Trabalhar com jornalismo musical, em um país que não valoriza a cultura, não é uma tarefa simples. O carioca Jamari França é um desses abnegados que remam contra a maré da mesmice e do politicamente correto, pragas firmemente enraizadas na música brasileira e entre os jornalistas que dela falam.
A trajetória
Jamari da Costa França nasceu no Rio de Janeiro em 1949. Sua carreira teve início em 1975, como estagiário na sucursal carioca do jornal O Estado de São Paulo. No ano seguinte foi repórter do programa J. Silvestre, exibido pela extinta TV Tupi. De 1977 a 1979, trabalhou na Revista Manchete. O curso de jornalismo foi concluído em 1976 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC). “Desde adolescente eu comprava o Jornal do Brasil. Gostava de escrever e ganhei concursos de redação no primeiro grau. Fui me encaminhando para isso, naturalmente”, conta.
Jamari ficou no Jornal do Brasil de 1979 até 2001. A porta de entrada foi a editoria de notícias internacionais. “Entrei no JB para fazer internacional, uma área que sempre me interessou. Eu propus a primeira matéria para o editor do Caderno B somente quatro anos depois, quando vi surgirem bandas com nomes engraçados tocando aqui e ali no Rio”, relembra. Em 2001, o jornalista foi para a Globo Online. Atualmente, apesar de não trabalhar mais no GO, Jamari mantém no portal o blog Jam Sessions, onde fala sobre música com a perspicácia de sempre.
A facilidade para expressar em palavras as suas impressões e opiniões sobre artistas e bandas, acabou direcionando Jamari para o jornalismo musical. “Sempre tive vontade de escrever sobre música. Mesmo antes de entrar para a PUC, eu tive alguns textos publicados no jornal Rolling Stones, que existiu no começo da década de 1970”, relembra.
As entrevistas marcantes
Nesses 31 anos como crítico musical, Jamari já entrevistou boa parte dos artistas brasileiros e também os inúmeros gringos que passaram pelas plagas tupiniquins. Em 1975, quando era estagiário da sucursal carioca do jornal O Estado de São Paulo, ele recebeu de seu chefe de reportagem, o jornalista Maurício Azevedo, uma tarefa que onze entre dez pessoas que trabalhem com jornalismo musical, ambicionam: entrevistar Mick Jagger. Jamari diz que não lembra de muitos detalhes, mas destaca a recepção que o vocalista dos Rolling Stones lhe deu. “Ele foi educado e paciente, estava em um bom dia”, elogia.
Suas matérias preferidas são as do início de sua carreira, quando os artistas nacionais ainda estavam começando a trilhar seus caminhos de sucesso, assim como o próprio jornalista. “Acompanhei desde o início, fiz matérias sobre compactos do Barão, dos Paralamas e baguncei o estilo comportado das matérias do Caderno B, na época. Escrevia de maneira bagunçada, mesmo, e as entrevistas eram uma zona”, conta.
Quando se lembra de suas entrevistas mais marcantes, Jamari cita um dos grandes nomes do rock brasileiro, até hoje. “Lembro da primeira que fiz com os Titãs, em um hotel em Copacabana. Estavam os oito no mesmo quarto, oito camas, todos falando ao mesmo tempo no maior gás. Depois eu tinha que decifrar no gravador. Dava um trabalho da porra, mas era muito divertido”, relembra.
“No futuro, todos terão os seus 15 minutos de fama” (Andy Warhol)
Se você largar a leitura desta matéria, neste momento, e sintonizar qualquer estação FM, em qualquer cidade do país, certamente não ouvirá “Wild Horses” dos Stones, “Heroin” do Velvet Underground ou “Pro’s Que Estão Em Casa” do Hojerizah.
Anittas, Gusttavos Limas e MCs qualquer coisa infestarão a sua mente com textos tão inteligentes quanto uma redação de primário e melodias tão ricas quanto Syd Barret, desligado pelo LSD, tocando um só acorde durante um show inteiro do Pink Floyd.
Boa parte do jornalismo musical brasileiro atual segue a pouca qualidade do mercado musical. “Artistas” como Naldo, Lady Gaga e Miley Cirus são expostos de tal forma na mídia tradicional que parecem ter o mesmo valor de ícones como Bowie e Hendrix.
A teoria de Adorno e Horkheimer, chamada de “indústria cultural”, diz que toda forma de arte se transforma em mercadoria. Apesar de tudo, Jamari ainda consegue ver resquícios de luz nesse cenário nebuloso. “Bom, os colegas precisam seguir a linha de suas publicações. Então, jornais e revistas mais populares partem para o comercial, mesmo. Mas, atualmente, há muita gente séria e crítica escrevendo”, analisa.
A década de ouro
O rock brasileiro teve seu “boom” nos anos 1980. Bandas como Finis Africae, Picassos Falsos e Violeta de Outono fugiam do lado comercial, dando ênfase à qualidade do que faziam. Hoje, a música de qualidade, seja de qual estilo for, foi banida das rádios, TVs e jornais. A análise que Jamari faz dessa realidade sinistra é contundente. “É o jabá levado às mais drásticas circunstâncias, infelizmente. Recentemente, fiz um artigo onde comparei as músicas mais tocadas deste ano com similares de 20, 30 e 40 anos atrás e mostrei que havia uma deterioração crescente ao longo das décadas. O mainstream hoje é uma verdadeira lavagem cerebral de péssima qualidade”, critica.
It’s Only Rock And Roll (But I Like It)
Jamari destaca a influência negra como o principal fator que o leva a gostar de uma banda. O jornalista acompanhou toda a consolidação do rock and roll no Brasil. Nos anos 1980, o estilo se desenvolveu em várias vertentes, além de ter se mostrado viável, comercialmente. “Eu gostava muito da diversidade de estilos da geração 80. Eu gosto mais de rock com influência negra, então me amarrei em Barão Vermelho, uns moleques na época com uma pegada a la Rolling Stones, no reggae e ska dos Paralamas e no blues do Celso Blues Boy”, diz.
O cenário musical brasileiro dos anos 1980 refletia o que acontecia no mundo, naquele instante. Pós-punk, punk, new wave, reggae e outros estilos se diluíam nas bandas que conseguia chegar às rádios. Além da sua preferência por artistas que absorveram a influência da música negra, Jamari continua falando sobre seu gosto musical citando outros grupos que começavam a se destacar, no início dos anos 80. “Mas também tinha a Blitz, com aquela ‘multiculturalidade’ deles, de música com teatro, artes plásticas, performances e shows movimentados com muitos truques de cena. A new wave de Lobão, Lulu Santos e Gang 90, o rockabilly do João Penca, e tudo isso antes da chegada do pessoal de São Paulo, de Brasília e Porto Alegre, que foram chegando e se agregando. Era ma cena muito legal e muito rica”, afirma.
No atual rock brasileiro, Jamari cita três bandas que estão entre as suas preferidas: Madame Sataan, Selvagens À Procura De Lei e o Matanza.
Vamo Batê Lata
Jamari também tem um trabalho como biógrafo. O livro “Vamo Batê Lata”, lançado em 2003, conta a história dos Paralamas do Sucesso, um dos nomes mais importantes na consolidação do rock brasileiro. Foram 14 meses de pesquisa para reunir o material necessário para a publicação do livro. “Falar com eles era difícil porque são workaholics. Eram muitos shows e compromissos”, conta.
A dificuldade em conciliar horários para colher os depoimentos, por conta da agenda apertada dos músicos, principalmente do vocalista e guitarrista Herbert Vianna, foi um dos fatores que exigiram ainda mais dedicação do jornalista. “Às vezes eles tinham só um ou dois dias por semana para ficar com a família, no caso do Herbert, e eu ficava com certo pudor de convocá-lo. Então fazíamos entrevistas em aeroportos, aí ele chegava uma hora antes, no clube de voo… Eu viajava de ônibus com eles, quando era no estado do Rio, e fazia entrevistas durante a viagem. Isso e mais os parentes, amigos etc”, revela.
Um contratempo triste e inesperado acabou atrasando o lançamento de “Vamo Batê Lata”. Em 2001, Herbert Vianna e sua esposa, Lucy, sofreram um acidente de ultraleve em Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro. Lucy morreu e o músico ficou durante 44 dias em coma, lutando pela vida. O acidente deixou Herbert paraplégico, se locomovendo com a ajuda de uma carreira de rodas, mas sua carreira não acabou. “Ficou pronto quando houve o acidente, então tive que esperar e só fechei quando lançaram o primeiro CD após o acidente”, relembra. O álbum “Longo Caminho”, lançado em 2002, marcou a volta da banda.
Apesar do prazer de escrever um livro sobre músicos que admira e que são seus amigos, Jamari revela que se decepcionou com a vendagem do trabalho. A falta do hábito de leitura, comum na população brasileira, pode ter ajudado nesse processo. “Cara, eu me desanimei com o dos Paralamas. É uma banda super popular, mas levou dez anos para vender seis mil exemplares. Biografia só vende se for escandalosa como as do Lobão e Tim Maia. Mas tenho dois em andamento, um deles é minha biografia”, diz.
“O mundo real. Você tem que lutar para ver através dele. O mundo real é como jaulas em um zoológico”. “Real World”, Bruce Dickinson
Antes da internet, as grandes gravadoras eram o único meio disponível para as bandas chegarem ao grande público. A internet mudou drasticamente esse cenário, com ferramentas como o Youtube, o Myspace e o Soundcloud. Mas hoje, mesmo com o auxílio da rede mundial de computadores, as dificuldades que os artistas brasileiros encontram ainda são inúmeras. “O caminho tradicional está fechado, o de ser contratado por uma gravadora que vai investir na banda. Quando elas lançam um grupo são como distribuidoras, recebem tudo pronto e fazem uma divulgação fraca, diferente da prioridade delas, que é o lixo atual”, critica.
Se hoje a internet oferece a possibilidade de uma banda lançar um single e se tornar conhecida em todo o mundo, praticamente da noite para o dia, a concorrência também é muito maior. “A internet corta o caminho, mas existe o problema de como achar as bandas. Recebo dezenas de pedidos de avaliação, mas se for fazer isso tudo, não faço outra coisa. A banda tem que ganhar adeptos na internet que gostem e se proponham a divulgá-la. É um trabalho de perseverança e fé no que faz”, analisa.
A missão
O Cwb Live publicou uma matéria, no último mês de novembro, que você pode ler neste link, onde o jornalista e ex-VJ da MTV, Fábio Massari, afirma que, mesmo diante de todas as dificuldades, “levar os bons sons” para as pessoas é uma espécie de missão. Jamari também encara o seu trabalho dessa forma. “Com certeza. Foi o que fiz nos anos 90 e principalmente nos 80. Na década de 80 eu era redator da editoria internacional e fazia as matérias pro Caderno B, tudo pelo mesmo salário. Sempre sonhei em ver o rock como mainstream no Brasil, e a Geração 80 realizou isso com música de qualidade. Por isso eu trabalhava 12, 14 horas para fazer as duas coisas”, finaliza.
Ouça o programa de Jamari França na rádio Cult FM, o Jam Sessions.
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