Texto: Marcos Anubis
Fotos: Marcos Anubis e arquivo pessoal J.R.

fotomateria

J.R, vinte e dois anos à frente do 92 Graus (Foto – Marcos Anubis/Cwb Live)

Década de 1990. Devido à grande quantidade de boas bandas se destacando na cidade, a revista Showbizz, na época a mais importante publicação musical do país, apelidava a cidade de Curitiba de “Seattle brasileira”, em uma referência ao movimento Grunge que sacudia o mundo naqueles tempos. Um dos grandes responsáveis pela construção dessa cena é o proprietário do bar 92 Graus,Geraldo Jair Ferreira Junior, o J.R.

Dentro da complicada cena cultural da capital paranaense, J.R. é um visionário que, ainda hoje, quase 30 anos após a inauguração do bar, continua a árdua luta para fazer com que a música autoral curitibana seja conhecida e respeitada.

O começo de tudo

Quando se fala em cultura underground e espaço para bandas autorais em Curitiba, o maior referencial é o 92 Graus. Na prática, o local é uma extensão da vida particular de J.R, o proprietário e idealizador do bar.

A história do Ninety Two Degrees, nome inspirado em uma música da banda Pós-punk inglesa Siouxie and the Banshees, começa no início da década de 1990 em um porão de um prédio localizado na Rua Visconde do Rio Branco. No imóvel, que pertencia à família Jacomel, parentes da esposa de J.R, existia uma lavanderia que acabou sendo desativada. Com o local à disposição, a ideia inicial era “abrir um negócio”, sem uma definição do que seria montado no espaço. Nesse momento de definição, os tios de J.R. foram os grandes incentivadores para que o bar fosse criado. “Eles falaram ‘vai lá, manda bala’. Foram eles que acenderam a faísca”, relembra J.R.

Nessa época, Geraldo já integrava uma das inúmeras bandas das quais participou, a Julie Et Joe, e já sentia na pele as dificuldades que os artistas autorais curitibanos enfrentavam para encontrar bares que aceitassem bandas que não tocavam covers. “Não tinha espaço. Os grupos tinham que tocar no DCE, no Teatro de Bolso, no TUC e no Berlim, atual Hermes, que era um bar tradicional. Mas isso era esporádico. Não existia um local onde rolasse só grupo autoral”, conta.

Assim, a intenção inicial de abrir espaço para esses artistas “marginais” norteou todo o caminho do 92º. “Como eu tinha banda e meus amigos também, nós queríamos um espaço no qual pudéssemos tocar o que não podia ser tocado em lugar nenhum”, afirma.

foto92velho-01

A primeira sede do 92°, na Rua Visconde do Rio Branco (Foto – Arquivo pessoal/JR)

A inauguração oficial

Durante um ano e meio, aproximadamente, o espaço abrigou várias formas de arte, de esculturas a oficinas de teatro. Em dado momento, J.R. e o irmão dele, Gian Claudio Ferreira, firmaram uma parceria para que o local tivesse o formato que o tornou conhecido.

O primeiro show do novo bar foi protagonizado pelas bandas curitibanas Missionários e Morfeu. “Foi uma loucura! As janelas ainda eram abertas e os vizinhos ficaram malucos”, conta. Em 1992, a casa começou a receber grupos de outros estados, como o Pin Ups, de São Paulo, o Second Come, do Rio de Janeiro e o Acústicos & Valvulados, do Rio Grande do Sul.

Nesse momento da história, tudo conspirava a favor da música curitibana. Seguindo essa maré favorável, o bar realizou o festival National Garage, nos meses de julho e agosto de 1992. O evento contou com a participação de bandas que começavam a trilhar um caminho dentro do Rock nacional, entre elas, o Mickey Junkies, o Killing Chainsaw e o Safari Hamburguers.

Em dezembro, houve a primeira edição do B.I.G, Bandas Independentes de Garagem, um dos maiores eventos musicais do circuito musical brasileiro, na época. No ano seguinte, foi criado o selo Bloody Records, mais uma inovação capitaneada por J.R. Foram selecionadas 12 bandas curitibanas e cada uma delas gravou um compacto, os antigos disquinhos de vinil. Entre elas estavam o C.M.U Down, o Boi Mamão e o Kráppulas.

A segunda edição do B.I.G, realizada em 1993, foi maior e mais diversificada. Durante dez dias, mais de 30 grupos nacionais emergentes se revezaram nos palcos de várias casas de show da cidade, como o Aeroanta, o Syndicate e a Fábrica de Vagabundos, além do próprio 92 Graus.

Com tanta atividade cultural acontecendo no bar, o nome Ninety Two Degrees passou a ser reconhecido em todo o país como um local de passagem obrigatória para as bandas autorais. A diversidade de estilos ia desde o Death Metal do Infernal até o som mais popular do Acrilírico. J.R. relembra que, no começo do bar, os músicos curitibanos da época, procurando saber como marcariam uma data no local, alegavam que faziam covers de bandas como o Led Zeppelin e o Pink Floyd, achando que esse seria um diferencial. A resposta que recebiam era direta. “Eu falava: ‘Mas você toca uma música sua, jovem? Grave na secretária eletrônica, em uma fita cassete. Mande qualquer material’. Não é preciso ser conhecido para tocar aqui”, brinca.

Com um espaço dedicado exclusivamente ao som autoral, Curitiba deu um salto impressionante em termos de qualidade, e quantidade, de artistas, estúdios de gravação e produção fonográfica. “Em cada show apareciam mais pessoas falando ‘velho, vamos montar uma banda, se os caras tocam nós também podemos’. E era assim mesmo!”, conta.

DSC_0458

Cartaz do show da banda Fugazi, realizado em 1994

As atrações internacionais

Mas não eram somente os artistas brasileiros que faziam questão de incluir Curitiba nas turnês que faziam pelo Brasil, naquela época. De lá para cá, mais de 100 nomes do cenário independente mundial já se apresentaram no 92 Graus. Grupos importantíssimos, como o Fugazi, o Man Or Astroman?, o TSOL, o G.B.H. e o Toy Dolls, só puderam desembarcar para tocar em terras tupiniquins graças ao bar, em uma época na qual não era tão normal que atrações internacionais tocassem na capital paranaense. “O mais legal foi eu ter conseguido colocar as bandas daqui para abrir esses shows”, afirma.

flymagog

Os inúmeros obstáculos vencidos

Nesses mais de 20 anos de história, o 92º esteve várias vezes na iminência de ser mais um dos inúmeros bares que já encerraram as atividades em Curitiba. “Nós passamos por seis ou sete lugares na cidade, sempre pagando aluguel. Nunca tivemos uma sede própria”, explica. Em 2010, por exemplo, o local quase fechou definitivamente. Enfrentando dificuldades financeiras para manter o estabelecimento, faltou pouco para J.R. desistir de batalhar contra tudo e contra todos.

A persistência, porém, sempre falou mais alto e manteve o sonho vivo. “Você não sabe se consegue viver sem aquilo ou se aquilo consegue viver sem você”, brinca. Porém, não é fácil manter um local que abriga, essencialmente, bandas desconhecidas do grande público. Contratar somente grupos que tocam covers ou abrir a casa só com o som comandado por DJs, tocando músicas conhecidas, é muito mais rentável. “Nos bares que mais enchem, a música é a última coisa que as pessoas notam”, alega.

Em Curitiba, o público costuma prestigiar bares com músicas cover ou ambiente, o que torna o trabalho das bandas autorais, e dos locais que oferecem espaço para esses grupos, ainda mais difícil. “Acho que, até hoje, isso não mudou. As pessoas, quando vão a um bar, querem ouvir um som mais conhecido”, afirma.

O reconhecimento da cena musical curitibana

Todo o esforço para manter o Ninety Two Degrees em funcionamento durante esses mais de 20 anos é reconhecido e admirado pelos músicos da cidade. O ex-vocalista do C.M.U. Down, Mauro Sniecikowski, que hoje mora em Florianópolis, não esquece a relevância que o bar tem para a cena da capital. “A importância do 92 na carreira do C.M.U. Down foi substancial. Fizemos vários shows no porão da Visconde. Na época, era um dos poucos bares que abriam as suas portas para os grupos autorais”, relembra.

A postura de J.R., sempre procurando movimentar a cena cultural da cidade, também é ressaltada. “Nos anos 1990, ele foi o cara que tomou a frente na cena rock de Curitiba e chegou a criar, inclusive, o Bloody Records, que culminou com o lançamento de diversos compactos, ainda em vinil, das principais bandas da cidade, na ocasião”, conta o ex-vocalista.

Praticamente todas os artistas autorais de Curitiba passaram pelo 92 Graus, em algum momento de suas carreiras. “Tenho ótimas recordações de nossos shows lá. Acredito que, ao lado do Lino’s, são os dois principais bares da história do underground curitibano”, finaliza Mauro.

350485818

A histórias

Com tanto tempo de funcionamento, passando por vários locais e recebendo pessoas dos mais variados estilos, J.R. já vivenciou as histórias mais mirabolantes possíveis. Nos anos 1990, por exemplo, ele reuniu os integrantes das bandas Intruders, C.M.U. Down e U.V Ray para uma “invasão da Rua XV”. A ideia era mostrar ao público em geral que existia vida na música curitibana. “Tocamos o dia todo na rua. Era época de Natal, estávamos vestidos de Papai Noel. Tomamos um porrete, foi muito legal”, conta.

Já em 1996, J.R. organizou uma “passeata” reivindicando espaço para as artistas da cidade. Foi criada toda uma expectativa de apoio à causa, que hoje é motivo de risos. “Foram 20 pessoas, mas tudo bem. Estávamos lá na Rua XV com uma faixa dizendo prestigiem as bandas independentes de Curitiba”, relembra animado.

A lista de bandas

J.R. já passou por inúmeras bandas, desde o começo dos anos 1980. A primeira, criada em 1981 para participar de um festival no Colégio Bagozzi, foi a Caso Sério. Em 1984 veio o Entre Aspas. Em Florianópolis, onde morou durante algum tempo, ele participou de mais dois grupos, Rebelião e Os Estranhos. De volta à Curitiba, a lista de bandas aumentou consideravelmente. Julie Et Joe, Intruders, Magnéticos, Limbonautas e Kings’tone, entre outros projetos, tiveram a participação do músico.

Atualmente, a bola da vez é a recém montada The Specialites. “Só tem velho. Esses dias nós ensaiamos três horas e eu passei a semana inteira com dores. Parecia que tinha jogado meia hora de futebol”, brinca. No momento, a banda está em processo de “autoconhecimento”, ensaiando e compondo. A intenção é, futuramente, gravar um CD, mais um para a história fonográfica do músico.

logomateria

A logomarca do Espaço Cultural 92° (Foto – Arquivo pessoal/JR)

Valorizar o que é nosso

Diversas cidades do país possuem uma cena musical parecida com a de Curitiba. Salvador tem o Axé, São Paulo e Porto Alegre o Rock’n’roll e Belo Horizonte o Heavy Metal. A diferença é o apoio e a união de todos, bandas, produtores, casas de show e público para fazer com que as coisas aconteçam nesses locais.

A capital paranaense engloba várias vertentes da música. Do Thrash Metal do Terrorzone ao samba de Maytê Corrêa, todos possuem qualidade suficiente para seguirem em frente. “Nós já vivemos uma nova dinastia, estamos todos ficando velhos. A nova geração tem que aprender a dar valor para as coisas que nós temos aqui”, afirma J.R.

Nos anos 1990, Curitiba viveu uma época de ouro na música, quando a maioria dos artistas se uniram e procuraram remar para o mesmo lado. Reviver esse período, na visão do eterno otimista J.R., ainda é possível. “Não é utopia. Está acontecendo novamente. Existem várias bandas boas e, mais do que nunca, Curitiba tem vários espaços para tocar. Muitas cidades não têm o que nós temos aqui”, desabafa.

A própria mídia uma grande parcela de culpa e pode auxiliar muito mais a cena a se restabelecer. “Acho que o público não conhece muito a música daqui. Não existe um meio de divulgação específico”, opina. Em nossa década mais frutífera, a música de Curitiba fez parte da programação de vários veículos de comunicação. Na TV Educativa, o diretor Cyro Ridal, levava ao ar o Ciclojam. No programa, que era gravado no Teatro Paiol, bandas como o Infernal, o Dry Clamour, o Pelebroi Não Sei e o Wandula eram entrevistadas e tocavam ao vivo.

Outro grande canal de divulgação foi o Caderno Fun, do jornal Gazeta do Povo. Comandado, na época, pelo jornalista Abonico Smith, a publicação transformou alguns músicos curitibanos em verdadeiras celebridades. “Eu cansei de tomar geral e o policial dizer que me conhecia de algum lugar. Eu respondia que tinha saído no jornal da semana passada”, brinca J.R.

A frequência de shows

No período áureo do bar, entre 2000 e 2006, o 92º recebia de 600 a 700 shows por ano. Atualmente, o local tem, no mínimo, uma apresentação de bandas autorais em cada final de semana. 70% da bilheteria é cedida aos artistas, ficando 30% para a casa. “Com a nossa porcentagem, nós conseguimos pagar as despesas, funcionários, impostos e repor algum equipamento que apresente defeito”, conta.

Apesar das dificuldades, J.R. encara o trabalho com uma espécie de pontapé inicial na carreira dos músicos. “Quando você abre espaço para uma banda alternativa, que ninguém conhece, você também está investindo neles”, explica.

Com uma história tão rica na vida cultural de Curitiba, o 92º segue uma caminhada de obstáculos e superação. Lar da música autoral da cidade há quase três décadas, o espaço vai deixando de lado os momentos ruins para, cada vez mais, ser reconhecido, até pelas pessoas mais improváveis, como um dos celeiros de talentos do país. “Uma vez a mãe de um garoto me falou que não sabia o que nós fazíamos aqui, porque o menino chegava em casa todo roxo e sujo, mas passava a semana tão tranquilo. Eu falei para ela: a senhora nem imagina”, finaliza J.R.