Texto: Marcos Anubis
Fotos: Reprodução site Cazuza
Sete de julho de 1990. Vencido pela AIDS, após uma brava luta que durou quatro anos, morria Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, um dos maiores letristas da história do rock brasileiro.
Cazuza nasceu no dia 4 de abril de 1958, no Rio de Janeiro. O pai dele era o produtor musical da gravadora Som Livre, João Araújo, falecido no ano passado. Por causa desse berço esplêndido, Cazuza cresceu em contato com grandes nomes da música brasileira, entre eles, Caetano Veloso, Elis Regina e Gilberto Gil.
A primeira experiência artística do jovem Cazuza foi no grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone e, nesse período, ele começou a ter contato com o universo “mundano” da Cidade Maravilhosa. Preocupado com o mergulho do filho na boemia, João “contratou” Cazuza para trabalhar na Som Livre. No emprego, Agenor avaliava o material de bandas novas e também fazia releases para a assessoria de imprensa da gravadora.
O tiro, porém, sairia pela culatra. Na gravadora, Cazuza não poderia ter encontrado um parceiro mais identificado com a sua forma de viver. Ezequiel Neves, falecido em 2010 no mesmo dia da morte de Cazuza, 7 de julho, trabalhava como produtor e tinha a trilogia sexo, drogas & Rock’n’roll como mantra. Alguns dos maiores sucessos da carreira do cantor, inclusive, surgiram em parceria com Ezequiel, como “Por que a gente é assim?” e “Codinome beija-flor”.
Em 1982, o cantor Leo Jaime, para quem Cazuza costumava mostrar as composições que criava, foi convidado para entrar em um dos muitos grupos que estavam se formando no começo da década de 1980 no Rio de Janeiro. Leo achou a banda muito “pesada” e indicou o amigo. Frejat (guitarra), Guto Goffi (bateria), Dé (baixo) e Maurício Barros (teclados), queriam um cantor que se encaixasse em um som enraizado no Rock’n’roll e Leo achava que Cazuza era perfeito para o posto, pois gostava de “cantar gritando”. Nascia, assim, o Barão Vermelho.
O primeiro álbum, “Barão Vermelho”, saiu em 1982 e trazia músicas que se tornaram clássicos da banda, como “Down em mim”. A letra da canção já mostrava a cara boêmia e urbana que marcaria toda a trajetória de Cazuza. “Na privada eu vou dar com a minha cara de panaca pintada no espelho. E me lembrar, sorrindo, que o banheiro é a igreja de todos os bêbados”, cantava. O disco foi gravado em apenas quatro sessões noturnas.
A consagração veio no primeiro Rock In Rio, em 1985. A banda se apresentou nos dias 15 e 20 de janeiro. A noite de estreia coincidiu com a data em que Tancredo Neves foi nomeado pelo Colégio Eleitoral como o primeiro presidente do Brasil eleito após o fim da ditadura militar. O show terminou de forma mágica com “Pro dia nascer feliz”, que refletia o pensamento de todos que estavam presentes na Cidade do Rock.
O álbum “Maior abandonado” foi lançado depois do festival e consolidou o Barão como uma das maiores bandas de Rock do Brasil. Mesmo assim, para surpresa dos outros integrantes da banda, Cazuza resolveu deixar o grupo para seguir em carreira solo. Essa maior liberdade para criar acabaria se refletindo em letras ainda mais emblemáticas e incisivas.
O voo solo
Após sair da banda que o projetou como compositor e cantor, Cazuza começou a trabalhar na estreia como artista solo. Se no Barão o vocalista tinha a luxuosa parceria de Roberto Frejat, nesses primeiros passos da nova caminhada, era preciso encontrar músicos que entendessem e ilustrassem as suas letras. A primeira aposta não poderia ter sido mais certeira.
Ezequiel e Cazuza resolveram mandar o texto para o músico e cantor Leoni, ex-Kid Abelha, a canção que se tornaria o carro chefe do álbum. “Amor da minha vida, daqui até a eternidade. Nossos destinos foram traçados na maternidade”, dizia um dos versos de “Exagerado”.
A ideia inicial era de que a música fosse um bolero, refletindo o estado de espírito mais “exagerado” dos latinos. “Eu disse que não tinha ideia de como fazer um bolero. Ele deixou a letra comigo e eu apresentei a música já no estúdio da Som Livre. A banda gravou no mesmo dia”, disse Leoni em um vídeo de divulgação de “Cazuza, o Musical”.
O álbum “Exagerado” foi lançado em novembro de 1985 e o sucesso foi imediato. A música título acabou se tornando uma espécie de cartão de visitas do cantor, refletindo de forma poética a sua forma de encarar a vida. “Gosto de ‘Exagerado’, pois é um retrato fiel do Cazuza e do Ezequiel Neves. Serve para os dois”, disse a jornalista Regina Echeverria em uma entrevista exclusiva para o Cwb Live, concedida no ano passado. Regina é a autora da biografia “Cazuza – Só As Mães São Felizes”, de 1997. Leia neste link a matéria completa. “Só Se For A Dois” foi lançado em 1987 e trazia músicas como “Solidão que Nada” e “O nosso amor a gente inventa”, mas o grande e definitivo passo viria com o disco seguinte.
“Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo”
Também em 1987, Cazuza começou a apresentar os sintomas da AIDS. Internado por causa de uma pneumonia, ele acabou se submetendo a um teste de HIV. O resultado foi positivo e o cantor foi com os pais para Boston, nos Estados Unidos, realizar um tratamento de dois meses no New England Hospital. Na volta, seu eterno parceiro Roberto Frejat compôs a música que se tornaria um hino póstumo ao artista, a bela “O poeta está vivo”.
Animado com a possibilidade de voltar a trabalhar, Cazuza canalizou as suas forças para compor o álbum “Ideologia”, que seria lançado um ano depois. A doença que tomava conta de seu corpo, ironicamente, foi uma catalizadora de todo o seu talento.
Como se tivesse urgência de expor todo o seu pensamento, Cazuza passou a compor obras ainda mais primorosas. A canção que dá nome ao álbum, por exemplo, resume o espírito de uma geração que saiu da ditadura militar que sufocou o país durante mais de 20 anos para a uma pretensa democracia que apenas começava a dar os seus primeiros passos. “Meu partido é um coração partido. E as ilusões estão todas perdidas. Os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito”, diz a letra. Poucos eram os poetas ou músicos que tinham a coragem de colocar o dedo na ferida, expondo as mazelas e hipocrisias de seu país. Hoje, eles ainda são mais raros…
A turnê de “Ideologia” foi dirigida por Ney Matogrosso e rendeu um disco ao vivo, “O Tempo Não Para”, gravado no Canecão no Rio de Janeiro e lançado em 1989. A música título, mais uma vez, se tornou uma das pérolas da carreira do cantor. “Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo sem um arranhão, da caridade de quem me detesta. A tua piscina tá cheia de ratos. Tuas ideias não correspondem aos fatos. O tempo não para. Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”, diz a letra.
Nós, as cobaias de Deus
Apesar da fase criativa e do sucesso que suas músicas estavam alcançando, os efeitos da doença já não podiam ser escondidos. As constantes internações não abalavam sua mente, mas se refletiam em seu corpo. Muito mais magro e visivelmente abatido, Cazuza criou o seu canto do cisne. O álbum duplo “Burguesia” foi lançado no final de 1989 e ganhou dois prêmios Sharp: o de melhor disco do ano e melhor música, “Brasil”. O cantor fez questão de ir até a cerimônia de entrega, mesmo de cadeira de rodas.
Cazuza morreu no apartamento dos pais no Rio de Janeiro, no dia 7 de julho de 1990, aos 32 anos, de choque séptico em decorrência da AIDS. Após a morte do filho, Lucinha Araújo criou a Sociedade Viva Cazuza, que presta assistência a crianças e adolescentes portadores do vírus da AIDS e também a adultos que estejam em tratamento da doença na rede pública de saúde do Rio de Janeiro.
Vivemos uma época no Brasil na qual o Rock, contestador em sua essência, se cala. Bandas e artistas que retratam a nossa realidade de forma incisiva estão cada vez mais em extinção, se rendendo ao chatíssimo “politicamente correto”. Diante dessa realidade nefasta, o legado de poesia e contestação de Cazuza é mais do que nunca necessário pelo momento atual do país e ele continua vivo na memória dos que tiveram o privilégio de acompanhar a sua carreira.
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