Texto: Marcos Anubis
Fotos e revisão: Pri Oliveira

A banda fez um “ensaio aberto” em Curitiba e mostrou que se mantém como um dos grupos mais criativos do país



Passar mais de três décadas juntos e ainda se manter relevante e inventivo não é uma coisa comum no mundo da música. Sendo assim, o que os Titãs mostraram nessa terça-feira (3), no Teatro Guaíra, durante o ensaio aberto da Ópera Rock “Doze Flores Amarelas”, foi revigorante. O espetáculo faz parte da programação do Festival de Curitiba, o evento mais importante do teatro brasileiro.

Antes do início do show, os diretores Hugo Possolo (ator, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões) e Otavio Juliano (que no ano passado produziu o documentário “Endurance”, do Sepultura) subiram no palco para explicar o que seria o “ensaio aberto”. Visivelmente emocionados, os dois alertaram que existia a possibilidade de parar o show se fosse necessário corrigir algum erro. A interrupção só aconteceu uma vez durante a noite.

Na sequência, as cortinas se abriram para Branco Mello (baixo e vocal), Tony Bellotto (guitarra e vocal) e Sérgio Britto (teclado, vocal e baixo) mostrarem que só melhoram com o passar do tempo. Os três, aliás, sempre foram a alma mais rock’n’roll dos Titãs e, felizmente, essa chama ainda se mantém acesa. Mario Fabre (bateria) e Beto Lee (guitarra) completam a formação atual da banda com muita qualidade.



O show é divido em três atos, que contam a história das estudantes “Marias A, B e C”, interpretadas pelas cantoras Corina Sabba, Cyntia Mendes e Yas Werneck. As meninas, como a maioria dos jovens do mundo atual, estão imersas nas redes sociais e, consequentemente, nos perigos da tecnologia também.

O trio usa um aplicativo chamado “Facilitador”, uma espécie de Facebook na trama. Procurando diversão, as garotas acabam conhecendo cinco meninos e são violentadas durante uma festa. A partir daí, buscando vingança, as meninas buscam a ajuda do Facilitador, que sugere o feitiço “Doze flores amarelas”, e as consequências desse ato refletem em todos os personagens até o fim do espetáculo.

No desenrolar do enredo, um dos estupradores morre e as Marias passam a se questionar, acreditando que foram elas que causaram a morte do rapaz. No enterro dele, as meninas decidem parar de usar o Facilitador e denunciam o abuso às autoridades competentes. O argumento do espetáculo foi escrito por Branco, Britto e Tony em parceria com Hugo Possolo e com o escritor Marcelo Rubens Paiva. Em algumas passagens, a cantora Rita Lee narra parte da trama.

“Sei que seremos” abre o show, apresentando as “Marias A, B e C”. Durante o espetáculo, pareceu muito claro que a banda procurou construir o enredo do espetáculo por meio de suas canções. O palco foi montado de forma simples, com uma plataforma na parte de trás e um telão que exibe algumas imagens ilustrando as canções. Nada de muitos recursos cênicos ou tecnológicos.

A banda faz de suas músicas o grande atrativo de “Doze Flores Amarelas”, uma decisão artística que fez toda diferença. “Às vezes, você tem uma boa história, mas isso não quer dizer que ela se transformará em uma boa canção. O desafio pra gente foi transformar essas situações em boas canções. É uma coisa que a gente já tinha enfrentado quando fez o “Cabeça Dinossauro”, por exemplo. As pessoas falam que ele é um disco contestador, mas o que você vai falar? Como você vai fazer uma música sobre a polícia? Aí é que está o ‘x’ da questão. Às vezes, quando a gente fazia uma música muito legal, ela também influenciava na criação do argumento (do espetáculo). Nós pensávamos ‘essa música precisa estar aqui, vamos dar um jeito para que ela faça parte da história’. Eu acho que nós fomos muito bem-sucedidos e tivemos muita sorte, porque enquanto as coisas iam acontecendo, a gente percebia que a coisa estava rolando”, diz Tony.

Musicalmente, algumas canções se destacam: em “O bom pastor”, Branco aparece vestido com uma espécie de túnica branca e as cantoras descem do palco para colher o “dízimo” do público. Em “Canção de vingança”, Tony assume os vocais, fato raríssimo durante a carreira dos Titãs. Já em “O jardineiro”, Branco é caracterizado como um coveiro. Em “Me estuprem”, que encerra o Ato I, Britto canta a letra em cima de uma melodia tocante.



Inteligência para abordar a realidade

Todos os assuntos abordados no espetáculo são “espinhosos”. Afinal, diante do extremismo do que cresce cada vez mais no Brasil, cada pessoa tem a sua própria interpretação do que ouve ou vê. Temas como a violência contra a mulher, o estupro, o machismo e outras mazelas da sociedade estão presentes no texto de “Doze Flores Amarelas”, e o público é convidado a refletir sobre tudo isso.

Demonstrando tranquilidade, a banda está ciente da complexidade dos temas e faz questão de ressaltar a teatralidade das canções. “Obviamente, algumas músicas não estariam em um disco nosso, normal, porque você está falando em nome de um moleque machista, que violentou. Ele está lá, exercendo o pensamento dele, e a gente fazendo essa interpretação. Nós estamos entrando nesse universo dos personagens também. Isso é rico, do ponto de vista criativo, e diferente de você assinar uma música como várias que nós fizemos durante a nossa carreira”, diz Branco. “Você expressa o pensamento de um personagem por meio da canção, não o seu pensamento”, complementa Possolo.

Desse ponto de vista, foi um desafio para a banda criar canções que se encaixassem no espetáculo não só do ponto de vista musical, mas também dentro de um viés teatral. “Essas canções têm uma particularidade porque algumas são escritas em terceira pessoa, na voz desses personagens; outras nas de personagens periféricos, como os estupradores; e outras são meras narrações de situações que assustam, que a gente nunca tratou. Então, do ponto de vista das letras, da maneira com que nós tratamos dos assuntos, é uma novidade porque existem letras que nós não gostaríamos porque elas estão na voz de um personagem que é um estuprador, e por aí vai. Do ponto de vista da criação, pra gente foi muito interessante”, diz Britto. “Hoje, é preciso tomar cuidado com essas questões todas. Essas interpretações ao pé da letra, sem o distanciamento necessário, do valor artístico daquilo”, complementa Tony.

Fica muito clara também a intenção de abordar a relação dos jovens com as redes sociais e todas as implicações que isso traz. “Hoje, a tecnologia e o acesso às redes sociais descontextualizaram tudo. De outra maneira, a peça fala disso e da falta de contexto que essas pessoas têm. Nós esperamos que, na ópera, as pessoas consigam entender que são vozes de personagens narrando tudo aquilo em função de uma trama que tem um ponto de vista bem definido até pela conclusão da história, porque essas meninas sofrem as consequências do abuso e tomam a decisão que nós deixamos clara no final, que é a de denunciar o que aconteceu e se livrarem da influência das redes sociais papara que possam tocar as vidas. Eu acho que o espetáculo tem esses dois motes finais que são bem importantes e contundentes pra nossa história”, analisa Possolo.



A recepção do público

Se o termômetro do espetáculo é o público, a banda pode ficar tranquila porque todas as músicas foram aplaudidas com entusiasmo. Isso é marcante, afinal, foram 29 canções inéditas. De certa forma, a banda parece ter canalizado seus mais de trinta anos de estrada, inserindo de forma precisa três características marcantes dos Titãs: peso, melodia e lirismo urbano em suas composições. “Nós pudemos criar de uma forma que não fazemos normalmente, mais com a cabeça de um autor de uma peça de teatro”, diz Tony.

Depois de “Essa gente tem que morrer”, que encerra o Ato II, o espetáculo teve quinze minutos de intervalo. Na volta, a banda retomou o show abrindo o Ato III com “Interlúdio 3 – É você”. A apresentação teve apenas uma parada rápida por causa de um erro em “Ele morreu”.

“Sei que seremos” encerrou o ensaio aberto. Antes que o grupo se retirasse do palco, Branco chamou toda a equipe do espetáculo para receber os aplausos do público. A realidade é que os Titãs tiveram muita coragem para mergulhar em um trabalho tão profundo e “estranho” ao mainstream.

Durante o show, a banda se mostrou um pouco preocupada com as marcações de palco e, entre as canções, havia uma leve demora para a banda se posicionar. Circunstâncias normais, afinal, o show era um ensaio feito diante do público. “Doze Flores Amarelas” está praticamente pronta para ser levada para a estrada e, levando-se em conta o que foi visto em Curitiba, tem tudo para ser um sucesso.

A pré-estreia da Ópera Rock acontece nesta quarta-feira (4), às 21h, também no Teatro Guaíra. Os ingressos custam R$ 70 (inteira) e R$ 35 (meia-entrada). Os bilhetes podem ser comprados no site do Festival de Curitiba, no aplicativo do evento e nas bilheterias localizadas nos shoppings Mueller e ParkShopping Barigüi.

Confira o nosso álbum de fotos da apresentação e alguns trechos do ensaio aberto no nosso Instagram @cwblive. Leia também, neste link, uma entrevista exclusiva com o guitarrista Tony Bellotto.

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Titãs - Ópera Rock Doze Flores Amarelas - Teatro Guaíra - 03/04/2018