seguinte. “Between The Times and the Tides” já mostrava que sua genialidade e sua veia experimental continuavam ali, vivas, e ainda produziriam muitos frutos.

Dado o pontapé inicial de sua “nova carreira”, Lee rapidamente sentiu a necessidade de voltar à estrada para apresentar suas novas composições. “Depois que eu produzi o meu primeiro disco solo eu reuni alguns dos músicos que me ajudaram a fazer esse álbum para pegar a estrada comigo e tocar essas músicas. Lentamente, ao longo de 10 ou 12 meses na estrada nós nos tornamos uma banda e estabelecemos um nome”, revela.

Com o passar do tempo e a sequência de shows, essa convivência entre os músicos acabou criando um ambiente favorável para que eles pudessem realmente estabelecer uma conexão maior. “A música começou a se abrir em novos caminhos na medida em que nos tornávamos mais familiares uns com os outros, tocando nossos próprios estilos”, conta.

Todo esse processo natural de construção de uma identidade como grupo se refletiu no álbum seguinte, que já levou o nome escolhido para batizá-los. Surgia assim o The Dust. “Quando chegou a hora de fazer o ‘Last Night On Earth’ (2013), nos reunimos na sala de ensaios para elaborar músicas para aquele novo disco. E fizemos isso como uma banda, e não apenas como uma coleção de músicos que fazia participações no meu álbum”, explica Lee. “Então, para mim, o segundo álbum tem mais desse sentimento – o de realmente ser uma banda”, complementa.

Alma acústica

Conhecido pela ferocidade com que utilizava a guitarra nas canções do Sonic Youth, Lee de certa forma surpreendeu o público ao mostrar uma face mais “pura”. A microfonia e a inventividade continuam ali, mas algumas canções de seus dois álbuns solo, como “The Rising Tide”, são construídas de forma bem acústica. Essa forma de compor deixa as músicas mais “cruas”, despidas inicialmente de qualquer overdub ou efeito. Ao que parece essa é a intenção. “A maioria das minhas composições nos últimos anos tem sido feita em violões. Eu realmente amo o som deles”, explica.

O instrumento parece estar ganhando cada vez mais espaço nas novas criações de Lee. “Eu amo violão e ele se tornou mais e mais o meu foco nos últimos anos. Eu ainda adoro tocar guitarra, alta e barulhenta, mas agora meu ouvido está mais sintonizado com os doces sons de uma caixa de madeira com cordas”, conta.

Ao vivo, esse mergulho em uma nova roupagem musical é ainda mais perceptível. Ao mesmo tempo, também é necessária uma adaptação. “É verdade que, durante a performance, tocar de maneira acústica é muito mais uma apresentação ‘nua’, sem paredes de som para se esconder atrás. Eu encarei isso como um novo e interessante desafio para mim, como alguém que sempre tocava violão nos bastidores, mas com pouca frequência em público” diz.

Lee Ranaldo ainda está se acostumando com essa nova experiência dos últimos dois anos, quando se apresentou também sozinho tocando suas canções com voz e violão. “A experiência é radicalmente diferente de se tocar rock elétrico, é íntima e muito mais pessoal em alguns aspectos. De qualquer maneira, por qualquer razão, é onde meu interesse reside no momento”, revela.

A parafernália eletrônica

Ao contrário do que se possa pensar, Lee não usa um grande set de pedais e amplificadores em suas apresentações e nem quando está gravando em estúdio. “Uso alguns overdrives, delays analógicos e pedais looping. Eu uso principalmente uns pedais muito primitivos, nada sofisticados. Não há tecnologia em nenhum deles. É tudo muito básico”, revela.

Em relação a seus instrumentos, sua preferência é pelas guitarras e amplificadores Fender. “Principalmente as Jazzmaster modificadas, mas outras também. Martin e Gibson acústicas (e muitas outras) e sinos de mão de bronze. O amplificador que escolhi para os shows é o Fender Super Reverb. É o que sempre usei, mas estou aprendendo a gostar muito de toda uma série de amplificadores menores para uso no palco quando faço shows acústicos”, conta.

Lee e sua esposa, Leah. (Foto - Frey Ranaldo)

Lee e sua esposa, Leah

O trabalho como produtor

Outra faceta do trabalho artístico de Lee é a produção musical. Entre outros CDs, ele trabalhou como produtor do álbum “Fontanelle” (1992) da banda americana Babes in Toyland. Na sua visão, a diferença entre fazer as suas próprias canções e trabalhar na obra de outro artista é latente. “É muito mais fácil ser objetivo quando você está trabalhando com a música de outra pessoa. É mais fácil saber exatamente o que você gosta sobre ela e o que você gostaria de mudar. Com criações próprias isso nem sempre é tão claro, porque você está procurando por algo novo, algo que sai de você, alguma expressão. É mais complicado e mais subjetivo”, avalia.

Produzir outros artistas também deu a Lee uma visão diferente sobre seus próprios álbuns. “É por isso que no álbum em que eu estou trabalhando agora, considero mais interessante deixar algumas destas decisões para outra pessoa – Raul, como produtor – e deixar que ele me diga quais partes ele acha boas e quais não são. Eu exponho as minhas ideias e é ele quem vai moldá-las, fazer com que tomem forma, às vezes até de uma maneira que eu não teria imaginado. É um processo interessante”, afirma.

Outras formas de arte

Além da música e da produção fonográfica, Lee Ranaldo também demonstra paixão pela literatura e pela fotografia. “Eu sempre fui um estudante de linguagem, visão e som. Eu comecei a trabalhar nessas três áreas ainda quando era uma criança bem jovem, porém informalmente ou acidentalmente, e continuei a me sentir fascinado por todas elas desde então. Seria ótimo, mas não havia tempo para passar uma vida inteira explorando cada uma delas!”, conta.

Essas outras formas de expressão, de alguma maneira, complementam a vida de Lee como músico. E nelas ele também procura fugir do lugar comum e usar a sua criatividade como fio condutor desses trabalhos. “Eu continuo a escrever e também faço desenhos, gravuras e pequenos filmes. Recentemente eu tenho feito gravuras usando velhos discos de vinil como placas, arranhando-os e, em seguida, fazendo as impressões. Eu realmente gosto deles. Também faço desenhos inspirados em todas as estradas pelas quais eu viajei ao longo dos anos. Você pode vê-los na aba ‘Art’, no meu site www.leeranaldo.com”, diz.

Além de tudo isso, atualmente Lee também está trabalhando no projeto de um livro que pode ser lançado já no ano que vem. “Estou coletando diversos materiais que escrevi nos últimos vinte anos – desde vários livros em que eu registrava letras de canções até alguns artigos que escrevi. Esse projeto tem sido o meu trabalho agora. Quem sabe ele apareça em 2016?”, conta.

Lee também está envolvido com o documentário “In Doubt Shadow Him!”, que abordará a sua carreira. A ideia partiu de dois artistas franceses: o músico Regis Laugier, (baixista e vocalista da banda HiFiKlub – que já foi produzida por Lee) e o artista visual, cineasta e também membro da HiFiKlub, Arnaud Maguet. “Eles fizeram uma série de filmes, cada um deles baseado em uma pessoa. Para o terceiro, eles me escolheram. Eles vieram a Nova York no inverno passado para me filmar e para ter algumas conversas com um grupo de pessoas que foram influentes para mim ao longo dos anos, incluindo o artista Dan Graham, o poeta John Giorno, meu amigo e baixista Mark Ibold e outros”, diz.

A trilha sonora do documentário também foi criada e gravada pelo trio. “Nós fizemos juntos as músicas no estúdio para formar a trilha sonora do filme e também realizamos a filmagem toda ao redor de Nova York. Eu não fui envolvido no processo de edição ou qualquer coisa assim. Eu sou o ‘sujeito’ – não o criador deste documentário. Estou curioso para ver como ficará!”, conta. A previsão é de que “In Doubt Shadow Him!” seja lançado em dezembro.

Ser independente

Nas décadas de 1980/90, para ser “independente”, uma banda precisava estar “fora do sistema”. Como características principais, esses grupos lançavam seus álbuns por meio de selos alternativos e colocavam a sua música acima dos interesses comerciais.

Hoje, qualquer banda pode ser chamada de independente, praticamente sem nenhum critério para isso. Lee tem seus conceitos sobre essa nova realidade. “É um momento diferente agora. Com a ascensão da Internet qualquer um pode trabalhar de maneira independente, disponibilizar o seu material online e ver se alguém está interessado nele. Nos anos 1980 o artista tinha que ser independente para fazer música fora do mainstream. Hoje, embora o mainstream ainda seja muito forte, há muitos ‘outros fluxos’ de coisas acontecendo no mundo, e podemos ouvir apenas com o clique de um botão. As grandes empresas têm menos poder agora, o que é uma coisa boa”, analisa.

A relação com o Brasil

Lee Ranaldo demonstra um grande interesse e conhecimento da cultura brasileira. No mês passado, por exemplo, ele se apresentou em São Paulo e registrou alguns momentos dessa passagem em seu Instagram, @LeeRanaldo, mostrando grafites desenhados nos muros da capital paulista e o edifício Copan, um dos símbolos da cidade. “Que edifício! Eu tento ver mais do trabalho do Niemeyer em cada viagem. Em viagens passadas com a Leah (esposa de Lee) ou com o Sonic Youth, eu visitei vários de seus outros edifícios. Eu adoraria ir até Brasília!”, diz.

E o mergulho do guitarrista em nossa cultura não para por aí, pois Lee cita vários artistas brasileiros. “Eu tenho interesse em saber mais sobre a arte visual de Hélio Oiticica, Ernesto Neto, Cildo Meireles e outros. Eu estou aprendendo mais o tempo todo! Eu adoro o trabalho da Lygia Clark, que vi recentemente em uma exibição no MoMA em Nova York”, diz. “Quando eu estive em São Paulo em 2013 eu vi uma exposição da obra do Waldemar Cordeiro. Eu não conhecia nenhum dos trabalhos, mas realmente amei várias obras dele”, complementa.

Além da nossa arte e arquitetura, outro interesse de Lee é uma das paixões brasileiras e uma das expressões culturais mais nativas de nosso povo. “Na minha viagem mais recente eu me apaixonei pela viola caipira! Eu estou tentando obter um desses instrumentos agora. Acho que eu poderia fazer algumas coisas legais com uma viola”, revela.

Tudo começou quando Lee ganhou um CD da violeira Helena Meireles. “Eu nunca tinha ouvido nenhum trabalho dela, do Ivan Vilela ou de muitos outros violeiros. Agora eu já conheço vários. É uma música incrível! Mas, principalmente, eu diria que eu sou realmente atraído pelo espírito que eu encontro aí: quente e aberto, convidativo, curioso e interessado”, elogia.

Além do seu mergulho na viola caipira, Lee também tem procurado conhecer artistas brasileiros de outros estilos musicais. “Eu estou conhecendo muitas coisas – desde músicos contemporâneos que se encaixam no meu próprio círculo até Heitor Villa-Lobos, por exemplo. Eu tive o prazer de encontrar o Caetano Veloso em duas ocasiões. Também o vi com a sua jovem banda. Que presente! Em nossa casa sempre ouvimos Gal Costa, Joyce e muitos outros também”, finaliza.

Lee Ranaldo é um artista completo. Criativo e sem medo de ousar, ele tem construído a sua trajetória com curiosidade e protagonismo, não se limitando ao que o seu país de origem lhe oferece. Curitiba tem o Museu Oscar Niemeyer (um dos interesses de Lee), tem arte, cultura e uma cena musical criativa. Mr. Lee, seja bem-vindo se quiser nos visitar!