Texto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira
Fotos: Kenza Louise Said/Reprodução Facebook Otto

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O compositor, músico e cantor pernambucano Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira é uma das cabeças pensantes na cena cultural brasileira. Afinal, Otto não restringe seu pensamento criativo somente à arte e isso chama muito a atenção em um cenário no qual a maioria dos artistas costuma “dançar de acordo com a música”.

Otto se apresenta neste sábado (11) na 2ª edição do Festival Coolritiba, que acontece na Pedreira Paulo Leminski e vai reunir outros nomes de peso, entre eles, Jorge Ben Jor, Criolo, Machete Bomb e Mulamba. A abertura do evento aconteceu nesta sexta-feira (10) com shows da banda Los Hermanos e do músico, cantor e compositor Tim Bernardes. Confira neste link todas as informações e a programação completa do festival.

Otto surgiu em meio à efervescência do movimento Manguebeat, no início dos anos 1990, e foi evoluindo musicalmente ao longo dos anos. Como percussionista, e fez parte uma das primeiras formações da Chico Science e Nação Zumbi e, na sequência, integrou o Mundo Livre S/A, com quem gravou os dois melhores álbuns do grupo: “Samba Esquema Noise” (1994) e “Guentando a Ôia” (1996).

O primeiro trabalho solo, “Samba pra Burro”, veio em 1998 e é um marco na carreira de Otto até hoje. “Esse álbum é um sonho. Ele é indomado, desvirtuado e eletrônico. Ele salta aos olhos. Eu fiz tocando pandeiro, saltando, livre, aprendendo e educando. Ele é mágico. O Apolo Nove (produtor) estava inspirado e o Pupillo (ex-baterista da Nação Zumbi) e eu também. O mundo estava mudando, acho que vivíamos um período divisor de águas. Eu estava em uma vida tão musical com o Chico, o Fred, o Eddie, o Siba e o Devotos com o meu amigo Marconi Cannibal que eu não pude parar. Eu saí da Mundo Livre e da Nação e não podia parar, então, mergulhei com muita coragem. Entre os meus discos, o ‘Samba pra Burro’ ainda é o mais moderno e ousado, e olhe que eu amo a minha obra (risos). Loucura de música livre”, diz Otto.

Atualmente, o Manguebeat continua influenciando a música brasileira e esse é um legado que Otto carrega com ele até hoje. “O Manguebeat foi um movimento fantástico! Era como se o Recife e o mundo estivessem esperando um embate nos anos 1990. O Recife já ocupava um lugar na história e Pernambuco também, então, nós e muitos outros artistas fomos fomentar a cultura. Éramos jovens em uma cidade muito interessante que discutia o mundo, os movimentos culturais e a diversidade. Tínhamos pessoas fantásticas em volta. Aprendíamos e reencontrávamos o sentido do novo e do velho, as tradições. Éramos livres e aprendemos a venerar uma cidade. Recife é fantástica!”, explica.

Atualmente, o Nordeste continua a movimentar o cenário musical brasileiro, mas a influência dos nordestinos vai além disso. A região tem vários artistas que fazem questão de se posicionar em relação às questões sociais do Brasil, entre eles boa parte da geração da qual Otto faz parte, que conta com Lenine, Zeca Baleiro, Nação Zumbi e outros nomes de peso.

Na visão de Otto, a própria construção histórica do Nordeste favorece esse tipo de postura crítica. “Acho que o Nordeste, pela história e colaboração no desenvolvimento do pensamento intelectual brasileiro, pela estrutura social que tivemos e pelas nossas manifestações culturais, sempre teve essa envergadura de opinião política quando se trata de Brasil. Temos a necessidade de opinar, de solidarizar com os mais humildes brasileiros. Temos uma vida popular, e o artista vem dessa mistura, então, neste momento, estamos em uma resistência tremenda ao que achamos de antidemocrático, autoritário, aos retrocessos. Nós, que somos nordestinos, carregamos muito amor pelo Brasil e isso precisa ser visto. Somos inclusivos e de paz, certamente”, diz.

Otto é um dos artistas mais honestos das redes sociais, no sentido de usá-las para debater ideias com seus seguidores e não ter medo de falar sobre questões sociais. Para expressar essas opiniões, ele tem usado a tecnologia. “Acho que sou narcisista no sentido da exposição e na carreira de cantor, que são coisas do ofício, mas acho que contribuo com algumas coisas que mais amo fazer: escrever, musicar, poetizar, reclamar e me expressar. Não sei fazer coisas perfeitas e não acho que eu possa existir sem doar minha visão, meus aprendizados e minhas músicas. Costumo me doar até a exaustão de verdades. Minhas redes são plataformas das visões verdadeiras. Gosto de escrever e decodificar meus pensamentos e tenho 116 mil pessoas atreladas. Faz uns 15 anos que eu falo que agora o Deus é digital. Gosto do futuro que é agora e saio escrevendo sem parar. Não tenho medo”, diz.

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Poesia e lirismo

A poesia é uma particularidade muito presente no trabalho de Otto porque, musicalmente, sob uma base que mistura vários ritmos da cultura brasileira, as letras das canções que ele apresenta levam os ouvintes a uma reflexão. “Eu vim à Terra para adiantar o outro, para decodificar meus pensamentos e explanar tudo que acho bonito, importante e musical. Preciso da sabedoria primitiva e da iluminação. A minha poesia tem uma simplicidade de quem acredita na existência da alma, dos sonhos. Busco entender o universo verdadeiro, o de todo dia, e como superar meus erros e medos. Enxergo muito perdão, por isso a arte alivia uma nação, um mundo. Escrevo porque sei que outros podem ler, sentir, repartir e ajudar. Para mim, a vida está ficando um ato de muita simplicidade do saber”, analisa.

Canicule

Atualmente, Otto está trabalhando em um novo álbum de inéditas chamado “Canicule”, palavra francesa que traz um significado especial para o artista pernambucano. Afinal, ele é casado desde 2017 com a fotógrafa francesa Kenza Louise Said. “Na França, ‘canicule’ é calor, verão explosivo, a chapa esquentou. No Brasil, a palavra é ‘canicular’, que vem do latim. Uma paixão ardente, um fogo. O disco fala da desertificação, da terra do homem, do calor. Selvagem (risos)”, explica.

Boa parte do CD foi composto no GarageBand, um aplicativo que permite a gravação e a edição de sons no próprio celular. “Eu já conhecia bem o GarageBand, mas ele começou a fazer sentido na minha necessidade de rever a minha música, de ser mais profundo e ter liberdade. O CD tem 90% da minha experiência com todos os instrumentos. Eu queria mais da minha invenção. Acho que, aos 50 anos, eu quis dar outro salto em direção ao desapego. É quase uma crise de ideias. Acho que já posso dizer que a música habita dentro de tudo que estou amarrando nesse ‘Canicule’. É uma viagem no ‘interior do interior do interior’ (risos)”, conta.

A decisão de usar o GarageBand mostra uma conexão com a modernidade e retrata uma questão que é a personificação da mudança de rumo no mercado fonográfico. Afinal, quando o Mundo Livre e outras bandas do movimento Manguebeat surgiram, os artistas praticamente só apareciam se fossem descobertos por uma grande gravadora.

Hoje, a tecnologia das plataformas digitais e dos home studios faz com que as bandas não precisem mais desse controle, pois elas podem gerenciar as carreiras de maneira independente. “Acho que nada mais está muito claro na vida das pessoas, até de quem acha que sabe. Hoje, a principal maneira de você descobrir o seu caminho é mudando tudo por dentro, por mil razões. Acho que o caminho é o da compressão. A tecnologia está aí para você criar primeiro e depois ver quem quer estar do seu lado. Acho que o mercado está se adequando, mas enquanto você tiver seu estúdio no aplicativo, seus amigos e sua vivacidade, você estará na luta. Onde a sua expressão é sua liberdade, continue a acreditar. Se é arte que tu queres, puxe lá de dentro e divulgue, faça. No ‘Canicule’, eu escolhi usar o GarageBand, de forma consciente e feliz. Eu queria um programa ingênuo, desapegado, mas se eu acredito, eu tiro um supersom e estou muito feliz. Ele é simples como eu queria. Louco eu já sabia que seria e é isso que eu mais gosto nele: a loucura de ser eu mesmo. Acredito e amo a minha música, no simples e belo”, afirma.

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A realidade como matéria-prima

Uma das características do trabalho solo de Otto é transformar emoções (boas ou ruins) em poesia e música. No álbum “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009), por exemplo, ele estava saindo do relacionamento com a atriz Alessandra Negrini e tinha acabado de perder a mãe. O resultado musical de todas essas situações foi um álbum sofrido e introspectivo. Já em “Ottomatopeia” (2017), as músicas de Otto apresentam um clima de celebração do amor com a atual esposa e retratam a retomada da vida de maneira mais tranquila.

Seguindo essa linha na qual aborda as situações emocionais e sociais que está vivendo em determinado momento, Otto absorveu muitos elementos da cultura francesa e transportou essas ideias para o novo álbum.

Tanto que, para ratificar essa conexão, o clipe da faixa-título do CD será gravado na histórica cidade de Marseille, na França. “Acho que podemos imaginar o ‘Canicule’ como o mundo. Ele veio de um amor que tenho pela França, então é claro que ele é solar, mediterrâneo. Minha mulher é francesa e, quando morei lá, em 1989, eu fui tragado pelo olhar francês. Tenho uma ligação muito especial com a França antiga e uma mais importante ainda com a contemporânea. Acho que eu quero essa visão do mundo, essa mistura de todas as cidades. Ele é um álbum desbloqueado, aberto, visto mais pelos olhos de fora”, conta.

A relação com Curitiba

Otto tem muito fãs em Curitiba, inclusive entre as bandas e artistas da capital paranaense. Essa convivência vem desde a década de 1990, época na qual a cidade viveu uma época de ouro e revelou inúmeros grandes grupos. Naquele período, em Curitiba, bandas como o Woyzeck e o Boi Mamão também bebiam nas fontes que a turma de Recife estava absorvendo.

Além de influenciar o trabalho de alguns artistas de Curitiba, Otto também chegou a trabalhar com o curitibano DJ Primo, que faleceu em 2008. “Infelizmente, ele não está mais aqui. Ele gravou o ‘Sem Gravidade’ (3º álbum de Otto, lançado em 2003) e foi um cara muito talentoso, que marcou bastante. O Boi Mamão eu também conheço do tempo do Mundo Livre. Tenho poucas oportunidades de ir a Curitiba. Queria ir mais porque gosto da galera e da noite daí (risos)”, diz.

Entre os shows que já fez em Curitiba, Otto ressalta o da Virada Cultural, em 2014, que foi realizada na Boca Maldita e permanece na memória dele até hoje. “Foi maravilhoso! A rua estava tomada de gente, foi lindo e inesquecível. Todo mundo dançou e trocou uma energia muito especial. Também toquei com o Raul de Sousa aí e foi lindo”, finaliza Otto.