Texto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira
Foto: Reprodução/Facebook Detonautas

detonautas

29 de abril de 2015. No Centro Cívico, bairro nobre da “República de Curitiba”, bombas de gás lacrimogêneo caem do céu, dos prédios e de um helicóptero usado pela Polícia Militar. Na praça Nossa Senhora de Salete, em frente ao complexo que abriga o governo do estado do Paraná, centenas de professores (grande parte deles idosos e mulheres) são agredidos por mais ou menos 1500 policiais militares trazidos de todos os cantos do estado pelo governador Beto Richa.

Não, isso não é uma cena de nenhuma Guerra Mundial, muito menos dos eternos conflitos travados no Oriente Médio. Você também não entrou em uma máquina do tempo. O ano era 2015 e não 1964.

Nessa sexta-feira (29), servidores, sindicatos, professores e alunos realizaram um ato no mesmo local para lembrar esse fatídico e triste dia da história não só do Paraná, mas do Brasil democrático pós-1985.

De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato), 25 mil pessoas participaram da manifestação. A Polícia Militar (PM) diz que foram cinco mil manifestantes. Independentemente da quantidade de pessoas, o simbolismo do ato é o que realmente importa.

O ponto alto da programação foi o show da banda carioca Detonautas Roque Clube. A escolha não poderia ser mais acertada, afinal, não é de hoje que o grupo vem procurando se posicionar em relação aos vários problemas sociais enfrentados pelo país.

Um momento histórico

O vocalista do Detonautas, Tico Santa Cruz, é uma daquelas figuras públicas que não tem medo de expor e debater suas ideias. O cantor tem mais de 2 milhões e trezentos mil seguidores em seu perfil no Facebook e diariamente levanta debates acalorados nas redes sociais.

O grupo está prestes a completar 20 anos de estrada, mas entre as centenas de shows que a banda já fez, esse parece ter sido realmente especial. “Nós sempre fomos uma banda que abordou questões sociais e políticas, não só no repertório, mas também nas ideias que a gente traz dentro dos shows. Esse show foi especial, por alguns motivos: um deles é por ser um ato simbólico em relação ao que aconteceu, o massacre dos professores aqui representa o massacre da educação de um modo geral. Esse é o simbolismo desse ato”, diz Tico. “Para a gente que atua sempre tentando de alguma forma defender a educação pública no Brasil, quando os filhos dos ricos ou da classe média estão na escola pública, eles não se importam com o que está acontecendo nessas escolas. Não se importam com os professores, com os alunos, não se importam com nada. Então, essa é uma maneira de tentar chamar a atenção da sociedade para a questão da escola pública no Brasil”, complementa.

Além de tocar músicas que ajudaram a construir a sua carreira, como “Outro lugar” e “O dia que não terminou”, o grupo procurou deixar bem claro o seu sentimento em relação ao que aconteceu naquele 29 de abril.

Entre as frases ditas por Tico durante a apresentação, uma merece destaque: “Só a educação é revolucionária. Ter conhecimento é poder e é por isso que eles têm medo de oferecer conhecimento ao povo”, afirmou. O vocalista também cantou à capela a música “Blues da piedade” (Cazuza). “Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sob a chuva rala. Somos iguais em desgraça. Vamos cantar o blues da piedade”, diz a letra.

Diante de tantas pessoas que militam pela educação em um país que não valoriza seus professores, (e pior, agride-os), Tico soube passar a sua mensagem. “Fazia muito tempo que o Detonautas não usava o palco para se pronunciar abertamente, como a gente fez hoje. Porque nós temos uma missão de, com a nossa música, tentar de alguma maneira trazer pessoas que são de fora da bolha, da esquerda ou de algum tipo de orientação ideológica”, explica Tico. “Aqui, nós pudemos falar para as pessoas que escutam o que nós temos para dizer, que compartilham das mesmas ideias, dos mesmos valores e sentimentos. Isso tem uma força simbólica não só para mim mas para toda a banda. É uma maneira da gente colocar para fora todos esses sentimentos de luta, de força, de atitude e de consciência. Acredito que hoje foi um dia histórico para o Paraná, para o Brasil e também para o Detonautas, por termos participado de uma data que tem um simbolismo tão importante”, complementa.

A banda também apresentou versões de músicas que carregam alguma simbologia ao momento que o país vive. Dois desses covers, “O tempo não para” (Cazuza) e “Tempo perdido” (Legião Urbana), são canções que nasceram há quase três décadas, mas continuam absurdamente atuais.

Diálogo e reflexão

Em nenhum momento Tico usou de linguagem agressiva em cima do palco. De forma serena, o vocalista procurou estabelecer um diálogo com o público, falando de questões políticas e sociais. Essa postura corajosa, em um tempo onde ter opinião parece estar virando uma ofensa, nem sempre é aceita com respeito.

Durante o show, por exemplo, o vocalista contou que antes de vir para Curitiba, a banda recebeu algumas ameaças por meio das redes sociais. Apesar de ser atacado com esse tipo de insanidade, Tico se mantém tranquilo e acredita que só o diálogo será capaz de acabar com o ódio que hoje é confundido com opinião. “A única maneira da gente enfrentar isso é com a conscientização, principalmente do público mais jovem. Eu acho que a função do artista é essa. Não é só entreter, porque qualquer pessoa pode fazer isso. O artista tem como missão levar as pessoas além do entretimento, levar à reflexão, ao questionamento, porque ele tem voz para alcançar muitas pessoas e isso não pode ser usado somente para benefício próprio”, afirma.

A realidade inequívoca é que essa “cultura do ódio” que se instalou no país não constrói absolutamente nada. Em nenhum momento da história da humanidade a violência e os extremismos se mostraram benéficos.

Essa “guerra” que foi criada no país nos últimos anos, na visão de Tico, faz parte de um processo de crescimento. De sua parte, a banda vem tentando ajudar a construir um cenário de diálogo e entendimento. “A gente vem fazendo isso há muitos anos. É lógico que antigamente as pessoas não tinham tanto interesse político como têm hoje. Eu comparo isso com a ‘alegoria da caverna’ do Platão, pois é um momento em que as pessoas estão começando a sair da caverna. Então, há uma cegueira coletiva que proporciona esse diálogo talvez um pouco contaminado pela raiva, pelo ódio e pela falta de profundidade em relação às questões políticas. Tudo é tratado de forma muito binária, como se fossem times de futebol”, analisa.

Mesmo diante desse cenário pouco amistoso, Tico e o Detonautas insistem na ideia de que é possível vencer a intolerância. “Aos poucos, eu acredito que esse diálogo vai evoluir. Nós temos que insistir e continuar esse diálogo com as pessoas para fazer com que elas de alguma maneira possam desenvolver o senso crítico e o senso de reflexão que é importante para debater política. Isso para fazer com que o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais sejam lugares ocupados por pessoas que tenham consciência da importância de estar ali”, diz.

Música e ativismo

O mais recente álbum do Detonautas, “A Saga Continua”, foi lançado em 2014. A partir dali o grupo passou a disponibilizar singles na internet, sem a preocupação de ter que lançar um CD full length. “Nós estamos lançando músicas avulsas. Não temos mais aquele critério que é usado pelo mercado tradicional. Nós lançamos e vamos trabalhando na internet gratuitamente, utilizando as plataformas digitais para divulgar. Eu acredito que até o final desse ano nós tenhamos umas seis ou sete músicas, talvez dez, e aí a gente faça um disco e coloque à disposição dos fãs”, explica.

Na visão da banda, o importante é continuar falando aos seus fãs por meio da internet e nas apresentações. “A gente sabe que a forma de consumir e de receber música é diferente, então, para nós é mais importante estar em contato com o nosso público nos shows, na internet e fazer a nossa mensagem girar”, finaliza Tico.