Texto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira
Fotos: Reprodução/Facebook David Bowie

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A essência da arte é não ter amarras. Livre, ela pode se manifestar em suas variadas formas, sem predeterminações políticas, religiosas ou de qualquer outro espectro. Na música, o maior sinônimo dessa liberdade era David Bowie. O cantor, compositor e músico inglês morreu nesse domingo (10), perdendo uma batalha contra o câncer que já durava 18 meses.

Mas se Bowie, durante a sua carreira, não foi nada discreto, nos últimos anos pouco se sabia sobre a sua vida. Sua morte pegou de surpresa seus fãs e todo o mundo musical, pois provavelmente só seus familiares e sua equipe sabiam que ele estava enfrentando a doença.

Afinal, o Camaleão desapareceu dos holofotes em 2004, quando precisou realizar uma angioplastia às pressas, e a partir daí as notícias sobre o artista inglês quase não surgiam. Ele só voltaria a gravar um álbum, “The Next Day”, em 2013, e mesmo assim permaneceu longe dos palcos.

O “testamento musical”

Ironicamente, Bowie fez 69 anos na última sexta-feira (8) e também lançou seu 25º álbum de estúdio na mesma data. Mas o que estava sendo comemorado como a volta de um dos maiores artistas da história se transformou em perplexidade e tristeza na manhã dessa segunda.

“Blackstar” parece realmente ter sido concebido como um testamento. E agora, após a sua morte, as canções do CD soam de forma ainda mais tocante e assustadora. O clipe do single “Lazarus” é o maior exemplo dessa percepção. Nele, Bowie aparece vendado em uma cama de hospital. Em cima dessa venda estão posicionados dois olhos de cerâmica ou de vidro. A simbologia parece remeter ao costume de algumas civilizações antigas que colocavam esses artefatos para garantir que o espírito do morto tivesse uma boa passagem para o “outro lado”.

Todo esse clima de despedida também é personificado na letra de “Lazarus”, onde Bowie dá dicas subliminares sobre o seu estado de saúde. “Olhe para mim, estou no céu. Tenho cicatrizes que não podem ser vistas. Tenho drama, não pode ser roubado. Todo mundo me conhece agora”, canta.

De acordo com o produtor e parceiro musical Tony Visconti, em uma matéria publicada pelo site da Revista Rolling Stone, todo esse clima foi criado conscientemente por Bowie. “A morte dele não foi diferente de sua vida: um trabalho de arte. Ele fez ‘Blackstar’ para nós, foi seu presente de despedida. Eu soube por um ano que isso (a morte dele) seria dessa forma. Não estava, no entanto, preparado. Ele era um homem extraordinário, cheio de amor e de vida. Estará sempre conosco. Por agora, é apropriado chorar”, disse.

“Lazarus” também é uma peça musical em que Bowie trabalhou no ano passado, escrita por ele em parceria com o dramaturgo irlandês Enda Walsh e estrelada pelo ator e cantor Michael C. Hall. A peça é uma sequência do longa “O Homem que Caiu na Terra” (1976). Com a sua morte, a partir de agora muitas informações que estavam sendo mantidas em sigilo começaram a surgir. De acordo com a biógrafa Wendy Leigh, por exemplo, ele teve seis ataques cardíacos nos últimos anos.

Em uma entrevista à rede britânica BBC, ela contou alguns detalhes sobre os últimos meses de vida do Camaleão. “Ele estava muito perto do limite, mas eu acredito que David dirigiu sua vida e sua morte. Acredito que Iman (mulher do músico) e Duncan (filho do músico), por mais trágico que seja, estavam preparados dia a dia, mês a mês, ano a ano para o dia de sua passagem”, disse.

O respeito e a admiração dos fãs

Certos artistas cativam as pessoas de uma forma diferente. Além do seu talento, Bowie tinha um carisma único que transcendia a sua obra. A jornalista Silvia Vicente Macedo foi uma entre os milhões dos fãs em todo o mundo que se apaixonou por essa aura especial do Camaleão. Na década de 1970, ainda na adolescência, ela se encantou com “Rock ‘n’ Roll Suicide”, clássico do álbum “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972).

Dessa descoberta veio o mergulho na discografia do artista inglês. “Ouvi em uma festa organizada por algumas pessoas mais velhas do que eu. Depois a paixão surgiu com os grandes hits ‘Let’s Dance’, ‘China Girl’, ‘Modern Love’, entre outros. Somente a partir daí é que eu fui buscar o legado do Bowie”, conta.

Essa paixão que o músico despertou na jovem curitibana a levou ao show que o Camaleão realizou na Pedreira Paulo Leminski, em 1997. Além do Camaleão, o Close Up Festival teve ainda o Pop do No Doubt e o Techno-pop do Erasure. “Vi com as minhas irmãs e o meu irmão, que já morreu. O Bowie foi impecável, inglês no jeito de ser. Foi uma emoção de encher os olhos de lágrimas quando ele soltou a primeira frase da primeira canção. É aquela velha história de estar realizando um sonho. O show não estava lotado, então eu o vi muito de perto. Foi marcante, afinal, não perdi a única chance que tive de ver o Bowie”, relembra.

André Pugliesi, jornalista do caderno de esportes do jornal Gazeta do Povo, descobriu David Bowie entre os velhos vinis de seu pai. Perdido na discoteca estava a trilha sonora do filme “Labirinto – A Magia do Tempo”, composta por Bowie e que também teve a participação do Camaleão como ator. Apesar de não ter se tornado um grande fã, André soube captar a sua maior característica. “Passei a admirá-lo por personificar o que considero ser a essência da arte: a ausência de limites, a possibilidade infinita de experimentação”, explica.

A capacidade de absorver e reciclar os estilos musicais fez de Bowie um artista único. “Ele foi um músico que se reinventou, que conseguiu se superar. Ele viajou pelo Pop, Rock, Soul, Tecno e Jazz. Só pode ser um dos maiores porque ele sempre esteve à frente do seu tempo. influenciou muitas bandas. Hoje, por exemplo, o meu filho que tem 13 anos me mostrou um post do Green Day, a banda preferida dele, reverenciando o Bowie”, diz Silvia.

David Bowie passou seus mais de 40 anos de carreira se recriando constantemente. Encarnou Ziggy Stardust, Major Tom e moldou o Pop à sua maneira. O Camaleão foi homem, mulher, transgênero, andrógino e, acima de tudo, foi um gênio. Talvez sua maior lição tenha sido o fato de que ele construiu a sua história da maneira que queria, sem depender de modismos passageiros. “Ele conseguiu ser quase que uma unanimidade entre os mais respeitados críticos, músicos e apreciadores de boa música. Certamente vai continuar influenciando muitas outras bandas”, finaliza Silvia.