Texto: Marcos Anubis
Fotos e revisão: Pri Oliveira
Assistir a um show do Defalla é sempre uma experiência surreal por uma simples razão: no palco, ou fora dele, tudo pode acontecer. Na última sexta-feira (17) o grupo se apresentou no John Bull Pub, em Curitiba, e escreveu mais um capítulo de sua longa história, que já ultrapassou três décadas de intensa criatividade.
O show na capital paranaense foi o terceiro da turnê do seu mais recente álbum, “Monstro”, lançado em abril. Esse é o primeiro trabalho da banda desde 2002. Em suas dez faixas, ele incorporou uma atmosfera inglesa ao som do Defalla, mas sem perder as inúmeras influências que sempre fizeram parte do caldeirão sonoro do quarteto gaúcho.
Apesar dessas referências, não queira – ou ouse – definir o som do Defalla: nem os próprios integrantes se arriscam a cometer essa heresia. E é possível perceber isso na descrição na página oficial do grupo no Facebook.
Ferryboat
A abertura foi dos curitibanos do Ferryboat. O grupo, formado por Ferreira (guitarra e vocal), Mola Jones (bateria) e Alberto Lins (baixo), é literalmente um power trio talentosíssimo. Os três músicos já fizeram ou ainda fazem parte de bandas seminais da cena curitibana, entre elas o Maxixe Machine, o Beijo AA Força e o Opinião Pública.
Juntos, eles têm a cara da música feita na capital das araucárias: um mix de letras inteligentes, poesia e músicas bem- construídas e tocadas. “Nós não temos a pretensão de ser uma banda ‘de carreira’. Tocamos pouco por opção e por falta de oportunidade mesmo”, diz Ferreira. Durante o show, a banda parecia realmente estar aproveitando o momento. “Nos divertimos tocando sempre que ensaiamos. Sempre tem música nova, não precisamos tocar nada além de nossas composições. Claro que sobra menos espaço ainda para nós. Por isso, produzi esse show: muitos amigos na plateia, minhas condições técnicas e tocamos o que queremos”, explica.
Como em um bom livro, as canções do grupo remetem ao tempo dos velhos vinis, quando sentar em frente ao aparelho de som e apreciar o disco, lendo as letras no encarte, proporcionava uma sensação única. A escolha do Ferryboat para abrir a apresentação dos gaúchos não aconteceu por acaso. A ligação de Ferreira e seus companheiros do Beijo AA Força com o Defalla vem desde o início da década de 1980.
Os dois grupos surgiram praticamente juntos e, mesmo antes de se conhecerem, de certa forma, apostavam nos mesmos ideais. “O Defalla tocava com o Beijo AA Força na década de 1980. Também tocamos juntos no lançamento do CD “10 Dias na Praia” em 2013. Nada mais justo que retribuir a gentileza no lançamento do ótimo CD dos caras. Foi praticamente uma ação entre amigos”, analisa Ferreira. O Ferryboat tocou músicas do álbum “10 Dias na Praia” (2013), entre elas “Ligação a cobrar”, “Roleta russa dupla” e “Meu oxigênio”, além de canções do Beijo AA Força (“Primeira aula de cartografia aplicada”) e do Opinião Pública (“Homolusco”).
Uma abertura perfeita para uma noite que prometia ser memorável. O show foi uma ocasião especial em que a banda se reuniu para apresentar o seu trabalho e dividir o palco com amigos de longa data. “A Ferryboat não está na estrada. Não estamos disputando o espaço e os cachês miseráveis que são oferecidos à mais desunida, desorganizada e mal-remunerada categoria profissional do país. Mas quem quiser ter o CD da latinha pode comprar pelo meu site”, finaliza Ferreira.
Assista aos vídeos de “Primeira aula de cartografia aplicada” e “Oxigênio”, gravados ao vivo no show do Ferryboat no John Bull, e veja o nosso álbum de fotos da apresentação.
Monstros no palco
“Nós somos uma banda intensa pra caralho, cheia de confusão! E ainda é assim porque o nosso som é assim!”, disse o vocalista Edu K durante uma entrevista concedida ao Cwb Live no camarim após a apresentação. A definição é certeira. O Defalla abriu o show com três faixas do recém-lançado “Monstro”: “Timothy Leary”, “Zen Frankenstein” e “Fruit punch tears in the treasure hunt”.
Desde o início, era possível perceber que o formato da apresentação foi pensado em vários aspectos. O mais importante deles foi uma base pré-gravada com os efeitos e “truques” de estúdio do novo álbum. Ela foi usada embaixo da execução dos instrumentos de Castor Daudt (guitarra), Carlo Pianta (baixo) e Biba Meira (bateria) e da voz de Edu K. “O ‘Monstro’ foi montado, mixado e trabalhado durante muito tempo. Quando você faz o disco no estúdio, tudo é muito bonito, mas passá-lo para o palco é um saco! É muito diferente tocar com essas bases pré-gravadas”, explica Carlo.
Com a intenção de levar para o palco a mesma produção que as músicas receberam no estúdio, a banda levou algum tempo para chegar a um consenso e definir como as novas músicas seriam executadas ao vivo. Os três primeiros shows da tour, que foram realizados em São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, foram usados justamente para começar a encaixar esse roteiro. “Diferentemente do nosso país, nós somos uma democracia. Nós fomos testando coisas. Nesses três shows, já aconteceram milhares de coisas. O caos sempre está ali na nossa orelha, on the corner, e nós vamos tentando organizar esse caos. O Defalla atual é um organizador de caos. Nós não deixamos ele rolar. Agora, somos nós quem mandamos!”, diz Edu.
Claramente, é muito grande a confiança do Defalla nessa volta aos palcos. Mesmo assim, ao iniciar a turnê de um novo álbum, qualquer banda tem uma pergunta em mente: como será a reação do público e da crítica ao ouvir as músicas do novo trabalho? No John Bull, das 14 faixas do CD, oito foram tocadas pelo grupo. No dia seguinte, Edu K e seus comparsas devem ter embarcado tranquilos para o Rio de Janeiro, onde a banda se apresentou nesse domingo (20).
Todas as novas canções “funcionaram” ao vivo, ou seja, parecia que já faziam parte do repertório do quarteto. Isso é um excelente sinal. “Curitiba é foda! O duro é acompanhar o nível de bebedeira dos polacos!”, disse Edu antes de “Dez mil vezes”, música que tem a letra escrita pelo eterno Engenheiros do Hawaii, Humberto Gessinger. A afirmação é carregada de verdade e também de conteúdo etílico, afinal, o vocalista foi acompanhado por uma garrafa de vodka durante boa parte da apresentação.
Na parte final do show, “It’s fucking boring to death” levou os velhos fãs às lágrimas. Essa é uma daquelas canções que qualquer fã do Rock nacional precisa ouvir ao vivo em algum momento de sua vida. Com sua estrutura simples, é impressionante a catarse e a força que ela alimenta ao vivo. “Não me mande flores” encerrou a apresentação.
O retorno de um velho conhecido
Outro fator que marcou essa nova fase foi a volta de Carlo Pianta, que trouxe uma nova perspectiva para as canções da banda. A mudança aconteceu no final do processo de gravação do álbum “Monstro”, quando o antigo baixista, Flu, decidiu sair do grupo.
No show, era perceptível o entrosamento, principalmente, da “cozinha” formada por Carlo e Biba. Isso acrescentou ainda mais suingue à levada do Defalla. “Eu e o Carlo sempre tocamos juntos. Nós temos uma química muito boa. Para um músico, isso é a melhor coisa que pode existir”, afirma Biba. “O Carlo sempre fez parte da banda, ele só demorou a retornar. É como o Ringo, que sempre fez parte dos Beatles mesmo antes de entrar. Tinha que ser ele!”, complementa Castor.
Carlo Pianta fez parte da primeira formação do Defalla. Foi com ele que o grupo participou da coletânea “Rock Grande do Sul” (1986) ao lado do Engenheiros do Hawaii, Replicantes, TNT e Garotos da Rua. Esse foi o pontapé inicial que colocou a banda no cenário musical da época, em que inúmeros artistas começavam a surgir.
Sold out!
Os fãs que quiserem comprar o novo álbum do Defalla precisarão de um pouco de paciência. Com menos de três meses de seu lançamento, as 500 cópias do CD, que foi lançado pela Deckdisk, simplesmente já não são mais encontradas. “O Defalla tem uma tradição de ter os seus discos fora de catálogo. Eles são raros”, diz Edu. “Nós queremos manter isso!”, brinca Biba. “Quem quiser o álbum tem que escrever para a Deck! De preferência mandar uma carta, assim como o Mick Jagger mandava para a Chess”, complementa o vocalista.
Hoje, o streaming e o download estão tomando o espaço dos CDs e vinis. A maioria das bandas, sejam elas independentes ou bem-sucedidas mundialmente, disponibilizam na internet as faixas de seus trabalhos, usando plataformas como o iTunes.
Mesmo assim, os fãs que acompanham a trajetória de seus artistas preferidos normalmente fazem questão de ter o CD físico em suas coleções. “Nós vivemos em uma era digital, de download gratuito. O CD é uma coisa obsoleta dentro do mundo moderno, mas não é assim para os fãs da música. É legal você ir a um show, comprar um CD, pegar um autógrafo e tirar uma foto. Eu acho que ainda existe essa coisa física que o mundo luta pra não perder. No dia em que inventaram o sexo virtual, fodeu!”, diz Edu.
Gaúchos curitibanos
A relação do Defalla com a cidade de Curitiba vem desde o início da banda, em 1985, quando as grandes fontes de informação eram as revistas. O ponto de conexão entre os gaúchos e os curitibanos foi o grupo Beijo AA Força. “Naquela época, eu vi em uma revista que se chamava Pipoca Moderna, duas matérias com o Beijo AA Força e o Black Future, bandas que são muito amigas nossas. Na hora eu pensei: ‘puta, que banda foda!’. Eles tinham um visual muito foda”, diz Edu.
Algum tempo depois, em 1986, o Beijo AA força convidou o Defalla para um show em Curitiba. “Foi muito foda! Eu sou meio paranaense porque morei em Foz do Iguaçu durante vários anos. Eu comprei a minha primeira guitarra em Maringá”, conta o vocalista. “Eu vim pra cá e não fui mais embora. Praticamente fiquei morando na casa do Rodrigão e do Ferreira!” (risos), conta Edu. “Aí a gente criou uma relação muito grande com a cidade, com os bares, as bandas, as bucetas, os paus…” (risos), complementa.
O show selou definitivamente a amizade entre as duas bandas e criou uma ligação que existe até hoje. “Curitiba tem várias coisas em comum com a cena porto-alegrense, e mais ainda com bandas como a nossa. Nós nunca fomos um grupo sessentista. Curitiba sempre foi trifuturista e nós também”, analisa Edu.
Mas as semelhanças entre as capitais paranaense e gaúcha vão além disso. Essas particularidades, que ajudaram a despertar o interesse de Edu e sua banda, se estendem à arte em si. “Curitiba sempre foi uma cidade que prezou pelo estilo. Digamos que ela disputava com Porto Alegre, como se fosse uma espécie de Londres brasileira. E aqui os teddy boys me davam porrada com tacos de beisebol, porque eu era mod! Curitiba era mais legal ainda por causa disso” (risos), lembra Edu.
Outro ponto em comum é a forma de trabalho das duas bandas, que estabeleciam parcerias com os poetas e escritores de ambas as cidades. “Nós trabalhávamos dessa forma em Porto Alegre, assim como eles faziam aqui. Isso vai do Paulo Leminski até a nossa geração, que tinha o Marcos Prado e tal. São pessoas que não estão mais fisicamente conosco, mas são eternas porque esse tipo de gente não morre”, afirma Edu.
O renascimento do Defalla traz um sopro de criatividade ao Rock nacional. Muitas vezes estagnadas e transformadas em covers de si mesmas, a maioria das bandas do país se deitou em berço esplêndido e passou a viver do seu passado.
Esse não é o caso do Defalla: 31 anos após o seu nascimento, o grupo continua à frente de seu tempo. Como disse um fã antes do show, “eles são certeza de ‘decepção’. Quando você espera uma coisa, eles fazem outra”. É esse ar contestador e inquieto que manteve intacta a chama criativa da banda. Então, que ela nunca se apague!
Assista aos vídeos de “It’s fucking boring to death” e “Dez mil vezes” , gravados ao vivo no show do Defalla no John Bull, e veja o nosso álbum de fotos da apresentação.
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