Durante a curta trajetória no mundo musical, o vocalista do Joy Division deixou um legado de letras melancólicas e profundas

“Ande em silêncio, não vá embora em silêncio. Sua confusão, minha ilusão, destruindo-se como uma máscara de ódio de si mesma. Confronta e então morre. Não vá embora”.

Os versos de “Atmosphere” refletem até hoje a aura poética e perturbada do cantor Ian Curtis, vocalista do Joy Division, que cometeu suicídio no dia 18 de maio de 1980, mas deixou um legado poético que permanece até hoje




O amor vai nos separar, novamente

Manhã do dia 18 de maio de 1980. Dormindo na casa da mãe, a jovem Deborah Curtis acorda ao som de “The End”, do The Doors. Surpresa por ouvir no rádio uma música com essa carga emocional logo cedo, ela se dá conta de que estava sonhando.

Passado o susto, Deborah se levanta para se vestir e ir para casa e escuta a mãe se oferecendo para acompanhá-la. A jovem não acha necessário e, perto do meio dia, ela pega a filha Natalie e sai.

O marido de Deborah, o cantor e compositor Ian Curtis, passou a noite na residência do casal, sozinho, e deveria estar saindo para encontrar os companheiros de banda e viajar para a primeira turnê do Joy Division nos Estados Unidos.

Ela estaciona em frente à casa, desce do carro e percebe que as cortinas estão fechadas. Uma pálida luz brilha lá dentro, mas tudo está em silêncio. Deborah cumprimenta sua vizinha, Pam Wood, abre a porta e entra. Estranhamente, o odor de cigarro não impregnava o ambiente, como de costume.

No prato do toca-discos, o álbum “The Idiot”, do cantor Iggy Pop, ainda está girando. Deborah, então, nota que um bilhete está sobre a lareira. Ao se abaixar para pegar o envelope, ela percebe que Ian está ajoelhado no chão da cozinha, perto da janela.

Chegando mais perto, ela vê que o marido está com as mãos em cima da máquina de lavar roupas, com a cabeça  curvada, inerte. Como uma testemunha de seus últimos momentos, a corda do varal está em volta do pescoço do companheiro de Deborah, revelando o que se passou naquela manhã derradeira. Aos 23 anos, Ian se suicidou, colocando fim a uma vida ao mesmo tempo genial e perturbada.

A última foto tirada por Deborah mostrando Ian e sua filha, cinco dias antes da morte do cantor

Eternos

Com apenas dois álbuns full length gravados ao lado do Joy Division, Curtis deixou uma marca indestrutível na história da música e fez com que a banda se tornasse um dos alicerces do Pós-Punk britânico, influenciando até hoje toda uma geração de músicos.

Ian Curtis nasceu no dia 15 de julho de 1956 em Old Trafford, na cidade de Manchester, na Inglaterra, e deu os primeiros passos no mundo da música em 1976.

Usando o pseudônimo de “rusty” (enferrujado), Ian fez um anúncio na imprensa musical inglesa procurando pessoas para montar uma banda, mas só recebeu a resposta de um guitarrista chamado Iain Gray.

Os dois, então, passaram a frequentar os pubs de Manchester em busca de outros músicos e, durante essa peregrinação, Curtis conheceu os integrantes de seu futuro grupo.

No dia 20 de julho de 1976, Ian levou a namorada, Debby, ao Lesser Free Trade Hall para assistir a um show do Sex Pistols. Lá também estavam três jovens que Curtis havia conhecido durante a sua procura por integrantes para a futura banda: Bernard Sumner (guitarra), Peter Hook (baixo) e Terry Mason (bateria). Como o trio estava procurando um vocalista, Curtis resolveu tentar a sorte.

O grupo foi batizado de Warsaw (nome inspirado na música “Warszawa”, do álbum “Low”, de David Bowie), e fez o primeiro show no dia 29 de maio de 1977. Nessa apresentação, que aconteceu no Eletric Circus e ainda contou com a participação das bandas Buzzcocks, Penetration, John Cooper Clark e John The Postman, o Warsaw teve Tony Tabac na bateria.

Dois anos depois, já com Stephen Morris nas baquetas, a banda assumiria a sua identidade final. Sabendo que existia um grupo em Londres chamado Warsaw Pakt, Ian e seus companheiros adotaram o nome definitivo: Joy Division. Ele foi retirado do livro “A Casa Das Bonecas” (1956), do escritor polonês Yehiel De-Nur.

No texto, o autor aborda as atrocidades cometidas pelos nazistas durante o Holocausto e cita um bordel, que dá título ao livro, localizado em um bairro chamado pelos alemães de Joy Division, a “Divisão da Alegria”.

No mesmo ano, o quarteto lançou o primeiro trabalho, o EP “An Ideal For Living”, que acabou chamando atenção do empresário e apresentador Tony Wilson, fundador da Factory Records.

Para bancar a gravação, Ian fez um empréstimo no banco no valor de 400 mil libras. Em junho de 1979, já contratados pela Factory, o quarteto lançou o álbum de estreia, “Unknown Pleasures”, que foi gravado no Strawberry Studios, em Stockport, e produzido por Martin Hannett.

A importância desse disco para o Rock inglês é gigantesca. Com uma sonoridade enraizada no Pós-Punk, Curtis cantava sobre morte e solidão de uma forma única, liricamente belíssima. “Cores diferentes, tons diferentes. Eu levei a culpa por cada erro que foi cometido. Sem direção, tão evidente de se ver. Uma arma carregada não te libertará, é o que você diz”, diz a letra de “New dawn fades”.

O disco apresentava músicas que se tornariam atemporais, como “She’s lost control” e “Shadowplay”. O tom sombrio das letras de Curtis era ainda mais amplificado pela construção musical feita pelos teclados e sons inseridos no meio das canções.

Em março de 1980, a banda iniciou a gravação do segundo álbum, “Closer”, no Britannia Row Studios, em Londres. A produção, novamente, foi de Martin Hannett. O disco foi lançado em junho, mas acabou sendo um álbum póstumo.

Com o suicídio de Ian, tudo que envolveu o disco acabou recebendo ainda mais destaque. A começar pelas letras que, se antes eram vistas como abordagens poéticas de temas soturnos, como a morte e a solidão, passaram a soar quase que como uma carta de despedida. “Quando a rotina corrói duramente e as ambições são pequenas,  o ressentimento voa alto, mas as emoções não crescerão. Estamos mudando nossos caminhos, pegando estradas diferentes. Então, o amor, o amor vai nos dilacerar, outra vez”, diz a letra de “Love will tear us apart”.

A capa de “Closer” é a foto de uma lápide do Cemitério Staglieno, que fica em Gênova na Itália. Ela foi criada antes da morte de Curtis, mas também soa como uma espécie de premonição.

Deborah e Natalie Curtis, em 2007

“Uma nuvem paira sobre mim, marca cada movimento”

Ian era casado desde 1975 com Deborah Curtis e tinha uma filha chamada Natalie, que hoje tem 35 anos de idade e trabalha como fotógrafa. Você pode ver o trabalho de Natalie neste link.

Naquele momento, a vida do casal não ia bem e Deborah tinha decidido entrar com um pedido de divórcio por causa de um caso extraconjugal que o cantor mantinha com a jornalista belga Annik Honoré.

Só que nem Deborah e muito menos os companheiros de Ian suspeitavam que a ascensão do Joy Division, que estava prestes a embarcar para a primeira turnê nos EUA e começava a chamar a atenção da mídia especializada, estava destruindo a sanidade mental do cantor.

Além disso, Curtis sofria de epilepsia e os ataques causados pela doença vinham se tornando cada vez mais frequentes, provavelmente em função de todo o stress que ele vinha passando. Assim, o cenário final estava delineado.

O túmulo de Ian Curtis no Cemitério de Macclesfield

O ato final

Alguns meses antes de tirar a própria vida, Ian já havia tentado se suicidar tomando uma overdose de fenobarbitona (um medicamento usado no tratamento de convulsões). Depois da morte do cantor, Deborah percebeu que o episódio foi uma espécie de pedido de socorro.

No livro “Tocando A Distância”, lançado originalmente em 1995 e que teve sua versão em português publicada neste ano no Brasil, Deborah afirma que Ian levava a vida como se estivesse atuando e que, provavelmente, planejou o fim. “Ian teria sido um talentoso ator. Ele convenceu a todos nós que os conflitos na vida dele eram causados por influências externas e o stress que ele estava sofrendo era um resultado direto do estilo de vida que estava levando. Realmente, como seu próprio juiz e carcereiro, ele havia arquitetado seu próprio Inferno e planejado sua própria queda. As pessoas ao seu redor eram meramente personagens menores em sua peça”, conta.

Ian Curtis foi cremado no dia 23 de maio de 1980 e as cinzas foram enterradas no Cemitério de Macclesfield. Na lápide do túmulo, foi gravada a frase “Love will tear us apart” (O amor vai nos separar), título de uma das canções mais conhecidas do Joy Division.

As palavras foram escolhidas por Deborah porque, segundo ela, a música resumia o que os dois sentiam um pelo outro. Em 2008, a lápide foi roubada e substituída por outra pouco tempo depois.

A vida pós-Joy Division

Após o fim do Joy Division, Bernard, Peter e Stephen montaram o New Order, reforçados pela tecladista Gillian Gilbert que, na época, era namorada do baterista e, hoje, é a esposa dele.

O quarteto adotou uma temática musical mais dançante e eletrônica que acabou se consolidando ao longo do tempo e fez com que o grupo se tornasse uma referência em seu estilo. Várias músicas da carreira do New Order viraram grandes sucessos, como “Blue monday” e “Bizarre love triangle”.

Claramente, o mundo do Rock é apaixonante e sedutor, mas também é cruel. Ian Curtis é um dos muitos exemplos de artistas que são jogados em uma roda viva de responsabilidades e acabam não sabendo lidar com esse peso.

A rotina de fazer shows semanalmente, atender a imprensa, compor e, principalmente, ficar exposto de maneira nua e crua no palco pode ser algo muito perigoso. Ian sucumbiu a essas armadilhas, mas também soube falar sobre elas de uma forma inigualável. Por causa disso disso, a obra de Curtis continua viva e atual.

Assista a três momentos marcantes na carreira de Ian: Os clipes de “Love will tear us apart”, “Atmosphere” e “Shadowplay” (gravada ao vivo na primeira aparição do Joy Division na TV, em setembro de 1978 no programa Granada Report, apresentando por Tony Wilson). 

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