Texto e foto: Marcos Anubis
A música curitibana é um assunto repleto de variáveis diferentes. Uma pergunta, porém, é recorrente em todos os questionamentos e se tornou um enigma quase indecifrável: por que as bandas da capital paranaense nunca conseguiram se estabelecer de forma duradoura no cenário musical brasileiro?
A partir de hoje, o advogado e escritor Eduardo Mercer lança mais algumas informações e opiniões nesse eterno dilema. E a sua contribuição pode ser considerada a mais completa obra abordando a música curitibana já lançada.
Afinal, o livro “Uma Fina Camada de Gelo – O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba” é um mergulho profundo nessa cena. São 558 páginas de entrevistas feitas especialmente para a obra. Eduardo também reuniu entrevistas e matérias já publicadas, buscando um resgate histórico dessas informações.
A programação de lançamento começa hoje e vai até sexta-feira. Nesta quarta-feira (25), Eduardo Mercer estará na Livraria Arte & Letra(Alameda Dom Pedro II, 44, Batel) autografando os exemplares a partir das 17h30. Já na quinta-feira (26) e sexta-feira (27), o Jokers receberá sete bandas que fazem parte da história da música da capital paranaense: Kráppulas, Relespública, Maxixe Machine, Black Maria, Intruders, Tessália e Sr. Banana. As três últimas não tocam juntas há mais de vinte anos e estão se reunindo especialmente para a ocasião. Os shows começam às 21h.
O livro “Uma Fina Camada de Gelo – O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba” começou a ser pensado em junho de 2013. “Foi uma ideia do Fabiano Neves, que participou da cena musical curitibana como baterista da Falsa Doutrina, no começo dos anos 1990, e depois criou o Sr. Banana com o Sergio Soffiatti. Ele pensou que seria interessante ter um registro em livro e vídeo sobre as bandas da nossa geração e me convidou. Eu já conhecia o Fabiano desde aquela época, cheguei a participar de alguns shows da Falsa Doutrina, e ele sabia que eu gostava de escrever”, explica Eduardo. O filme está sendo produzido pelo documentarista Vinicius “Tchê” Ferreira e já está em fase final de edição.
Formação musical
Eduardo Mercer exerce a advogacia desde 2009. Durante a sua vida, porém, a música sempre esteve presente. Sua primeira incursão no mundo musical aconteceu em 1986 no grupo Quadrilha de Morte. “Eu tinha 14 anos. Era a banda do Maurício Lemanski (bateria), do Hélio Barreto (baixo) e do Eric Grossner (vocal), que é sobrinho do Rodrigão Barros (Beijo AA Força, Maxixe Machine)”, relembra.
A iniciação de Eduardo no mundo do Rock foi consumada com algumas dicas do guitarrista do Beijo AA Força, Luiz Antônio Ferreira. “Embora eu tocasse violão clássico desde os sete anos, eu não sabia absolutamente nada de guitarra. Até que em um dos ensaios na casa do Rodrigão, o Ferreira me ensinou a fazer os acordes pesados, fundamentais para tocar música Punk e Metal. Eu tinha uma guitarra Giannini Sonic que não deixou nenhuma saudade (risos) e um caixa amplificada Frahm. Depois de algumas semanas, fui demitido da banda e o próprio grupo acabou, dando origem ao Missionários”, complementa.
Seu próximo trabalho foi com a banda Grande Problema, em 1988, ao lado do baixista e artista gráfico Rodrigo Canales. O grupo bebia nas influências do Rock dos anos 1960 e no Blues. “A banda contava, também, com o Daniel Snege no vocal, o Fabio Solter na bateria e o grande guitarrista Lucio Gomes. Nós gravamos três músicas próprias no Estúdio Solo, em março de 1990. Fomos a terceira ou quarta banda a gravar lá e, aí, o grupo acabou”, relembra.
Depois, ainda em 1990, os músicos do Grande Problema se uniram ao vocalista Paulo Scudeto e fundaram a Alley Blues. “Me arrisco a dizer que fomos a primeira banda de Curitiba a interpretar clássicos do Blues e também a compor nesse gênero, embora A Chave tivesse flertado com o Blues, mas sendo roqueira em sua essência. Fizemos muitos shows em teatros e bares de Curitiba, tocamos algumas vezes no interior do estado e em São Paulo. Nós gravamos três músicas próprias no estúdio do Juliano Zanoni e eu ainda tenho alguns K7s de vários shows ao vivo. Deixando de lado aquela modéstia hipócrita curitibana, afirmo que a Alley Blues era uma ótima banda”, complementa. O grupo acabou em 1992.
Logo em seguida, Eduardo foi convidado a fazer parte do Graoara, que tocava um estilo totalmente diferente de seus trabalhos anteriores. “Foi a primeira banda de Reggae Roots de Curitiba. Foi muito divertido tocar Reggae, um estilo que eu ouvia quando era criança. O pessoal do Graoara era muito alto astral e as músicas da banda eram ótimas. Tanto que, mesmo após o fim da banda, em 1994, a gente nunca deixou de se reunir para fazer um som. A última vez foi no início deste mês, quando tocamos das quatro da tarde às dez da noite, sem parar. No repertório, nós tínhamos as nossas músicas autorais, algumas do Blindagem e do Djambi, Bob Marley, clássicos dos anos 1980 e o que mais desse na telha. De 1988 a 2007 também toquei em várias bandas covers”, conta.
A garimpagem
A pesquisa para encontrar material (entrevistas, matérias, notas, etc) não foi uma tarefa fácil. Afinal, a literatura musical curitibana ainda é muito pequena. “Comecei vasculhando o Google e o meu arquivo pessoal, pois tenho o hábito de guardar recordações. Eu tinha várias edições do Trendie, filipetas dos shows e festivais nos quais toquei e alguns CDs de bandas locais. Mas as maiores fontes foram as entrevistas presenciais com alguns dos principais nomes da cena curitibana. Na reta final, devo muito ao Mark Zuckerberg, que inventou o Facebook e me ajudou a encontrar muitas fotos, filipetas, flyers, cartazes, etc”, explica.
Na lista de entrevistados, estão músicos importantes, entre eles Fabio Elias (Relespública) e Rodrigão (Beijo AA Força). O autor também incluiu personagens que mostraram outra visão sobre o “homo pinheiralis” (o habitante de Curitiba), entre eles, o jornalista Eduardo Fenianos, o Urbenauta.
Todos contribuíram de alguma forma, mas alguns desses personagens, porém, deram depoimentos mais reveladores. “Alguns entrevistados se restringiram a contar as histórias de suas bandas. Outros foram além e mostraram ter uma visão mais ampla sobre a cena curitibana, a alma curitibana e a indústria fonográfica. Um dos entrevistados que colocou muitos pingos nos ‘is’ foi o Abonico Smith (jornalista). Não se podia esperar outra coisa, afinal, o Abonico acompanha profissionalmente essa história desde 1987. A entrevista dele foi esclarecedora e corajosa”, diz.
Falando em coragem, talvez as frases mais reveladoras e polêmicas tenham partido do produtor Carlos Eduardo Miranda, uma figura essencial no rock brasileiro a partir da década de 1990. Ele fez parte do selo Banguela, criado pelos Titãs no início dos anos 1990, que lançou várias bandas daquele período, entre elas, o Raimundos.
Miranda também produziu a coletânea “Alface” (1995), que apresentou ao Brasil quatro bandas curitibanas da época: Boi Mamão, Resist Control, Woyzeck e Magog. Como lhe é peculiar, Miranda foi enfático nas suas opiniões. “Ele criticou bastante a postura dos rockers curitibanos, proferindo diversos palavrões, como de costume, mas sem perder a ternura (risos). A entrevista com o Rodrigão Barros também foi especial, não só pela importância que o Beijo AA Força tem para o rock local, mas porque ele falou sobre tudo, inclusive sexo e drogas. Mas, de modo geral, todas as entrevistas foram úteis para reconstruir esse fragmento da nossa história”, afirma.
Um dos pontos altos do livro é, justamente, a quantidade de histórias que os entrevistados revelaram sobre o “imaginário” da cena curitibana. “Tem a primeira noite do Fabio Elias, o striptease do Abaixo de Deus que causou a destruição de uma casa noturna e o Reinaldo, dos Missionários, cortando o peito com gilete durante um show. Também posso citar os 10 mil shows realizados pelo JR Ferreira no 92 Degrees, o palco desabando na apresentação do Resist Control em Campinas, o acidente que culminou na morte do Daniel Fagundes, a derrota dos Titãs (banda que eu detesto) para o Sr. Banana por 10×0 no RockGol MTV de 1997 e muitas outras. Quem comprar o livro não se arrependerá!”, revela.
Diante de tantas informações, Eduardo faz questão de ressaltar que considera “Uma Fina Camada de Gelo – O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba” uma obra colaborativa.
As barreiras enfrentadas
Hoje, existe uma grande preocupação dos artistas e personalidades em relação às suas biografias. Para os autores, nem sempre é fácil navegar de forma tranquila por esse processo. Eduardo também se deparou com algumas dessas dificuldades. “Um fato que me causou decepção foi a dificuldade para obter histórias envolvendo sexo e drogas, considerando a famosa tríade ‘sexo, drogas e Rock’n’roll’. O curitibano realmente é um povo acanhado (risos)”, diz.
Apesar disso, Eduardo buscou todas as informações que considerava essenciais para construir a narrativa do livro. “De minha parte, perguntei o que bem entendi. Depois de finalizado cada capítulo, eu o enviava à pessoa envolvida para que ela confirmasse se estava tudo certo. Poucos pediram para cortar uma coisa ou outra. Fiz isso porque esse é o primeiro registro histórico exclusivo da música pop curitibana, então tomei todo o cuidado quanto à veracidade das informações”, complementa.
Ao relembrar os quatro anos em que esteve mergulhado nesse universo, Eduardo não esconde que alguns momentos foram bem estressantes. “Eu passei por todas as tonalidades da aquarela de emoções humanas, da angústia à alegria, da euforia ao quase pânico (risos). Minha esposa que o diga! Isso aconteceu porque eu queria concluir o livro de uma vez, mas tenho um escritório de advocacia para tocar das 9h às 18h. Então, em algumas semanas, eu tinha que decidir qual dos dois iria negligenciar. Cheguei a fazer dois retiros em Piraquara e um na praia com cerca de cinco dias cada um. Foi uma experiência ótima. Realmente eu me senti escritor nesses retiros”, conta.
A quantidade de páginas do livro, certamente, foi um dos maiores motivos desses momentos mais preocupantes. “Eu nunca tinha escrito uma obra tão extensa, portanto, no começo eu não fazia ideia do tamanho da encrenca em que estava me metendo. E nem imaginava que a obra chegaria a 558 páginas. De qualquer modo, foi um excelente treinamento para a fluência na escrita. Hoje em dia, quando vou redigir uma peça jurídica, escrevo sem muitos entraves. E aprendi bastante sobre a alma do curitibano, um assunto que definitivamente me interessa”, afirma.
Um dos fatores mais importantes no lançamento de uma obra como essa é a possibilidade de as novas gerações conhecerem essa história que foi construída a duras penas. Afinal, mesmo vivendo na chamada “Era da informação”, é difícil encontrar jovens que se interessem e conheçam esse período da música curitibana. “Assim espero! Esse é o objetivo: contar aos mais jovens as dificuldades que tínhamos que enfrentar para fazer música própria em Curitiba, mas, também o quanto a gente se divertiu. Outro objetivo é mostrar que, se faltou algo, não foi qualidade artística. Muita gente fez muita coisa boa, sempre existiram ótimos instrumentistas, cantores e compositores. Uma outra finalidade do livro é deixar registrado o trabalho dos grandes batalhadores pela construção de uma cena musical pop e roqueira nos Pinheirais. Acho que muitas pessoas de outras praças podem vir a se interessar pelo livro, pois existem muitos fãs da música curitibana Brasil afora”, explica.
Apesar da sua satisfação por ter concluído uma obra que envolve tanta informação, uma segunda edição mergulhando ainda mais na cena curitibana, por enquanto, está descartada de forma enfática pelo autor. “De jeito nenhum (risos). Como disse o Rodrigão Barros, esse livro é uma base sólida a ser esmiuçada. Eu escrevi um capítulo sobre a Relespública, mas o Sandro Moser está preparando um livro inteiro dedicado a essa banda. O mesmo vai acontecer com o Beijo AA Força: uma biografia a cargo da Adriane Perin. O pesquisador Manoel Neto também tem vários projetos em andamento sobre o tema, inclusive um belíssimo catálogo de discos, LPs e CDs, já gravados em Curitiba. E espero que vários outros, jornalistas ou não, entrem nessa onda”, afirma.
O momento, agora, é de aproveitar os louros de um trabalho tão difícil de ser desenvolvido. Eduardo tamém espera que o livro traga um novo impulso para a cena musical da cidade. “A ideia é de que traga informações corretas, tanto quanto possível, para que as pessoas que gostam da cena possam conhecê-la ainda melhor e, consequentemente, gostar ainda mais. Que boas almas ajudem a espalhar na web os arquivos de áudio das bandas daqui, de todas as épocas. Que esses apoiadores, e os artistas mais ainda, entendam que o trabalho de divulgação não acaba nunca e ajudem, na medida do possível, a fazer essa divulgação”, diz.
Diante de todo esse entusiasmo, obviamente, a expectativa para o lançamento e para os shows não poderia ser melhor. “Mesmo nessa fase pré-lançamento, o livro vem causando muitos comentários positivos por causa do tamanho (são 558 páginas), estilo descontraído da escrita, por não evitar questões polêmicas e pela qualidade do projeto gráfico. Muitos músicos que tiveram a história de sua banda contada no livro estão ansiosos para ver e ler. Acho que o lançamento da obra e os shows serão um evento muito feliz para a nossa geração. E, talvez, sirvam de gatilho para várias outras coisas bacanas”, finaliza Eduardo Mercer.
Os ingressos para os shows no Jokers estão à venda com preços promocionais. Existe a possibilidade de comprar só as entradas individuais ou um pacote com o livro. Os valores são: R$ 30 (uma noite), R$ 70 (uma noite + livro), R$ 50 (2 noites) e R$ 90 (2 noites + livro). Os bilhetes estão a venda no site Sympla e no próprio Jokers. Serão apenas 150 exemplares do livro por noite e, no dia do show, o valor será outro.
A programação é a seguinte: Quinta-feira (26) – Intruders, Maxixe Machine e Kráppulas. Sexta-feira (27) – Tessália, Sr. Banana & Black Maria e Relespública. O Jokers fica na Rua São Francisco, 164, no Centro.
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