A MTV teve alguns apresentadores, poucos é verdade, que tinham conhecimento musical acima da média. Nesse seleto grupo estão o reverendo Fabio Massari, que apresentava o programa Lado B, Gastão Moreira, do Fúria Metal, e Edgard Piccoli.
Edgard nasceu em Campinas no dia 20 de maio de 1965. Formado em publicidade e propaganda pela PUC de sua cidade natal, ele passou pela Rádio Bandeirantes de Campinas e pela 89 FM de São Paulo. Sua carreira na MTV começou em 1992 e durou até 2006. Nesses 14 anos de TV, seu carisma e sua cultura musical destoavam da linha mais comercial da emissora. “Era uma turma boa, em todas as áreas, cheia de energia. Tenho lembranças muito boas dessa época. Ali aprendíamos fazendo, na pura intuição, e querendo viver aquilo tudo intensamente”, relembra.
Na emissora, ele apresentou vários e diferentes programas, como o Palco MTV, Jornal da MTV, Ultrasom, Nação MTV e Garagem do Edgard, que o apresentador considera o seu mais interessante trabalho. “Foi o programa em que eu mais vibrei. Ali já tinha um embrião do Circo. Gostava de fazer o Jornal da MTV também, principalmente entrevistando”, diz. O “Circo” era o Circo do Edgard, criado pelo apresentador já no canal a cabo Multishow. “Aquilo sim me desafiou como apresentador, entrevistador, jornalista e músico virtual que sou”, afirma.
Entrevistas marcantes
Trabalhando em um canal do porte da MTV, Edgard teve a oportunidade de entrevistar muitos artistas, nacionais e internacionais. Alguns ficaram em sua memória, como Neil Young, Ozzy Osbourne, Foo Fighters e Red Hot Chilli Peppers.
Na sua passagem pelo canal a cabo Multishow, Edgard teve um dos momentos mais importantes de sua carreira. “Cara, a entrevista com o Radiohead foi demais porque além de gostar muito do som e admirar a postura da banda, foi uma conversa bem bacana em que Thom Yorke sorriu e foi simpático, coisa que até então eu não tinha visto”, relembra. A entrevista foi realizada com o vocalista Thom Yorke e com o guitarrista Ed O’Brien. “O fato de ter sido o único a falar com a banda aqui no Brasil, nessa ocasião em que eles tinham acabado de lançar o ‘In Rainbows’, tornou esse momento ainda mais especial”, complementa.
Algumas entrevistas, porém, não saíram como o esperado. Uma delas foi com o vocalista do Iron Maiden, Bruce Dickinson. “Além de ter sido a minha primeira entrevista em inglês, rolou um mal-entendido com um clipe que anunciei e ele logo interrompeu dizendo que não tinha autorizado a exibição”, diz. O episódio aconteceu no programa Palco MTV, onde eram exibidas gravações de backstage, passagens de som e clipes ao vivo. “Na verdade o erro foi da gravadora que conduziu mal o seu trabalho. Ele tinha saído do Iron e estava promovendo seu álbum solo. Resultado, a tensa entrevista parou ali, mas mesmo assim dividimos o material e editamos o programa. Acho que deu uns seis minutos de papo”, conta.
Outro bate-papo “problemático” aconteceu com o trio americano Beastie Boys. “Eles não queriam mesmo falar e ficaram jogando basquete em uma cesta improvisada nos bastidores da extinta casa de shows Olympia, em São Paulo”, diz. E parece que essa postura descompromissada dos Beastie Boys não foi somente com Edgard. “Quando soube que com o Massari foi meio que essa mesma onda de ficar ‘zoando’ sem mostrar muito interesse em falar, fiquei mais conformado”, brinca.
A vida pós MTV
Após a sua saída da emissora, que aconteceu em 2006, Edgard passou pela Band, Turner e Multishow. Dentre todos esses projetos, o mais pessoal foi a criação da empresa DosDois Produções. “A DosDois foi aberta em 2006 com a minha ida para o Multishow. A princípio, a ideia era dar forma aos projetos que eu pensava para televisão e rádio. Depois vieram as coisas para a internet. Quero exatamente gerar conteúdo audiovisual, só que agora não apenas comigo à frente das câmeras”, explica.
Atualmente, o carro chefe da DosDois é o programa Sala de Som. Nele, Edgard abre a sala de sua casa para um bate-papo com artistas. A intenção é mostrar ao público novos artistas e também nomes consagrados da música brasileira. “Vejo como ofício e prazer ser curador. Levar para as pessoas coisas que eu gosto. Não pretendo restringir ao novo, ao inédito. No Sala vai ter de tudo, claro ,com meu crivo”, conta. Além do Sala de Som, Edgard apresenta o programa de entretenimento, humor e notícias Morning Sun na Rádio Jovem Pan de São Paulo.
Heavy Lero
No ano passado Edgard se juntou a outros dois profundos conhecedores dos “bons sons”: Gastão Moreira e Bento Araújo, do Poeira Zine. Por meio de um canal no Youtube, o trio criou o programa Heavy Lero, um bate-papo informal sobre música. “O projeto surgiu quando o Gastão me procurou se dizendo descontente e pensando em abrir um comércio. Algo na área de alimentação ou acessórios da moda, se não me engano”, explica.
A partir daí, a ideia de um programa falando de assuntos musicais variados começou a ser formatada. “Sugeri então que ele pensasse em um projeto para o Youtube, na nossa área. Nessa ocasião eu já tinha pilotado o Sala de Som, estava abrindo o canal do programa e tinha certeza que o portal de vídeos seria uma excelente opção. Era o final do ciclo da MTV que nos revelou”, diz.
Surgiu então o Heavy Lero, com episódios semanais de aproximadamente dez minutos, com apresentação de Gastão e Bento Araújo e produção e direção de Edgard. “Foi quando ele pensou em um formato de bate-papo entre a gente e me perguntou se eu topava fazer. Disse que gostaria de contribuir com o projeto de outra maneira, uma vez que estava focando meu negócio na geração de conteúdo audiovisual através da minha produtora, a DosDois Produções. Foi então que surgiu o nome de um amigo nosso, o Bento Araújo”, conta.
Infelizmente, parece que o projeto não terá continuidade. Uma pena para o público brasileiro que gosta de boa música e anda extremamente carente de programas com conteúdo inteligente na mídia nacional. A última edição do Heavy Lero, que teve como convidado especial outro monstro do jornalismo musical brasileiro, o reverendo Fabio Massari, foi ao ar no dia 23 de dezembro do ano passado. “O projeto Heavy Lero parou ali. Foram 12 episódios em que despendi toda a minha melhor energia na produção e direção. Mas bastou, teve seu ciclo e pelo menos nessa formação que deu origem ao projeto não acontece mais. Foi uma experiência que ensinou em todos os sentidos, pessoal e profissional”, analisa.
Bagagem musical
Edgard sempre se destacou na MTV por conhecer, verdadeiramente, o mundo musical, qualidade difícil de ser encontrada entre a esmagadora maioria dos VJs que passaram pela emissora. Seu gosto musical vai do jazz à MPB. “Poderia te dizer uma eclética lista que vai de Coltrane, Miles, The Do e Concrete Knives a Clube da Esquina, Elis, Lobão, Tulipa Ruiz, Saulo Duarte… Há muito tempo que eu sou do rádio e aprendi a achar valor em lugares distintos. Acho isso bom”, afirma. Edgard também demonstra conhecer o rock curitibano, citando algumas bandas que lhe chamam a atenção. “Sempre tem coisas boas aí. Gosto da Relespública, O Lendário ChucroBilly Man, Poléxia, Bad Folks, Charme Chulo e Copacabana Club”, diz.
Essa cultura musical que Edgard carrega junto de si foi sendo construída aos poucos, em um tempo onde a internet não existia, fazendo com que a descoberta de novos artistas fosse ainda mais complicada. “Sou aberto a ouvir, claro que com certos padrões que foram sendo apurados com o tempo. Mas acho que fechar é limitação e nunca quis me limitar a esse ou aquele gênero”, diz.
Arte x Comércio
Hoje, o mercado musical de todo o mundo vem cada vez mais se voltando para o comercial, materializando a chamada “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer. Ao mesmo tempo, por meio do Youtube, qualquer jovem pode ouvir a discografia inteira de uma banda e se embrenhar na história da música. Essa ambiguidade torna esse cenário ainda mais confuso. “Quem quiser buscar certa erudição tem que explorar em sua condição íntima, solitária. O que nos move em direção ao conhecimento aprofundado, em qualquer área, seja na música, nas artes plásticas, no cinema, no teatro ou na dança, é algo muito pessoal e está relacionado à experiência de vida”, analisa.
Edgard acredita que, mesmo com a falta de espaço para a música de qualidade, atualmente, ainda é possível resistir ao mercantilismo fonográfico. “Me parece que nosso teor aqui na conversa é a partir da perspectiva indissociável da indústria cultural. Estamos submetidos como parte integrante, por vezes resistentes e por vezes condizentes”, afirma.
Um dos meios para que essa resistência aconteça, segundo o apresentador, é a própria internet. “A possibilidade de uma rebelião pessoal quanto a isso, mesmo que remota nesses tempos, existe. Na sua própria pergunta está a menção a uma ferramenta, o Youtube, que tem dado uma condição interessante para que esse levante original e genuíno se dê”, opina.
Toda essa nova realidade da música afeta, principalmente, a nova geração de ouvintes. Edgard tem quatro filhos adolescentes e procura fazer a sua parte passando ao quarteto essa bagagem musical. “Não censuro, mas não dou brecha. Faço pensar se aquilo é de fato legal, refletir se não é uma coisa imposta a eles pela sociedade. Dou parâmetros pra eles analisarem e concluírem por si próprios. E para meu alento o saldo é positivo”, conta.
Nitidamente Edgard Piccoli carrega a música em todos os momentos de sua vida, tanto profissionalmente como ao lado de sua família. Seus projetos para o futuro seguem na linha artística, principalmente com a sua produtora. “Buscarei empreender na produção audiovisual, emplacar projetos em que acredito, participar dos editais de fomento no setor. É aí que estou colocando minha dedicação e energia”, finaliza.
Confira alguns momentos da carreira de Edgard: o programa Sala de Som, o último episódio do Heavy Lero e o Circo do Edgard.
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