Texto: Marcos Anubis
Revisão e fotos: Pri Oliveira
No livro “O Médico e o Monstro” (1886), o escritor escocês Robert Louis Stevenson aborda o tema das múltiplas personalidades. O texto fala sobre o médico Dr. Jekyll e sua forma demoníaca, o violento Mr. Hyde. A ideia central é que dentro de uma mesma pessoa existe uma personalidade boa e uma má e ambas convivem e se manifestam. Esse preâmbulo é necessário para entender a apresentação que o cantor, compositor e músico Lobão fez na última quinta-feira (12) no bar Crossroads, em Curitiba.
Por uma destas coincidências que o destino cria, o show da turnê “Sem Filtro” aconteceu na autoproclamada “República de Curitiba” no mesmo dia em que a presidente eleita Dilma Roussef foi afastada do cargo por 180 dias. Mas o que isso tem a ver com a apresentação? Nesse caso, tudo. Lobão se tornou, nos últimos anos, uma das vozes mais fortes da direita brasileira e, diante do fato ocorrido poucas horas antes, a dúvida era: veríamos um show ou um ato político? Vimos os dois.
Lobão subiu no palco e sua primeira frase já deu o tom da noite: “Que dia lindo!”, disse de forma irônica. Ele iniciou o show com três canções de seu mais recente álbum “O Rigor e a Misericórdia” (2016): “Os vulneráveis”, “Assim sangra a mata” e “A esperança é a praia de um outro mar”. Algumas canções do seu repertório, entre elas “Chorando no campo”, “Me chama”, “Por tudo que for” e “Essa noite não”, funcionam perfeitamente no formato acústico. Outras, como a nova “O rigor e a misericórdia”, não possuem o mesmo impacto.
Na sequência do show, antes de “A vida é doce”, o público entoou o coro “Tchau, querida”, que virou o mantra da direita nos últimos meses. Lobão, sorrindo, retribuiu: “Que bom estar aqui na ‘República de Curitiba’. Vamos fazer um brinde à nossa luta, à redenção do povo brasileiro”, disse. Essa postura foi uma constante durante toda a apresentação e ficava explícita quando Lobão pegava a sua taça de vinho e fazia brindes ao “Brasil”, à “nova esperança” e ao “povo brasileiro”.
Voltando à criação de Stevenson, a dualidade entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde aconteceu várias vezes dentro das próprias canções. Ora elas eram realçadas pela sua beleza ou letras inteligentes, ora eram recheadas de citações agressivas e desnecessárias. Nesses momentos o público, formado tanto por gerações mais novas quanto por fãs mais antigos, entrava no embalo.
Em “Rádio Blah”, Lobão novamente recheou a letra de referências à Dilma: “Sua vida de terrorista […] Um roteiro de intrigas para qualquer canalha e cafona […] Cercada de MST, de UNE […]”. Já o refrão do clássico “Vida bandida”, foi transformado em “Dilma bandida”.
Veja abaixo o nosso álbum de fotos do show.
Outros tempos
Hoje Lobão parece ser um soldado em guerra, mas nem sempre sua postura foi assim. Durante seus quase 40 anos de carreira, ele cercou – se de parceiros do quilate de Cazuza e Júlio Barroso, que renderam várias músicas de sucesso.
Em 1999, o músico também teve uma atitude pioneira ao lançar o álbum “A Vida é Doce” por seu próprio selo, o Universo Paralelo. O CD foi distribuído em bancas de revistas e na internet, fato que, na época, era raro e se configurava como um soco na cara das gravadoras. Dessa forma, Lobão foi um dos primeiros a realmente encarar a questão dos direitos autorais no Brasil.
O conteúdo de seu “discurso” também era outro naqueles tempos. O álbum “O Sol de Parador” (1989), por exemplo, o quinto de sua carreira solo, trazia uma música chamada “Panamericana”. Nela, Lobão questionava a democracia na América do Sul, perguntando “O que é a democracia ao sul do Equador?”. No mesmo texto, ele também usava a famosa frase de Che Guevara “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.
Já na música “O eleito”, do álbum “Cuidado” (1989), Lobão atirava contra a política da época. naquele momento a sociedade brasileira sequer sonhava que algum dia a esquerda brasileira poderia estar no poder. “A sua pose é militarista, ele se acha o intocável. Senhor de todas as cadeiras, derruba tudo pra ficar estável”, diz a letra.
“Corações psicodélicos” encerrou a apresentação. Qualquer pessoa, músico ou não, tem a liberdade de escolher a sua preferência política. Mas a pergunta, no final, era uma só: artisticamente, até que ponto a política passou a interferir na obra do músico Lobão?
Veja três vídeos do show: “Me chama”, “Noite e dia” e “Essa noite não”.
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