Texto: Marcos Anubis
Fotos: Divulgação e Pri Oliveira
Revisão: Pri Oliveira




“Ninguém entende um Mod!”, cantava o vocalista do Ira!, Nasi, na metade da década de 1980. Entre os integrantes do movimento, porém, existe entendimento e respeito. É o que prova a relação da Relespública com o Ira!. A história de Fabio Elias (guitarra e vocal), Ricardo Bastos (baixo e backing vocal) e Emanuel Moon (bateria) se confunde com um dos maiores ícones do rock nacional. Afinal, ao lado da banda paulista, o trio curitibano segue sustentando a bandeira do Mod.

Nesta quarta-feira (15), a Relespública se apresenta no Vox, em Curitiba, ao lado do guitarrista do Ira!, Edgard Scandurra. A intenção é, justamente, celebrar essa amizade. A relação entre eles começou no início da década de 1990.

Naquele período, os “meninos curitibanos” iam a todos os shows que o Ira! fazia na capital paranaense e tentavam se aproximar de seus ídolos. “Eu conheci o Fabio Elias nessa época, acho que em um show nosso no Aeroanta. Ele era muito jovem e bem identificado com a nossa estética Mod, então a gente teve essa ligação logo de cara. Nessa época, eu ia sempre a Curitiba porque eu tinha um imóvel na cidade. Em uma dessas ocasiões, eu assisti a um ensaio deles”, relembra Edgard. “Eles iam ao nosso camarim quando tocávamos aí. Nós tínhamos em comum essa identidade Mod, então, acabamos nos tornando amigos”, complementa.




Amizade e respeito

Desde o começo dessa relação de amizade, uma característica se mostrava inerente às duas bandas. “Eu sempre gostei muito da energia da Relespública e do som deles no palco. Eles são uma das grandes bandas brasileiras que levaram o Mod para o palco e para a vida, assim como o Ira!. Nós somos bandas irmãs”, elogia.

Curitiba é uma das cidades brasileiras onde o Ira! tem mais fãs. Por causa disso, a banda sempre fez muitos shows na capital paranaense, permitindo que os integrantes da Relespública estreitassem a ligação com seus ídolos. “O Ira! sempre teve uma popularidade muito grande no Paraná. Os nossos shows em Curitiba sempre foram muito importantes. Por tudo isso, nós fomos nos aproximando cada vez mais. Eu gosto muito do Fabio, do Moon e do Ricardo. É um trio que merece todo o respeito e tem uma grande importância no rock nacional!”, afirma Edgard.

Estranhamente, apesar dessa relação próxima, as duas bandas nunca gravaram nada juntas. “Os caminhos acabam sendo cada vez mais individualizados, isso acaba distanciando um pouco as bandas. Isso nunca passou pela cabeça da gente, infelizmente. Eu acho que seria uma ideia muito bacana! Quem sabe, um dia, a gente não coloca isso em prática”, diz.

O setlist do show abordará o repertório das duas bandas e versões de clássicos que fazem parte da formação musical de seus integrantes. “Vamos tocar músicas da Relespública, do Ira! e mais alguns covers dos nossos ídolos, entre eles o The Who, The Jam e talvez algo do The Kinks. Acho que será uma noite memorável!”, afirma Edgard.




O mítico show de 1988

Como o próprio Edgard afirma, o Ira! sempre se sentiu em casa em Curitiba. Entre tantos shows que a banda fez na cidade, o mais emblemático aconteceu em 1988, no Ginásio do Círculo Militar. A apresentação fazia parte das comemorações dos dois anos da saudosa rádio Estação Primeira.

O festival, que se chamou “Rock na Estação”, ainda teve a participação das bandas Nenhum de Nós, Defalla, Os Replicantes e Mulheres Negras. “Foi um dos primeiros shows do Ira! em Curitiba e era um evento para uma rádio importante. Nós estávamos divulgando o nosso trabalho que, naquele momento, tomava uma dimensão mais nacional, com uma popularidade maior”, relembra Edgard.

O Ira! fecharia a noite, mas o tempo foi passando e o grupo não aparecia. Mesmo cansado, após mais de quatro horas em pé acompanhando os outros shows, o público que lotava o ginásio não foi embora.

Na verdade, a banda enfrentou uma odisseia para subir ao palco naquela noite. “Nós estávamos vindo de Minas Gerais, se não me engano. Era uma daquelas loucuras de fazer dois shows no mesmo dia. Essa apresentação era muito importante. Nós tínhamos até um jatinho à nossa disposição para nos levar até Curitiba”, conta.

Só que, desde o início da vinda para a capital paranaense, coisas estranhas começaram a acontecer. “As nossas roupas e malas estavam em um carro e o motorista perdeu a chave do veículo. As coisas estavam no porta-malas e nós não conseguíamos abrir. O avião estava na pista nos esperando. Isso fez com que nós atrasássemos mais ou menos umas duas horas para o show”, diz.

Seguindo a famigerada Lei de Murphy, os problemas não acabariam quando o avião desceu em Curitiba. “Nós chegamos ao aeroporto e, na ida para o Círculo, de 20 em 20 metros tinha uma lombada na estrada. Isso nos atrasou mais ainda, porque não podíamos correr. Quem teve essa ideia genial de colocar tantas lombadas? (risos)”, brinca.

Todas as barreiras enfrentadas naquela noite, porém, não prepararam a banda para o que ela presenciaria no local do show. “O mais bacana foi quando nós chegamos ao Círculo, com duas horas de atraso. As pessoas estavam lá, sentadas, esperando com toda a paciência e tolerância. Se fosse no ABC paulista, por exemplo, um atraso desses geraria uma quebradeira total. Isso serviu para mostrar  o grau de respeito que o público tinha conosco e com o Rock’n’roll. Ali começou uma relação de amor do Ira! com Curitiba. Eu não me recordo de nenhum show fraco ou com pouco público. Todos foram sempre muito fortes, energéticos, com o astral lá em cima. Acho que isso começou com esse show no Círculo Militar”, diz.

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O novo álbum do Ira!

O último álbum lançado pelo Ira! foi “Invisível DJ” (2007). Depois, a banda se separou e voltou a se reunir em 2014, apenas com Edgard e Nasi de sua formação original. Após o aguardado retorno, a esperança dos fãs era de que a dupla pudesse lançar um novo trabalho com músicas inéditas.

Isso está prestes a se concretizar. “É o nosso próximo passo, mostrar músicas novas! É uma coisa que vai acontecer ainda neste ano. Só que é interessante gravar várias músicas e tal, mas o mercado, a realidade de como as pessoas ouvem música hoje em dia, não é mais no conceito de álbum. Elas preferem baixar músicas e ouvir em um aplicativo”, diz.

Para se adaptar a esse novo conceito fonográfico, a banda planeja disponibilizar aos poucos as novas canções nas plataformas digitais. “A ideia é fazer um álbum, mas primeiro vamos compor as músicas e ir mostrando aos poucos. Vamos lançar alguns singles inéditos durante o ano para, de repente, no final de 2017, ter um álbum com todos eles. Eu acho difícil nós entrarmos em um estúdio e gravar várias músicas. Acredito que nem é viável. Nós já temos uns três temas e devemos começar a gravar um deles logo”, conta.




Mod solo

Edgard Scandurra é um músico e compositor inquieto. Além de seu trabalho com o Ira!, ele já participou de vários outros projetos.

O mais recente é o álbum “EST” (2015), gravado em parceria com a cantora e compositora Silvia Tape. Ela também é guitarrista das Mercenárias, lendária banda Punk do underground paulista. “Acho que é um dos melhores trabalhos que eu já fiz na minha carreira. O resultado sonoro, estético e a combinação das minhas músicas com as canções da Silvia, com a voz dela, é uma coisa que eu vinha buscando há muito tempo”, avalia Edgard.

Nos últimos anos, o guitarrista participou dos trabalhos de várias artistas brasileiras, entre elas as cantoras Karina Buhr, Bárbara Eugênia e Marina Lima. “EST”, porém, parece ter chegado na conexão que Edgard queria estabelecer. “Eu venho com esse ‘flerte’, no bom sentido, com várias cantoras, procurando achar uma identidade, uma parceria que pudesse ser criativa. Isso acabou pintando com a Silvia”, conta.

O álbum foi lançado pelo 180 Selo Fonográfico, de Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul. “É um selo pequeno, mas eles fazem uma coisa muito caprichada. Ele saiu em CD, cassete e vinil com capa dupla e uma arte linda”, continua.

Esse tipo de abordagem musical faz com que Edgard se desprenda momentaneamente dos laços com o Ira!, afinal, a banda é acostumada a grandes shows, diante de públicos maiores ainda.

Voltar ao underground, a essa proximidade com os seus fãs, é uma coisa que remonta ao início de sua carreira. A realidade, porém, também muda. “Eu saio do palco principal e vou para as tendas mais alternativas. Nós temos enfrentado dificuldades para tocar, temos feito poucos shows. Eu tenho muito orgulho desse trabalho e espero que ele tenha uma vida longa!’, diz.

“EST” pode ser baixado gratuitamente neste link.




The kids are alright

Outro trabalho do qual Edgard participa é o projeto Pequeno Cidadão. O grupo foi formado por ele em 2008 ao lado da ex-vocalista da Gang 90, Taciana Barros, e do produtor e multi-instrumentista Antonio Pinto.

Entre outros trabalhos, Antonio compôs as trilhas sonoras da abertura das Olimpíadas do Rio, do filme “Central do Brasil” e do documentário “Amy”, que retrata a vida e a morte da cantora inglesa Amy Winehouse.

Ao lado dessa turma de feras estão os filhos de Edgard, Antonio e Taciana, além de outras crianças e adolescentes que foram integrados ao grupo. “O Pequeno Cidadão já uma realidade de quase dez anos. É uma reunião com os nossos filhos. Nós fazemos uma música infantil, mas não ‘infantilizamos’ a nossa música. É um trabalho rico de arranjos com uma pegada forte do Rock e do Pop. Além disso, nós vamos acompanhando a evolução da participação dos nossos filhos. A minha filha, Estelinha, por exemplo, tinha três anos quando a banda começou”, conta.

O Pequeno Cidadão já conta com três CDs lançados. O mais recente é “Vem Dançar” (2016).  Já ao vivo, o grupo acaba sendo um encontro de gerações. “As pessoas que eram jovens e gostavam da gente, hoje levam os filhos deles para ver os caras que eles gostam de assistir. Isso é muito prazeroso!”, complementa.

“Muitos veem no homem um cifrão. Esqueceram do bater do coração”!

Cada vez mais, a qualidade da obra de um artista vem sendo deixada de lado em troca do dinheiro fácil e rápido. Hoje, um “hit” descartável que renda milhões aos seus criadores é muito mais valorizado do que uma obra consistente. “O mercado fonográfico procura sucessos. Eles não estão atrás de talentos. E às vezes eles encontram sucesso com um artista que não vai conseguir fazer outro hit, pois foi um momento de sorte dessa pessoa, ou de inspiração. O mercado não tem paciência para aguardar uns três discos e aí ele fazer outro sucesso”, analisa.

Essa inversão de valores pode ser sentida nitidamente nas programações das emissoras de rádio, repletas de “hits” que duram um mês. “O mercado procura mais o sucesso do que a longevidade do artista. Acontece isso no Carnaval, por exemplo, quando surge uma música que toca em todos os lugares do planeta. Alguém vai ficar muito rico com isso, mas depois você nunca mais vai ouvir essa música”, diz. “Cada ano tem um melô de não sei o quê, mais baixarias, mais coisas escrotas. Aí isso estoura, mas você nunca mais vai ouvir novamente”, complementa.

As novas tecnologias, como as plataformas de música digital, também são um fator que interfere nessa realidade. “Essa busca do mercado fonográfico não é uma coisa muito cultural, é pelo sucesso, pela grana. Eu acho que, atualmente, o mercado está perdido com a internet, a queda das vendas, a pirataria, download e várias outras coisas”, opina.

Apesar de todo esse cenário nefasto, hoje o ouvinte ainda tem a possibilidade de buscar bandas que sobrevivem fora desse mercado que impõe a futilidade. “Existe uma cena alternativa que está longe do mercado fonográfico e se sustenta dentro de uma bolha muito pequena. Aqui em São Paulo, por exemplo, existem lugares onde eu assisto shows de artistas novos. Eles lotam com 50 pessoas. Se tiver 30 pessoas é um sucesso de público. E isso, nos anos 1980/90, era um sinal de fracasso. Nós tocávamos no mínimo para 200 pessoas. Nos lugares onde as bandas iniciantes tocavam, como o Madame Satã, havia um público de 200 ou 300 pessoas. Então, fazia um barulho”, compara.

Mas Edgard ressalta a importância fundamental dessas casas menores que recebem os artistas independentes e colocam o trabalho deles na vitrine. “Nesses lugares pequenos ainda existem pessoas que são formadoras de opinião e conseguem atrair público para muitos artistas jovens, novos, que são muito talentosos. Eles mereciam tocar em palcos maiores e suas músicas deveriam estar na programação das rádios. Mas o mercado ainda fica procurando sucessos”, diz.

Esse é um embate que não começou hoje, mas que vem se tornando mais árduo nas últimas duas décadas. “Eu acho que as pessoas da cena alternativa são um pouco mais inteligentes, elas têm mais poesia. E não é isso que a gente percebe que os caras estão querendo, hoje em dia. Existe esse choque de buscar uma música inspirada, artística e poética, contrastando com a facilidade de um hit, um refrão, uma palavra que pegue, um sucesso passageiro”, complementa.




“Viraram massa devorada por alguém sem princípios e muito esperto”

Não é segredo para ninguém que a situação política e social do país vai de mal a pior. Na esteira das “oportunidades” do momento, muitos artistas praticamente trocaram as suas carreiras pelo status de símbolo de um lado ou de outro. Poucos deles, entretanto, demonstram ter base e legitimidade para sustentar seus pensamentos.

Edgard é um dos músicos brasileiros que mais se posiciona politicamente nas redes sociais. Seus posts, principalmente no Instagram, sempre procuram fazer seus seguidores pensarem com inteligência.

Na visão do guitarrista, as conquistas sociais dos últimos anos não podem ser esquecidas. “A gente viveu um momento social de progresso, de ascensão de uma camada social pobre que atingiu alguns sonhos que pertenciam às classes mais altas. Isso parece que incomodou muita gente que estava buscando, talvez, uma coisa mais ordeira. Isso beira um pouco um termo fascista de ‘direitos humanos para humanos direitos’. Hoje, vemos gente a favor de pena de morte, da diminuição de idade penal, por exemplo. Isso está crescendo muito, é uma tendência mundial”, analisa.

Outros músicos, atores e “celebridades” também costumam se manifestar. A diferença, porém, é o tom dessas opiniões. Muitos deles usam discursos de ódio que acabam influenciando seus seguidores.

Como consequência, essas atitudes acabam formando uma bola de neve que se espalha perigosamente pela sociedade. Edgard procura seguir por outro caminho. “Eu acho que o artista tem que buscar sempre o amor dentro de si e a unidade das pessoas, independentemente do estado financeiro desse cidadão, se ele pôde estudar, da sua cor, etc. Isso acaba me levando sempre para o lado da esquerda. Eu acho que, apesar de ser uma coisa um pouco utópica, ela carrega esses ideais dentro de si. Eu acho que o artista é um sonhador, também. Então, me espanta um pouco ver alguns artistas com discursos raivosos contra minorias, homossexuais, leis de cotas, contra muitas coisas que são tentativas de diminuir a diferença entre a classe lá de cima e a de baixo”, afirma.

Edgard acredita que é importante o cidadão se posicionar contra os desmandos sistemáticos que estão sendo vivenciados no nosso dia a dia. “Eu já fui uma pessoa mais radical, hoje sou mais tolerante. Eu acho que cabe a gente combater esse momento muito tenebroso e temeroso. Tudo é feito na cara de pau, às claras. Não quero esbarrar em nacionalismo, mas quando eu vejo que vão começar a liberar o petróleo para empresas estrangeiras, isso abre precedentes para a exploração das plantações e das riquezas naturais do país. Para mim, essa coisa do Estado mínimo também é meio questionável. Eu acho que não faço nada mais do que a minha obrigação de me colocar na oposição de tudo isso!, finaliza.

Edgard Scandurra e a Relespública se apresentam no Vox nesta quarta-feira (15). Os ingressos custam R$ 20 (colocando o nome no evento no Facebook) e R$ 25 na hora do show.

A casa abre às 21h e o show começa às 22h. A censura é de 18 anos. O Vox fica na Rua Barão do Rio Branco, 418, no Centro.

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