Texto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira
Fotos: Arquivo pessoal Rodrigo Stradiotto/Livro "Uma Fina Camada de Gelo - O Rock Autoral e a Alma Arredia de Curitiba"

Entre críticas e elogios, o produtor ajudou a colocar as bandas de Curitiba no cenário nacional



O gaúcho Carlos Eduardo Miranda, que morreu no dia 22 de março,  foi um dos primeiros produtores brasileiros que tiveram a coragem de voltar a atenção para bandas que não pertenciam ao eixo Rio – São Paulo. O padrão e o comodismo das gravadoras da época dificultavam a evolução de artistas que não estivessem nesse circuito. Hoje, esse cenário não é muito diferente, mas os poucos grupos que conseguem sair desse limbo devem muito ao pioneirismo de Miranda.

Além de ter lançado boa parte das bandas independentes brasileiras no início dos anos 1990, como o Skank, o Mundo Livre S/A, o Maskavo Roots, O Little Quail e o Raimundos, Miranda também foi uma das figuras mais importantes para a história da música curitibana.

No início da década de 1990, Miranda já era uma pessoa conhecida no meio cultural brasileiro. Como músico, ele já tinha passado por alguns projetos, entre eles as bandas Urubu Rei, Taranatiriça e Atahualpa Y Us Panquis. Suas opiniões como crítico musical da revista Bizz que, naquele período, era o mais importante veículo para se descobrir bandas novas e saber notícias sobre os grandes astros da época, também eram muito respeitadas.

Com essa bagagem cultural, Miranda acabou sendo convidado para tomar a frente do Banguela Records. O selo era um braço da Warner Music e foi criado em parceria com os Titãs para cuidar da emergente leva de bandas underground que estavam aparecendo em todos os cantos do país.

A partir daí, praticamente todos os artistas que se destacaram naquela época passaram de alguma forma por suas mãos. Em pouco mais de um ano de vida, o Banguela revelou ao Brasil grupos com as mais variadas influências. Entre eles, o Raimundos pode ser considerado a grande descoberta de Miranda, pois é, até hoje, um dos grupos mais importantes e populares do país.

banguela logo



A relação com a piazada do leite quente

O guitarrista, vocalista e compositor Cassiano Fagundes (Magog, Cacique Revenge, Bad Folks, entre outras) conheceu Miranda em 1991. A partir daí, uma forte amizade se estabeleceu a ponto de, em muitas ocasiões, o produtor insistir para que o curitibano encarasse a música de forma mais séria. “Não foram poucas as vezes em que ele clamou para que eu levasse o que eu estava fazendo musicalmente a sério, para que eu fosse para São Paulo, se fosse o caso, mas não deixasse o fogo morrer. E eu sei que ele fazia isso com muita gente: se via algum potencial na banda iniciante do piá de 17 anos ou identificava um ângulo inesperado na música de uma banda famosa e consagrada, já enchia a cabeça dessas pessoas de minhoca, no bom sentido”, conta.

Em 1992, percebendo que algo estava acontecendo em Curitiba, Miranda começou a voltar suas antenas para a capital paranaense. Naquele período de ouro, grupos como a Relespública, o Magog, o Resist Control, o C.M.U. Down e o Woyzeck, entre outros, lotavam os bares da cidade que abriam espaço para as bandas autorais (sim, isso já aconteceu em Curitiba), como o Circus, o Aeroanta, O Lino’s e o 92 Graus.

Aquele também era um momento em que duas iniciativas importantíssimas na história musical da cidade estavam surgindo: o Curitiba in Concert (uma série de shows em vários espaços curitibanos, organizados pelo empresário e produtor cultural Helinho Pimentel, que culminou com o lançamento de um CD) e o selo Bloody Records, criado pelo produtor cultural e dono do 92 Graus, J.R. Ferreira. “Esses projetos lançaram diversas bandas e catapultaram uma cena independente riquíssima. A partir daqueles tempos, o Miranda começou a aparecer periodicamente na cidade para acompanhar de perto as movimentações. Ele ajudou a dar visibilidade a esses dois projetos e a muitos outros. De repente, Curitiba começou a aparecer nas revistas nacionais de música, nos jornais e, depois, na MTV. Isso tudo tinha o dedo dele”, afirma Cassiano.

Um marco na música curitibana

Esse envolvimento com a turma do “leite quente” chegou ao auge com o lançamento da coletânea “Alface” (1995) pela Banguela Records. No CD, as bandas curitibanas Magog, Resist Control, Woyzeck e Boi Mamão, que já eram conhecidas e respeitadas em Curitiba, chegaram finalmente aos ouvidos do público brasileiro. Cada uma delas contribuiu com quatro faixas.

O projeto foi todo idealizado pelo músico, compositor e produtor Rodrigo Stradiotto, da banda curitibana Woyzeck, com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura. As gravações aconteceram no Estúdio Solo, também em Curitiba. “O interesse deles surgiu quando o CD já estava pronto. A Warner/Banguela assumiu a partir da masterização. Nós tínhamos uma tiragem que já estava prevista no projeto, e a Warner aumentou para fazer a distribuição. Estava no começo daquela efervescência toda, e nós já tínhamos esse produto pronto, com quatro bandas que tinham uma relevância para aquele contexto. Então, também era interessante para eles porque mostrava um retrato do que estava rolando por aqui”, conta Rodrigo.

woyzeck



Woyzeck

Os quatro grupos eram completamente distintos. O Woyzeck, por exemplo, já no início dos anos 1990, fazia um som que misturava inúmeras influências, que iam do Baião ao Grunge. No CD, Luiz Pellanda (vocal), Leo Hishida e Rodrigo Stradiotto (guitarras), Dênis Nunes (baixo) e Branco (bateria) participaram com as músicas “O gourmet e o bicho bom”, “Putaria franciscana”, “Cândida” e “Charanga”.

Posteriormente, apesar de o Woyzeck nunca ter trabalhado com Miranda em um álbum full, suas dicas sempre influenciavam de alguma forma o trabalho do grupo. “Quando nós estávamos gravando algo, ele vinha e dava uns pitacos, mas ele mesmo dizia que não entendia muito bem como a gente funcionava, porque eram muitos elementos musicais juntos que acabavam dando certo”, relembra Rodrigo.



Resist Control

Já o Resist Control misturava Funk, Metal e Hardcore em um som visceral. No CD, Daniel “Azulai” (vocal), Marcel Felipe (guitarra), Carlos “Piu” (baixo) e André Massad (bateria) gravaram as músicas “Plug it out”, “Other side”, “Take me” e “Lay down”.

Porém, na visão do baixista do grupo, nem tudo foi tranquilo na relação das bandas com Miranda. “O principal idealizador do projeto foi o Rodrigo, esse sim o verdadeiro herói dessa empreitada. Lançar uma coletânea com as bandas não foi uma tarefa simples, demandando tempo e esforço de todos os envolvidos. Foi uma correria lazarenta que envolveu estúdio, parte gráfica e patrocínio (sim, todo o CD foi feito com dinheiro vindo da Lei de Incentivo à Cultura) e, inclusive, a vinda de Carlos Eduardo Miranda para mixá-lo, cujo trabalho, em minha opinião, não ficou bom”, opina Piu.

Além das ressalvas em relação à parte técnica, a participação da Banguela Records na prensagem, distribuição e divulgação da coletânea não aconteceu com a intensidade que o baixista esperava. “Não faço ideia de quantos CDs foram prensados, mas o ‘Alface’ teve uma distribuição pífia e uma divulgação nula, pois, pesquisando nas lojas e com amigos em outros estados, nunca chegou material algum sobre o CD. A coletânea valeu pela união das bandas, pelo registro das músicas na época e para conhecermos como realmente era um dos ‘figurões do Rock’ no Brasil”, complementa.

Miranda “apareceu” na vida do Resist logo após a primeira demo que o grupo gravou. “Nós mandamos pra uma galera, e ele estava nessa lista de pessoas. Um dia, eu estava na casa do Nilo, do Boi Mamão, e os dois estavam conversando ao telefone. Foi quando eu falei com o Miranda pela primeira vez, e ele fez vários elogios, disse que ‘era do caralho’, como ele sempre falava, que conhecia a gente e tal. Era na época em que o Banguela estava começando, eles ainda estavam gravando o Raimundos. Na sequência, eu fui com o Rodrigo Stradiotto no Estúdio Mosh, em São Paulo, acompanhar a gravação do Raimundos. O Miranda colocou pra gente ouvir, e eu achei demais! A ‘Puteiro em João Pessoa’ era um puta som pesado, cantado em português em uma época em que as bandas mais underground só cantavam em inglês”, relembra Daniel Azulay.

Na opinião do vocalista, a produção atingiu o que ele esperava. “A gente meio que intimou o Miranda e houve uma reciprocidade. Aí, ele acabou vindo produzir as bandas em Curitiba. Ele sempre foi um cara bem roqueiro e deixou as nossas músicas superaltas, quase explodiu os alto-falantes do Solo (risos). Foi muito bacana a forma com que ele nos produziu. Todas as vezes em que eu o encontrei, ele sempre estava de alto-astral. Ele foi um cara espetacular, de muita importância para o underground brasileiro”, diz Daniel.

Dali em diante, Daniel teve a oportunidade de conviver e acompanhar várias gravações feitas por Miranda na Banguela Records. Uma dessas sessões de estúdio foi a do álbum “Samba Esquema Noise”, disco de estreia do Mundo Livre S/A. “Lembro que era pra demorar umas três semanas e demorou muito mais porque os caras não conseguiam tocar muito bem no começo, mas eles tinham uma grande musicalicalidade, e o Miranda foi direcionando a banda. Eu achei isso muito interessante!”, relembra o vocalista.

O Resist Control encerrou as atividades em maio do ano 2000. “O Miranda era muito gente fina. Ele era um pouco mais velho do que a gente, mas tinha uma mentalidade superjovem. Ele foi um cara bem especial!”, finaliza Daniel.



Boi Mamão

O Boi Mamão era, e talvez ainda seja a banda com o som mais inusitado já visto na história da música curitibana. Afinal, a mescla de ritmos e estilos protagonizada por Glerm Pawdphita (vocal), Nilo (guitarra), Lucio (baixo) e Rene (bateria) parecia não ter fim.

No CD, a banda gravou as músicas “Café com leite”, “Happy buggies”, “Kronkanildo” e “Jedi schizo”, todas completamente fora de sintonia com o que eram “as modas do momento” daquela época. Obviamente, a intenção do grupo era justamente essa. “Na minha opinião, o ‘Alface’ era algo para chamar atenção, pois nenhuma das bandas tinha um viés muito comercial. Bom, as músicas do Boi não tinham nada de comercial!”, diz Nilo. “No ‘Alface’, o velhinho não apitou muito. Foi bem livre, ele juntou quatro bandas que na época faziam uma boa confusão na cena, com personalidades distintas. Era uma amostragem musical diferente de Curitiba que eu ainda gosto bastante de ouvir”, complementa.

A relação de amizade da banda com Miranda se estabeleceu antes do lançamento do CD e continuou nos anos seguintes. “A gente se conheceu nas nossas peregrinações por São Paulo. Ele era um cara sempre muito disponível, motivadaço e adorava mostrar seus ‘achados’ de bandas e cenas diferentes”, conta Nilo. “Às vezes, ele dava umas opiniões ou sugestões para a gente. Sempre mandávamos nossas produções para ele (músicas e vídeos)”, complementa.

Na visão do baixista, Miranda mostrou o caminho das pedras para muitos grupos brasileiros. “Ele foi um facilitador para várias bandas e, muitas vezes, um ponto de ligação entre elas, como o Chico Science & Nação Zumbi, o Mundo Livre, o Raimundos, etc. Inclusive, no ‘Alface’, a música ‘Café com leite’ tem a participação do Chico Science, e esse é um exemplo da culpa do ‘velhinho’ nessas interações”, analisa. “Muitas vezes, eu o vi mixando/produzindo algumas dessas bandas no estúdio, de madrugada. Por sinal, o estúdio acabava virando hotel para uma galera (risos). Passei alguns dias dormindo no sofá do estúdio bem na preparação do primeiro disco do Raimundos”, finaliza Nilo.



Magog

O Magog de Cassiano Fagundes (guitarra e vocal) Jansen Nunes (baixo e backing vocal) e Raphael Virmond (bateria) participou do CD com as canções “Bark”, “The pattern”, “Eggs” e “The king of Rock’n’roll”.

Apesar do entusiasmo que a oportunidade despertou, nem tudo foram flores na relação entre as bandas e a gravadora. “Eu acho que nós fomos deixados meio de lado depois da gravação. Pelo que eu lembro, o Banguela não fez muita coisa. Acho que eles colocaram a gente pra tocar em um show em São Paulo. O lance deles foi mais lançar a gente em Curitiba com shows no Aeroanta e tal e a questão do Miranda chamar a atenção da imprensa pra gente”, conta Cassiano.

O Magog tinha influências das grandes bandas Guitar britânicas, como o Ride, mas também apresentava um peso impressionante em suas músicas. Mesmo com todo esse potencial, o grupo não alçoou voos maiores. “Nós estavámos com uma expectativa que não se concretizou. Não entendemos a ideia do Miranda, na época. Ele queria lançar quantas bandas pudesse, mas eram muitas para ele gerenciar, e o Raimundos começou a fazer sucesso. Além disso, o Bryan e os caras do Titãs estavam naquela vibe de Sampa e a gente estava longe demais das capitais. Nós não estávamos naquela brodagem. Teve até uma discussão lá no Aeroanta de alguém com o Miranda sobre eles estarem excluindo a gente, coisas assim”, relembra Jansen. “No fundo, acho que devíamos ter ficado com o Helinho e gravado um disco inteiro solo. Mas juntando tudo, foi um tempo bom, de muita efervescência cultural e aventuras para todos nós. Valeu por isso”, complementa o baixista.

O contexto que impunha várias barreiras entre Curitiba e os dois grandes centros do país, algumas até alimentadas pelos próprios músicos locais, dificultava todo o processo. “Naquela época, a questão de ‘estar fora do eixo’ era mais evidente. Não existia internet, então ficava mais difícil de divulgar. No fundo, era complicado pra gente fazer as coisas a partir de Curitiba. Eu acho que eles nos ajudaram com o que eles puderam. O Miranda fez mais até do que ele podia, assim como ele fez por várias bandas. Era um momento em que o Raimundos e o Rock em português estava estourando. A gente cantava em inglês, então, de certa forma, nós perdemos o bonde nesse boom que aconteceu. Nós começamos a fazer outras coisas também, como trabalhar, fazer faculdade, mas mesmo assim a gente tocava e viajava quando podia. Mesmo assim, não deu pra fazer o que a gente queria”, analisa Cassiano. “O Raimundos fez o que o Brasil queria ouvir naquele momento, e a gente não estava fazendo nada disso. Nós fazíamos o que a gente gostava e azar do Brasil, que era uma coisa meio pedante do curitibano, que hoje eu acho meio idiota”, complementa.

Das gravações do álbum surgiu uma amizade com os curitibanos, que teve outros desdobramentos nos anos seguintes. “Todos os envolvidos ficaram muito próximos dele, como sempre acontecia. O Miranda era um cara de um milhão de amigos que realmente tratava todo mundo como um ‘véio’ amigo e conselheiro. Não foram poucas as vezes que fui a churrascarias curitibanas com ele. O Miranda me ensinou a sempre tomar uma dose de cachaça com limão no final. Era ‘pra cortar o excesso de gordura no sistema’, ele dizia”, conta Cassiano.



O conhecimento como agente influenciador

O conhecimento musical de Miranda era uma das qualidades que mais impressionava as pessoas que o conheceram de forma mais íntima. “Ele era o cara que sabia tudo e sabia mesmo! Conhecia tudo de música, colecionava discos, gibis e livros em quantidades industriais”, diz o guitarrista da banda gaúcha Defalla, Castor Daudt.

O quarteto de Porto Alegre, inclusive, nasceu na casa de Miranda. “O Defalla foi criado na casa dele! Eu, o Flu (baixo) e a Biba (bateria) éramos o trio instrumental do Urubu Rei (lendária banda gaúcha), então, foi só adicionar o Edu K e virou o Defalla. O Miranda era a internet antes da internet. Era o Google e o YouTube misturados. Sabia tudo, mas tudo mesmo. Era cinéfilo, produtor, músico, colecionador, cantor, enfim, uma pessoa única, que deixa um vazio no nosso coração!”, conta Castor. “A casa dele era o centro cultural musical de Porto Alegre no início dos anos 1980. Todo mundo ia lá ensaiar, assistir aos nossos ensaios, ler os gibis importados e escutar os discos raros que ele tinha”, complementa.

O acervo de CDs, LPs e fitas-cassete que Miranda mantinha em sua casa impressionava até os amigos mais próximos do produtor. “Ele era viciado em música, e a sua casa refletia muito bem seus gostos pessoais. Ele tinha centenas ou milhares de fitas-demo na casa dele. Tudo ficava bem organizado, e ele falava sobre todas, sabia quem tocava e tudo o mais. Lógico que eram coisas de que ele gostava, mas mesmo que ele não gostasse, ele respondia falando ‘veja bem, isso não é legal’. Ninguém ficava sem resposta e isso era muito legal da parte dele”, conta Rodrigo.

Essa bagagem musical, adquirida em um época em que não era tão fácil descobrir grupos novos, influenciou o trabalho de muitos artistas. Uma dessas conexões se estabeleceu entre as bandas curitibanas e o movimento Manguebeat de Chico Science e Fred 04. “Ele nos aproximou muito do pessoal de Recife porque, apesar de estarmos fazendo coisas semelhantes, nós não fazíamos a menor ideia do que estava rolando por lá. Naquela época, não havia maneira de estabelecer esse intercâmbio”, diz Rodrigo.

Naquele período, a distância e a forma lenta com que as informações eram propagadas dificultava esse intercâmbio cultural. “Lembro de um dia quando eu e o Luiz (Pellanda, vocalista do Woyzeck) descobrimos o Chico Science, acho que foi em uma demo-tape que o Miranda mostrou pra gente. Na hora, nós pensamos: ‘Caralho, como é que isso está rolando sem a gente conhecer?’ Ele nos ajudou muito com o business, pois foi um cara que fez com a gente entrasse em contato com o mainstream. Ele foi importante até nas nossas decisões de vida, porque ali nós decidimos o que queríamos ou não. Graças a Deus, isso aconteceu quando nós éramos piás, então, deu tempo de cada um tomar o seu caminho, musicalmente falando”, conta Rodrigo.

Essa atenção dispensada aos artistas “marginalizados”, que não estão nos “grandes centros do país” é, ainda hoje, raríssima. “O Miranda ajudou a articular cenas independentes locais no Brasil inteiro, e em Curitiba não foi diferente. Não sei se falava isso pra todas, mas ele dizia que Curitiba era especial e, por uma época, foi mesmo a sua garota dos olhos. Ele realmente acreditava que tínhamos uma cena única na cidade, nos anos 1990, e continuou apreciando e elogiando a música produzida na capital paranaense até recentemente. Porém, na última vez que o encontrei, em um evento em Florianópolis, onde moro, ele usou Curitiba como um mau exemplo para ilustrar como muitas vezes, músicos talentosos deixam a sua música de lado e a encaram como um futebolzinho de fim de semana para se dedicarem a outras carreiras profissionais, família, etc.”, conta Cassiano.

O guitarrista e compositor curitibano Caio Marques (Bad Folks e Frutos Madurinhos do Amor) também é um dos muitos músicos locais que demonstram respeito por Miranda. “Não tem como negar a importância dele, no Brasil inteiro. Acho que o principal é que ele foi um grande incentivador. Conversar um pouco com ele te dava uma energia e esperança. Ele vivia dizendo que Curitiba só iria para frente quando os músicos largassem seus ‘empreguinhos’ na área de comunicação. Não deixa de ser verdade! (risos)”, relembra.

Na visão da maioria dos músicos curitibanos que tiveram contato com Miranda, ele era uma espécie de paizão que não se furtava a dar broncas na piazada. “Justamente por identificar algo muito especial nas bandas de Curitiba, que musicalmente o impressionavam, ele se tornou crítico dos que largaram o esquema de ‘brodagem’ que ele queria instituir para fazer a cena independente brasileira realmente funcionar. ‘Brodagem’, para quem lembra, foi uma das palavras que ele mais usou nessa época pré-internet: era uma maneira de fazer as coisas acontecerem sem dinheiro, sem grandes recursos, por meio de parcerias que ligariam cenas, cidades e estados do Brasil inteiro e que, de certa forma, foi se cristalizar mais tarde em movimentos como o Fora do Eixo”, relembra Cassiano.

Levando em conta a forma com que a cultura é tratada na capital paranaense, em várias esferas, não é de espantar que a “brodagem” de Miranda não tenha alcançado o resultado esperado na sempre complicada Curitiba. “Naquela época, isso era um projeto um tanto utópico e difícil de realizar pra uma piazada recém-saída da adolescência, sem grana e isolada em uma cidade provinciana e conservadora. Mesmo assim, muitos furaram a bolha, e depois ficou claro que o isolamento e o provincianismo não podiam ser desculpa, vide o que aconteceu com as bandas de Goiânia e Cuiabá. Independentemente disso, para mim, a verdade é que muitas vezes, as bandas curitibanas se meteram em roubadas porque não tiveram de outras figuras da cena o mesmo respaldo que o Miranda nos oferecia em doses cavalares”, diz Cassiano.

Mesmo estando cara a cara com um geração que mudaria os rumos do Rock brasileiro, Miranda não se afastava dos amigos curitibanos. “Lembro como se fosse ontem quando ele me mostrou uma demo dos Raimundos na casa do J.R. Ele estava muito empolgado com o som inovador dos caras e eu concordei que eles podiam ficar muito grandes porque, em uma época em que todo mundo queria soar como se fosse inglês, usar a tradição brasileira como força motriz em um projeto essencialmente Hardcore era algo realmente revolucionário. Mas também lembro de ter pensado: ‘Cara, tem três ou quatro bandas aqui que fazem isso aí bem melhor’. O próprio Woyzeck já ensaiava essa guinada e não era apenas porque eles eram da minha turma que eu achei aquilo genial e bem mais interessante”, relembra Cassiano.

O impressionante é que, hoje, quase 30 anos depois daquele período mágico, ainda existe um grande abismo entre Curitiba e os grandes centros. “A verdade é que, no fundo, o Miranda foi na época o único que realmente entendeu o valor de Curitiba e colocou em nossas mentes a ideia de que podíamos conquistar o mundo. No final das contas, era um momento sociocultural de redescobrimento e revalorização das tradições musicais brasileiras. Vivíamos uma atualização da personalidade musical brasileira e, ali, a arrogância classista e provinciana de uma cidade que se achava europeia e descolada do resto do país acabou atrapalhando e nos deixando pra trás”, diz Cassiano.



Histórias

Bonachão e boa gente, Miranda estabeleceu amizades com boa parte da cena curitibana e, obviamente, viveu muitas histórias ao lado dessa turma. Um delas aconteceu quando Caio Marques foi a uma convenção de um projeto chamado “Trama Universitário”, em São Paulo. “Fui escalado para apresentar um projeto de rede ligado à TV UFPR, e ele estava lá. Outros projetos foram apresentados na abertura do evento, alguns com discursos longos e inflamados e powerpoints intermináveis. O meu ficou por último. Eu estava nervoso, me enrolei e acabei apresentando em cinco minutos. Depois, fui falar com ele e me desculpei: ‘Cara, me enrolei todo, não sei se ficou muito claro o que eu disse’. E ele riu: ‘Véinho, a tua foi a melhor de todas, não aguentava mais isso aqui!”, conta.

Ao lado do Magog, Cassiano também teve algumas aventuras memoráveis, algumas delas vividas em São Paulo. “Em todas, o Miranda foi o nosso guia. Foi por causa dele que acabamos tocando lá, sentando em uma mesa com os Titãs e a Malu Mader para falar de música e foi por meio dele que nos conectamos com pessoas que hoje são gigantes da música brasileira. Foi uma época louca e inocente, cujos sonhos eram invariavelmente alimentados pelo cara”, conta.

A relação de amizade entre Cassiano e Miranda rendeu até um elogio vindo de um dos maiores produtores musicais do mundo, o norte-americano Jack Endino, que trabalhou em vários álbuns da geração Grunge, entre eles o clássico “Bleach” (1989), o primeiro álbum do Nirvana. “Uma das coisas que ele fez foi mostrar o som do Magog para o Jack Endino, que elogiou a gente na revista Bizz e nos chamou de ‘Heavy Metal de verdade’. Esse foi um comentário que, na época, eu não gostei nem um pouco, mas do qual hoje me orgulho. E o Miranda fez o mesmo com o Boi Mamão, o Woyzeck, o Pinheads e vários outros. O cara nos deu visibilidade”, elogia Cassiano.

O baixista do Magog, Jansen Nunes, também lembra dos desdobramentos desse episódio como um dos mais marcantes na carreira da banda. “Fomos na redação da Bizz com ele, e o Camilo Rocha também estava lá. Ele colocou o Magog bem alto e disse: ‘Isso que é banda de Heavy Metal’! Depois, ele ficou decepcionado porque a gente falou que gostava de Ride (risos). Ele sempre falava para a gente não ser banda para crítico de arte. O Miranda era um produtor único no país porque tinha uma visão moderna e ao mesmo tempo realista sobre a cena musical”, diz.

A locutora Margot Brasil, ex-Estação Primeira e Rádio Mundo Livre, que fez parte de toda a efervescência musical da Curitiba dos anos 1990, ressalta o envolvimento que o produtor mantinha com seus pupilos. “As coisas que ele vivenciou fizeram com que ele se tornasse um cara de grande conhecimento. Eu ouvi muitas histórias sobre a maneira igual com que ele tratava tanto o artista grande quanto o iniciante. Para o pessoal de Curitiba, eu acho que a principal contribuição que ele deu foi a questão da produção, de ensinar. Ele sabia o caminho que você tinha que fazer para chegar a algum lugar”, diz.

Margot, que testemunhou a ascensão e queda de inúmeros talentos pelas ondas do rádio, sabe o quanto é importante ter um timoneiro para chegar a algum lugar. “O problema de muitas bandas, e isso é normal no começo, é não saber o que fazer para se comunicar com o público delas. Existem alguns ruídos que demoram para ser corrigidos, e o Miranda era um cara que fazia isso por ser um produtor de grande qualidade. O fato de ele ser um cara acessível, de não ser ‘estrela’, tornava mais fácil essa comunicação. As cenas do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul não teriam a mesma relevância sem o Miranda dando os pitacos e as risadas dele ao mesmo tempo”, complementa.

Já Castor Daudt mantinha uma longa relação de amizade com Miranda que vinha desde a sua infância. Na metade da década de 1980, em um desses golpes do destino, Miranda acabou sendo fundamental para a carreira musical do guitarrista do Defalla. “Eu tinha decidido dar um tempo com a música enquanto fazia faculdade de publicidade. Vendi minha bateria, e pronto. Um dia, eu encontrei o Miranda na rua e ele me disse que queria mesmo falar comigo porque eu seria o baterista da nova banda dele, o Urubu Rei. Expliquei que não tinha mais bateria, mas ele disse que emprestava uma para eu usar”, relembra.

O último encontro de Cassiano com Miranda aconteceu no ano passado, em Florianópolis, em um evento sobre produção musical. Cerca de 80 pessoas estavam presentes para tentar absorver um pouco da experiência musical de Miranda. “Cheguei atrasado, quando o ‘véio’ já estava falando. Ele não me viu entrar, mas foi eu me sentar na plateia pra ele começar a falar de mim, me elogiar mesmo, para em seguida usar Curitiba como exemplo de um lugar cheio de bandas excelentes e artistas com muito talento que acabam deixando sua carreira musical em segundo plano em prol de uma vida ‘bundona’. ‘Os caras começam a encarar a banda como se fosse futebol de final de semana entre amigos e vão escrever livro, fazer mestrado… Porra, eu não sei o que acontece em Curitiba para eles fazerem isso!’, disse ele”, relembra.

Preocupado com a nova geração de artistas, Miranda tentava, ao mesmo tempo, incentivar a mostrar as barreiras que precisam ser ultrapassadas. “Ele sabia muito bem que a vida é muito mais complexa do que se ter uma banda e é muito mais do que música. Porém, ele queria justamente alertar os mais jovens – a grande maioria no evento – que, dado as dificuldades de se desenvolver uma carreira autoral na música, a tendência natural é relegá-la a um segundo plano com o passar do tempo. Para ele, quem tem talento tem o dever e obrigação de desenvolvê-lo, dar espaço a ele em sua vida”, complementa.

O encontro em Florianópolis acabou sendo o derradeiro. No ano passado, Cassiano lançou “Ouça Este Livro!”, que reúne 20 playlists escolhidas pelo autor. A publicação deveria ter a participação do produtor, mas o destino quis que não fosse assim. “Eu tinha convidado o Miranda para escrever o prefácio. Ele aceitou e ficou muito feliz com o convite, mas isso acabou não acontecendo pelos desencontros da vida. No final do evento, dei um abraço daqueles no ‘Gordo’ e, depois, ele me instigou a me unir aos figuras de Floripa para ajudar a agitar as coisas, trazer um pouco da minha experiência curitibana para a ilha. ‘Eles já sabem bem mais do que a gente’, respondi. Juro que imaginei que aquela poderia ser última vez que o veria”, diz.

Em um balanço geral, a maior crítica de Miranda às bandas curitibanas era em relação ao comodismo. Ele acreditava que os grupos da capital paranaense não faziam o suficiente para conseguirem se destacar no cenário nacional. “Ele sempre falava que Curitiba é uma cidade com grandes talentos e que ele não conseguia entender como não saiu nenhuma grande banda daqui, como um Titãs ou um Skank. Ele echava que isso tinha a ver com essa postura do curitibano achar que as coisas vão cair do céu”, conta Cassiano.

Certamente as críticas de Miranda trazem um fundo de verdade e devem ter contribuído para o que viria a seguir. Porém, existem tantas as variáveis que fazem uma banda despontar ou não que não é possível eleger um motivo principal. “Eu não acho que nós esperamos as coisas caírem do céu. Nós éramos muito novos. Talvez, se o Magog tivesse ficado mais com o Helinho (Pimentel) ou tivesse gravado em português, que não era uma coisa difícil de se fazer, as coisas poderiam ter sido diferentes. Mas não rolou, assim como não rolou pra muita gente. De qualquer forma, foi muito legal! Se Curitiba não produziu um Skank, um Titãs ou um Legião Urbana, a cidade revelou um Beijo AA Força, o Julie Et Joe, a Relespública. Em termos de qualidade, a gente mandou muito bem!”, complementa.

De fato, o Brasil não nunca viu uma banda de Curitiba alcançar o mesmo patamar de sucesso do que grupos de outros centros. Porém, a diversidade de boas bandas nos mais variados estilos que continuam a aparecer em Curitiba dificilmente encontra paralelo em outra capita brasileira. “Talvez, tenha faltado um senso melhor de marketing e organização. Curitiba também é diferente de outros lugares porque as bandas precisaram primeiro conquistar a própria cidade. É diferente de uma banda gaúcha, por exemplo, que já tem um espaço conquistado em Porto Alegre. Primeiro, nós precisávamos ganhar o coração de Curitiba”, conta Cassiano.

Entre prós e contras, talvez o grande barato da capital paranaense seja, justamente, fazer do status de underground a sua grande característica. “Essa geração tem o seu lugar na história do rock brasileiro independente, principalmente, pela qualidade das bandas! Talvez não tanto pela ‘agilização’, como ficou parecendo, mas musicalmente nós temos um lugar muito especial!”, finaliza Cassiano.

Em 2015, a história do Banguela foi imortalizada no documentário “Sem Dentes – Banguela Records e a Turma de 94”, dirigido por Ricardo Alexandre.

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