1978, ditadura militar. Tempos sombrios assolavam o Brasil, impondo consequências que são sentidas até hoje. Nesse cenário soturno, uma guitarra chorava, gritava como que querendo chamar a atenção do país. “Um dia vestido de saudade viva faz ressuscitar. Casas mal vividas, camas repartidas faz se revelar”, cantava em “Revelação” um jovem compositor vindo de Orós, no Ceará, que começava a construir a sua história na MPB.
No último sábado (30) Curitiba recebeu o autor dessa pérola. Raimundo Fagner se apresentou no Teatro Positivo e passou a limpo os seus mais de 40 anos de estrada.
Dono de sucessos atemporais como “Canteiros”, “Noturno” e “Fanatismo”, Fagner se mantém como um dos artistas mais populares do país em uma época onde ser “popular” não significa mais, necessariamente, fazer boa música. Na contramão desse novo modo de ver a arte, o cantor e compositor cearense deixa a sua obra falar por si só. E ela fala.
O show
Fagner iniciou a apresentação entrando sozinho no palco, tocando “Canteiros” somente com voz e violão. No meio da canção, Cristiano Pinho (guitarra), Marcus Vinnie (teclados), Marcos Farias (teclados e acordeon), André Carneiro (baixo), Robertinho Marçal (bateria) e seu fiel escudeiro Manassés Souza (violões e viola) se juntaram à execução da música.
Em uma entrevista exclusiva concedida ao Cwb Live, que você pode ler abaixo, Fagner revelou o seu prazer em tocar com a sua atual banda. “Acima de tudo eu vou levar um excelente time de músicos. Poucas vezes eu me senti tão confortável tocando. O público verá um show maduro de um artista consciente do que está fazendo”, afirmou. Durante o show os músicos fizeram jus aos elogios.
Na sequência Fagner cumprimentou o público. “Boa noite. Espero que nós tenhamos uma noite de música e um pouco de emoção”, disse. Assim seria. Em seguida o cantor homenageou Gonzaguinha e Elis Regina, tocando “Feliz” e “Mucuripe”.
Antes de “Guerreiro Menino”, Fagner saudou o ex-meia do Coritiba, Alex, e o juiz Sérgio Moro, que estavam na plateia, e dedicou a música aos dois filhos da terra. “Um homem se humilha se castram seu sonho. Seu sonho é sua vida e a vida é trabalho. E sem o seu trabalho um homem não tem honra. E sem a sua honra se morre, se mata”, diz a letra.
Dono de grandes sucessos, Fagner em vários momentos deixou que a plateia cantasse as músicas. Esse tipo de atitude estabelece uma cumplicidade entre artista e público que acaba sendo uma das bases para que esse respeito continue existindo.
Um dos grandes momentos do show foi “Noturno”, executada de forma emocionante, carregando em cada nota e em cada frase todo o peso poético e emotivo com que foi concebida. “Hoje só acredito no pulsar das minhas veias. E aquela luz que havia em cada ponto de partida há muito me deixou”, canta Fagner. A letra pode tanto se moldar à desilusão com os “amores” que a vida proporciona como às relações humanas em geral, forjadas cada vez mais em interesses e futilidades. Um retrato cada vez mais real da vida moderna.
Fagner conduziu a apresentação com muita simpatia apresentando um setlist que ainda teve entre outras canções “Borbulhas de Amor”, “Deslizes” e “Deixa Viver”. Essa, aliás, é uma das características mais marcantes dos grandes artistas. Eles não precisam usar de artimanhas técnicas que desviem a atenção do foco principal: sua música. “Chorando E Cantando” encerrou o show.
O texto, parte essencial da obra de um compositor
A olhos vistos, a parte textual da música brasileira vem sendo deixada de lado pelas novas gerações. Como cada vez mais o lado comercial se sobrepõe à qualidade do que é gravado e levado ao público brasileiro, concatenar boas ideias de uma forma poética vem se tornando um dom para poucos.
Raimundo Fagner é um desses sobreviventes. “Eu sempre tive uma ligação muito grande com a poesia e a música foi uma porta para eu exercê-la. Desde que comecei a compor eu sempre procurei poetas de qualidade. Depois tive a oportunidade de trabalhar com os grandes poetas como Vinícius, Goulart, Chico e aqueles que foram se formando da minha geração como Fausto Nilo, Abel Silva e Capinan”, diz.
Esse interesse na leitura de autores importantes construiu dentro de Fagner a consciência do quão importante é saber se expressar por meio de sua arte. “Isso me estimulou para que eu pudesse sempre trabalhar com um texto bom, tendo essa referência. Isso é um retrato da minha história, da minha adolescência em colégios sempre preocupado e ligado em estudar os grandes poetas. É uma coisa do tempo de colégio e eu trouxe isso para a minha música”, complementa.
A importância dos parceiros
Um artista solo, apesar da nomenclatura, não atravessa décadas de criação de forma solitária. Em suas quatro décadas de carreira, Fagner se cercou de parceiros importantes que contribuíram sobremaneira na construção de sua obra musical. “Ao longo dos anos eu fui pegando pessoas que pudessem ajudar na formação dessa identidade musical. Durante uma época foi o Robertinho (de Recife), depois o (Michael) Sullivan, o Manassés enfim você vai formando ao longo dos anos o teu ‘querer’, aquele som que você quer passar. E todos eles tem uma parcela nisso”, afirma.
Pássaros Urbanos
O mais recente álbum de Fagner, “Pássaros Urbanos”, lançado no ano passado, mantém a qualidade musical e textual sempre presente em sua obra. São 11 canções que ratificam a afirmação do compositor que valoriza e faz questão de ter por perto seus velhos e novos parceiros. “Eu comecei a pensar nas músicas desse disco juntamente com o Fausto (Nilo) e depois procurei o Clodo (Ferreira). Não achei o Belchior, então tive que regravar ‘Paralelas’. Também chamei o Zeca Baleiro para participar de uma música porque é uma pessoa que vem tendo uma presença muito forte na minha carreira. Então é esse universo que eu pude trazer para um disco, que é muito pouco, de pessoas que vêm comigo há muito tempo e outras que vêm se somando”, explica.
A produção do álbum ficou a cargo de Michael Sullivan, com quem Fagner tem uma relação de amizade e trabalho desde os anos 1980, quando Sullivan teve participação em incontáveis grandes sucessos radiofônicos como a música “Retratos E Canções” da cantora Sandra de Sá. “O ‘Pássaros Urbanos’, coincidentemente caiu novamente na mão dele. Nós vamos buscando coisas na vida, mas outras vão tendo a coincidência de se juntarem em determinados momentos”, diz.
Homenagem ao juiz Sérgio Moro
Um canção que não está em “Pássaros Urbanos” vem chamando a atenção da imprensa e do público brasileiro. Ela surgiu em um daqueles momentos quase mediúnicos que todo compositor tem e está ligada de forma muito forte à capital paranaense.
Nos últimos meses Curitiba se tornou a capital brasileira do combate à corrupção, por conta da atuação do juiz Sérgio Moro na condução da operação Lava Jato.
O que poucos sabem é que Fagner está compondo uma canção inspirada na atuação de Moro. A conexão ocorreu em um evento no Rio de Janeiro onde o compositor foi convidado a gravar uma mensagem para o juiz. “Primeiro eu quero parabenizar o Paraná por ter um brasileiro como o Sérgio Moro. O Paraná sempre foi um estado calado. No Nordeste, principalmente, nós ouvíamos falar pouco. É um estado rico, com qualidade, frio, então as pessoas são mais introvertidas”, opina Fagner.
Essa timidez vem sendo posta de lado não com palavras, mas com as atitudes de Moro. O juiz se tornou uma personalidade nacional e um dos poucos símbolos do combate ao mar de lama que insiste em atrasar a sociedade brasileira. “O Sérgio Moro com seu estilo mineiro, calado, vem fazendo um trabalho espetacular e tem dado esperança a muitos brasileiros que não tinham mais essa esperança por verem um país corrupto, que estourou todos os limites da impunidade”, diz.
A música está em processo de composição e, levando em conta a admiração que Fagner demonstra, deve ser finalizada em breve. “O Sérgio Moro é uma agulha no palheiro. Todos sentem falta de mais gente com esse tipo de atitude”, complementa.
Música e futebol
Além do seu trabalho como compositor e músico, Fagner também é um amante incondicional do futebol. Essa paixão fez com que ele se tornasse um frequentador assíduo de peladas organizadas por artistas como Chico Buarque e seu time, o Politheama, e jogadores como o camisa 10 da Gávea, Zico.
Em Curitiba, Fagner é padrinho do J. Malucelli desde a época em que o clube se chamava Malutrom. “Eu tenho um envolvimento afetivo de amizade e de trabalhos com o estado do Paraná e com o J. Malucelli. Além disso o público sempre foi muito fiel comigo aí. Ao longo dos anos eu tenho um relacionamento estreito com o Paraná”, diz.
Gravadoras, Internet e pirataria
A Internet revolucionou de forma avassaladora a indústria musical. Ironicamente, ainda hoje as gravadoras não aprenderam a lidar com as facilidades e desafios das novas tecnologias. Para o artista e sua missão de criar, Fagner acredita que a mudança não foi tão grande. “Fazer música continua sendo a mesma coisa. Hoje é mais fácil, talvez, pelo fato de que com a Internet você pode resolver coisas sem a presença da pessoa. Mas antigamente também existia o telefone, a carta… Em relação à criação eu acho que continua a mesma coisa, tem só a facilidade da velocidade, mas não da criatividade, da arte em si”, analisa.
Mas se a parte criativa continua no mesmo compasso, não se pode afirmar que o lado comercial do negócio esteja caminhando bem. A venda de CDs, principalmente, vem diminuindo por conta da pirataria e da facilidade de ouvir os álbuns no YouTube, por exemplo.
Como um artista que passou por quatro décadas de mudanças na indústria fonográfica, Fagner pode analisar de forma muito clara essa realidade. “Em termos de mercado é outra história, é uma tragédia. Eu peguei o ‘boom’ desse mercado e hoje ele está nessa situação. Isso não faz parte da gente. Nós temos que tocar o barco e fazemos isso da melhor maneira possível, independente de como a situação esteja”, diz.
O cantor acredita que a maior parte dessa nova realidade precisa ser resolvida pelas gravadoras. “O problema de mercado é um problema das gravadoras. Nós sentimos porque realmente era fantástico, o mercado do Brasil era um dos maiores do mundo. Eu vendia milhões de discos e hoje isso não existe mais. Mas existe o desafio de continuar com a mesma qualidade na produção porque você não depende da vendagem para continuar com a vontade de fazer o que você faz”, afirma. “Nós sentimos o estrago que está, mas eu não perdi apetite nenhum por conta dessa coisa da pirataria ou do mercado”, complementa.
“Revelação”, o divisor de águas
Em seus mais de 40 anos de estrada, Fagner produziu inúmeras pérolas que fazem parte da história da MPB. Uma delas é “Revelação”, que abre o álbum “Eu Canto – Quem Viver Chorará” (1978). “Essa foi a música que me colocou nas rádios AM. Para falar sobre essa canção eu tenho que abordar aquele momento. Eu era um artista que estava ligado muito mais às rádios FM. Na época existia essa diferença entre os artistas que eram mais para os universitários, as classes mais privilegiadas, e os que eram do povão. E a minha meta sempre foi tocar para o povão. Essa música veio quebrar isso. Foi a minha primeira canção a estourar no rádio”, relembra.
“Revelação” acabou sendo um divisor de águas na carreira de Fagner por conta do impacto que teve em todo o Brasil. E muito dessa força que a canção carrega foi imposta pela guitarra magistral de Robertinho de Recife. “Eu tenho certeza que ali foi a primeira vez que uma guitarra falou alto na música brasileira, a primeira vez que um vinil gemeu aqui no Brasil”, afirma Fagner.
Destoando do que normalmente acontece em uma canção composta de forma “tradicional”, onde normalmente o solo vem da metade para o final, “Revelação” já começa com a guitarra de Robertinho à frente em um fraseado inspiradíssimo. “Nós tínhamos uma música muito comportada. Existia a própria Tropicália que tinha os Mutantes e outros, mas nenhuma guitarra tinha falado tão alto quando a do Robertinho”, analisa.
Além da marcante parte instrumental, a letra da canção também chamava a atenção porque exprimia um pouco da realidade da época. Na visão de Fagner, “Revelação” ajudou a música brasileira a se libertar das influências estrangeiras. “A poesia dela, o sentimento, batia muito com o que estava acontecendo no Brasil em 1978. É uma música muito importante na minha discografia e eu acho que também despertou os guitarristas que estavam com aquela coisa da caretice da música brasileira, com todo mundo ouvindo o que vinha de fora, como Beatles e Yes. Eu acho que ali nós ‘desencaretamos’ a música brasileira”, complementa.
Raimundo Fagner representa o alto escalão da MPB. Aquele tipo de artista que sempre se preocupou com a qualidade de suas canções em seus mais variados aspectos, das melodias e letras até a composição das bandas que o acompanham ao vivo. Tê-lo ainda na ativa não só apresentando seus grandes sucessos, mas principalmente produzindo material novo, faz muito bem para a música brasileira.
Confira três vídeos da apresentação: “Revelação”, “Noturno” e “Guerreiro Menino”.
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