Texto: Marcos Anubis
Revisão e fotos: Pri Oliveira
Inaugurado em 1954, o Teatro Guaíra já recebeu inúmeros grandes artistas internacionais, nacionais e locais. O local já abrigou shows antológicos, entre eles os da banda paranaense Blindagem com a Orquestra Sinfônica do Paraná, o do ex-Led Zeppelin Robert Plant e o do grupo de Rock Progressivo Yes.
Nessa quarta-feira (27), o percussionista Naná Vasconcelos e o violonista Yamandu Costa escreveram seus nomes na lista de momentos mágicos vividos pelo mais tradicional espaço da cultura paranaense. O show encerrou a 34ª edição da Oficina de Música de Curitiba e teve os ingressos esgotados.
Yamandu foi o primeiro a pisar no palco. Logo nos primeiros acordes era nítida a admiração da plateia ao ver a técnica com que músico gaúcho domina o violão de sete cordas. Na terceira música ele apresentou e chamou Naná Vasconcelos ao palco. A recepção foi digna de sua grandeza como músico. Todas as 2.167 pessoas que lotaram o Guaíra se levantaram e aplaudiram em pé aquele que já foi considerado o maior percussionista do mundo.
Após dois números juntos, Yamandu se retirou e Naná tocou algumas canções sozinho, entre elas a enigmática “Vamos para a Selva”. Nela, o percussionista recria os sons e climas da selva amazônica de uma forma magicamente real. “Eu procuro contar histórias. Acredito que a música tem uma potencialidade visual muito grande. Aprendi isso com o Villa-Lobos. Ao ouvi-lo, você vê os cenários do Brasil”, disse Naná em uma entrevista exclusiva concedida ao Cwb Live no seu camarim do Teatro Guaíra.
Na sequência do show, Yamandu novamente se juntou à Naná e a dupla conduziu o espetáculo até o final. A noite foi encerrada com “Trenzinho Caipira”, do maestro Villa-Lobos.
A dupla foi aplaudida em pé e teve que voltar para agradecer mais uma vez o carinho do público. “Curitiba tem um público extremamente exigente. Não é fácil tocar aqui. O cara precisa estar preparado. Na última vez que eu estive no Teatro Guaíra foi com o meu querido Paulo Moura, com o Marcos Suzano e o Armandinho. Era uma homenagem ao Tom Jobim e foi um show lindo”, relembra Yamandu. “Curitiba tem todo o meu carinho. É um público para o qual eu adoro tocar. Além disso, está perto da minha terra, afinal, eu sou gaúcho. Temos várias coisas parecidas: o frio, aquela coisa intelectual, crítica, da discussão, essa coisa que o frio traz para as pessoas (risos)”, complementa.
Genialidade em dose dupla
A apresentação no Teatro Guaíra foi uma aula, literalmente. Isso porque os dois músicos são virtuoses em seus instrumentos, mas possuem formas bem diferentes de tocar. Yamandu utiliza a sua técnica para criar suas melodias, hora com velocidade, hora com doçura e beleza. É impressionante ver como ele domina todo o braço do violão sem dificuldade.
Naná é o feeling, a transcendência e a espiritualidade. O pernambucano se integra à canção que está tocando, fazendo com que cada som produzido por sua percussão pareça estar interligado à sua alma.
Em dado momento, por exemplo, Naná se ajoelhou em meio ao seu set de percussão, olhando Yamandu tocar. Ato contínuo, fechou os olhos e pareceu mergulhar em uma dimensão que só ele conhece. “Eu procuro fazer música com a percussão. Eu não bato no instrumento, eu toco. Procuro dizer alguma coisa. Não explicar, porque ninguém me perguntou nada. Essa história de quem toca percussão mais alto ou mais rápido não é comigo. Eu toco mais quando eu não toco”, diz.
“A percussão, para mim, é como se fosse uma orquestra de diferentes timbres”
Naná Vasconcelos foi eleito oito vezes o melhor percussionista do mundo pela revista americana Down Beat e conquistou a mesma quantidade de prêmios Grammy. Carregando essa bagagem fantástica, o percussionista acredita que, mesmo com os samplers e computadores que hoje praticamente tocam sozinhos, não existe nada mais puro do que o músico tocar o seu próprio instrumento. “A tecnologia, de certa forma, descontrolou muita essa coisa do orgânico. Para muita gente é mais fácil apertar um botão e sair um som de cítara do que o contato com quem faz”, analisa.
Outro quesito importantíssimo defendido por Naná é a manutenção da sua identidade como instrumentista e como pessoa. “A música, assim como todas as artes, é mais rápida porque mexe com as emoções. Então nós não podemos perder esse toque, esse ponto de referência que é o mestre, que é ir lá beijar o pé do mestre e se conectar. Aí, depois, você mistura. Nós não podemos fugir da tecnologia de hoje, mas é importante que não percamos a nossa identidade”, opina.
Essa afirmação se torna ainda mais forte porque vem de um músico consagrado em todo o mundo, que morou durante quase quatro décadas nos Estados Unidos, sem perder a sua alma brasileira. “Eu vivi 37 anos em Nova York, mas eu nunca quis ser um eles. Isso porque a nossa intuição, que é uma riqueza grande dos brasileiros, nos mostra que quando perdemos a identidade, nós é que perdemos”, complementa.
A parceria
O primeiro encontro musical entre Naná e Yamandu aconteceu há mais de dez anos no Rio das Ostras Jazz & Blues Festival, na cidade de Rio das Ostras, no Rio de Janeiro. “Foi em 2005, 2006. Nos convidaram para um trabalho e foi uma coisa muito espontânea. Eu sempre fui muito fã do Naná. É um prazer muito grande poder fazer música com ele”, diz o violonista.
Nas apresentações juntos, Naná e Yamandu não escolhem um setlist de forma “tradicional”. Eles definem uma linha a ser seguida e, a partir daí, usam a sua criatividade para conduzir as canções. “Nós não tocamos temas específicos. Fazemos um roteiro dentro de um clima, de uma concepção temática que vai se desenvolvendo. Claro que temos fragmentos de uma música base, mas a improvisação é bastante grande. Então tudo pode acontecer. É muito bacana e desafiador”, conta Yamandu.
Naná, por sua vez, já tocou e gravou com inúmeros artistas dos mais variados estilos musicais, de Egberto Gismonti a Pat Metheny. E apesar de toda essa estrada de sucesso, ele mantém a sua humildade e o seu jeito simples de ser. “Uma coisa muito importante para o músico é saber ouvir. Eu já tive situações na minha vida em que pensei: ‘Meu Deus, o que eu vou fazer aqui?” (risos). Sabe quando você olha e vê que um é o melhor disso, outro é o melhor daquilo”, conta.
Durante o show no Teatro Guaíra, o espaço para os dois músicos foi igual, tal qual a genialidade de ambos. Eles “se procuravam” dentro das canções, abrindo brechas para que a criatividade de cada um aflorasse. “Comigo não existe essa coisa de competir. Eu ouço e toco. Principalmente agora, depois dessa doença que passou por mim. Não que eu ache que vá morrer, afinal todos vão morrer. Mas porque eu me envolvo ainda mais de corpo e alma. A música e a arte precisam andar juntas. É necessário que ela seja honesta”, diz o percussionista.
No fim do ano passado, Naná foi diagnosticado com câncer de pulmão e passou por um tratamento de radio e quimioterapia para combater a doença. Recuperado, ele vem retomando a sua rotina de shows.
A fala de Naná expressa o mais profundo de sua alma. Ao ouvi-lo, você percebe a sinceridade a paixão pelo que faz. “É a maneira que eu tenho de tirar o melhor de mim porque esse é o meu momento maior. Eu nunca fiz nada a não ser isso. O primeiro instrumento é o a voz e o melhor é o corpo. O resto é consequência disso”, diz.
A importância do Festival
A 34ª edição do Festival de Música de Curitiba teve mais de 150 eventos e recebeu perto de 2.500 alunos. 122 professores brasileiros e estrangeiros ministraram 112 cursos abrangendo música erudita, MPB e música e tecnologia.
Toda essa estrutura impressiona até artistas consagrados, como Naná Vasconcelos. “Eu acho importantíssimo o festival em si. Ele abre a possibilidade para que novos músicos jovens conheçam música de uma forma geral”, diz. “Eventos como esse abrem a cabeça dos jovens para outros universos musicais”, complementa.
No show, além do público que acompanha o trabalho dos dois artistas, estavam presentes muitos alunos que participaram da Oficina. No camarim, Yamandu já tinha a percepção de que essa seria uma apresentação diferente. “É uma responsabilidade muito grande. É uma plateia muito informada, que tem um nível de exigência mais parecido com o nosso, que somos músicos e sempre estamos em busca de informação e aprendizado.
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As sementes da World Music
Um dos momentos mais importantes e criativos da carreira de Naná foi alcançado com o grupo Codona. Formado em 1978 ao lado de Collin Walcott (cítara e tabla) e Don Cherry (trompete e flauta de madeira), o trio revolucionou a forma segmentada como a música era encarada na época.
A partir das experimentações surgidas nos três álbuns do grupo, “Codona 1” (1979), “Codona 2” (1982) e “Codona 3” (1983), muitas barreiras musicais foram derrubadas. “Éramos imprevisíveis como combinações sonoras e, de repente, nós fomos os pioneiros no que passou a se chamar World Music. Porque éramos três músicos que vinham de diferentes caminhos. O Collin era um americano que tocava cítara e tabla e aprendeu com Ravi Shankar. O Don Cherry vinha do Jazz e tocou com Ornette Colleman e John Coltrane. E eu vim lá do Sítio Novo, em Recife (risos)”, conta.
Assim surgiu o Codona, uma junção das duas primeiras letras dos nomes de cada um dos integrantes. A mescla de diferentes culturas e visões musicais criou uma obra única, que surpreendeu até os próprios músicos. “Quando nós gravamos a primeira faixa, o Collin disse: ‘esse disco não é meu!’ (risos)”, relembra. “O Don abriu muito a minha cabeça para a música orgânica”, complementa.
A alma e o ritmo da música brasileira logo despertaram a atenção dos músicos e do público americano. Existia algo de novo nos sons produzidos por Naná e isso logo ficou claro. “Quando eu cheguei lá, e o Airto (Moreira) também chegou ao mesmo tempo, os americanos estavam tocando Latin Jazz com os cubanos e porto riquenhos que usavam bongôs, maracas e congas”, conta. “Fomos nós, brasileiros, que chegamos com apitos, caçarolas e outros instrumentos e isso mudou o cenário”, complementa.
A “Música Instrumental”
Atualmente a mídia brasileira está cada vez mais dominada pela música comercial. O Rock, por exemplo, praticamente desapareceu das rádios, e até o Pop encontra dificuldades para conseguir o seu espaço.
Se essa dificuldade existe para estilos que até outro dia eram mais populares, imagine para segmentos mais “undergrounds”, como a Música Instrumental. “Eu acho que existe um preconceito da mídia em torno dessa manifestação. Até por ser uma música um pouco mais elitista, existe essa diferença, mas eu vejo que vem melhorando ao longo dos anos”, analisa Yamandu.
Dentro desse “esquecimento” de outras manifestações culturais, estilos musicais que não se encaixam nesse tipo de pensamento mercantilista acabam sendo deixados de lado.
Um deles é justamente a Música Instrumental, denominação que não agrada Yamandu Costa. “Eu acho o termo ‘Música Instrumental’ meio pejorativo, como se fosse uma coisa diferente do resto. Se você puder chamar Beethoven de Música Instrumental, aí tudo bem, porque não tem palavras, né? (risos)”, critica. “É uma denominação que só existe aqui na América Latina. No mundo, ninguém chama de Música Instrumental. Eu acho que, na verdade, isso depõe um pouco contra”, complementa.
Pena do mercado consumidor e das pessoas que não ouvem a obra de Yamandu Costa e de Naná Vasconcelos. Nessa quarta, Curitiba teve o privilégio de ver, ouvir e sentir como a música pode ser mais do que entretenimento. “Como o Egberto (Gismonti) fala, ela é uma música culta, que não é clássica, mas que busca um refinamento e que está além de fronteiras. Ela se comunica com as pessoas por meio de muitos outros sentimentos”, finaliza Yamandu.
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