Texto: Marcos Anubis
Fotos: Giovanna Lombardi, arquivo Criaturas, Iaskara Florenzano e portal After Hours

O lançamento da banda curitibana é o primeiro trabalho do grupo desde 2009 e marca a estreia do selo Volts

A nova formação das Criaturas com Caetano Zagonel, Bruno Zagonel, Xanda Lemos, Yan Lemos e Yuri Lemos




Curitiba é um celeiro de grandes bandas, dos mais variados estilos. Do Pop ao Black Metal, a capital paranaense sempre apresentou ao mundo muitos artistas criativos que, de uma maneira ou de outra, deixaram um legado permanente.

A banda Criaturas, que foi um dos nomes mais importantes da cena underground curitibana nos anos 2000, certamente está nessa lista.

Nessa sexta-feira (2), as Criaturas voltaram à vida para alimentar esse legado com o lançamento de “Vestígios”. Esse é o primeiro trabalho de estúdio do grupo desde o álbum “O Sexto Dedo” (2009).




A volta após 11 anos

O EP marca a estreia do selo Volts, que acaba de ser criado pelo produtor e empresário Marcelo Crivano. “Eu e o Crivano somos amigos desde o lançamento da “Marcianos” (clássico do trio curitibano Relespública). O fato de a gente ter vindo ao Brasil justamente quando ele decidiu montar a gravadora foi uma feliz coincidência”, conta a guitarrista e vocalista das Criaturas, Xanda Lemos. Ela e o marido e companheiro de banda, Bruno Zagonel, moram atualmente em Atlanta, nos Estados Unidos.

Para gravar o EP, Xanda Lemos (vocal, guitarra e piano), Bruno Zagonel (bateria) e Caetano Zagonel (baixo) se juntaram aos irmãos Yan (vocal, guitarra e violão) e Yuri Lemos (vocal e guitarra).

Depois do contato inicial, que partiu de Marcelo Crivano, o trabalho começou a tomar forma. “Assim que o Bruno mostrou as prés que nós gravamos aqui nos EUA, o Crivano ficou doido e na mesma hora fez a proposta pra gente. Primeiro, achamos que era papo de festa, mas depois, o Bruno e o Crivano continuaram a desenvolver a ideia”, diz.

Na sequência, em uma reunião na casa do criador da Volts, as Criaturas finalmente aceitaram o convite. “O Crivano fez uma proposta irrecusável: gravar quatro músicas, uma para cada dia de Carnaval, em um dos melhores estúdios da cidade”, conta.

Só que essas quatro músicas logo viraram cinco e, depois, com as versões instrumentais que foram incluídas no EP, acabaram se transformando em dez.

A gravação e a mixagem foram comandadas por Vinícius Braganholo e aconteceram em fevereiro, durante o Carnaval, no Nico’s Studio, em Curitiba.

A produção musical ficou a cargo de Bruno Sguissardi, produtor e guitarrista da banda Anacrônica e a engenharia de som foi do músico e produtor argentino, Frankie Lennon. Já a masterização final foi realizada por J.J. Golden no Golden Mastering Studios, em Ventura, na Califórnia.

A tracklist do álbum, que em breve também será lançado em vinil, é composta por dez faixas, já que as cinco músicas também foram disponibilizadas em versões instrumentais.

A decisão da banda de incluir as canções sem vocais é bem interessante porque, dessa maneira, é possível perceber as nuances mais profundas de cada composição. “O resultado não poderia ter ficado melhor! Esse foi um trabalho que contou com o esforço, a dedicação e o talento de muita gente. Mas ele só foi possível, principalmente, por causa da generosidade e do empreendedorismo visionário do Crivano”, elogia.

As músicas do disco também contaram com as participações de Bruno Sguissardi (guitarras, voz e teclado), Mariana Zibáh (flautas e vozes em “Omalola”), Gui Miudo (percussão em “Omalola”), Miguel Thomé (solo de guitarra em “Better times”), Cris Lemos e Alice Lemos (vozes em “Omalola”), Yuri Vasselai (dobra de bateria em “Réquiem”), e L.P. Daniel (arranjo em “Réquiem”).

Yan Lemos, Bruno Sguissardi e Yuri Lemos na gravação do EP “Vestígios”, no Nico’s Studios




Um mergulho nos anos 1970, mas com uma roupagem do século XXI

As faixas “Vestígios”, “Sunday”, “Better times”, “Omalola” e “Réquiem” mostram muitas influências do Rock brasileiro dos anos 1970.

Apesar disso, o caminho musical que o grupo buscou no EP não se limita a esse período específico. “Eu acho ótimo que as pessoas escutem o nosso som e consigam identificar ‘vestígios’ das eras musicais que certamente formaram a nossa personalidade e inspiraram todos nós nessa produção. Mas a proposta do trabalho, eu quero crer, era fazer com que ele soasse atual, do século XXI” diz.

As músicas do EP unem momentos de doçura e peso que se materializam em guitarras furiosas e vocais lúdicos. “Esse mix de doçura e peso é a estética das Criaturas desde o início. É o resultado quase inevitável de uma banda de Rock encabeçada por uma mulher que cresceu cantando Bossa Nova e hinos de igreja em casa. Além disso, boa parte da sonoridade do disco foi projetada pelo Bruninho Sguissardi. Ele, o Yuri Lemos e o Crivano também foram os arquitetos de cada música. Eles trouxeram uma porção de possibilidades sonoras diferentes das nossas”, explica.

Nesse processo, os novos integrantes do grupo também fizeram a diferença no resultado final do EP. Essa mistura de influências retrata muito bem os caminhos pelos quais os integrantes das Criaturas se aventuraram durante a trajetória musical de cada um deles. “Comparando com a gente, o Bruno Sguissardi e o Yuri vêm de uma escola musical muito mais antenada com o Pop e com os sons contemporâneos. Com certeza, isso influenciou os arranjos, a captação e a mixagem. Já o peso revela uma coesão não apenas entre o baixo e a bateria dos irmãos Zagonel, mas também das guitarras do Yan e do Yuri Lemos. Além disso, entra a competência profissional e tecnológica da captação sonora do Frankie Lennon. Depois, com a masterização do J.J. Golden, tudo ficou ainda mais coeso. Então, não tinha como não ser doce e nem tinha como não ser pesado!”, complementa.

A arte do disco foi criada pelo designer curitibano Alexandre Correa, que também desenvolveu o site da banda e todo o material promocional do EP. “O conceito foi baseado em ‘Vestígios’, a música que dá nome ao álbum. A ideia é representar um espaço urbano abandonado no qual pudéssemos encontrar apenas rastros de vida humana. Como foi (ou pelo menos deveria ter sido ou ser) a experiência da quarentena. A marca visual do EP também representa uma transição da banda para essa nova formação e, consequentemente, para essa nova sonoridade”, explica.




Harmonias vocais

Nas músicas que fazem parte da trajetória de Xanda em todos os projetos dos quais ela participou, sempre é possível perceber uma preocupação extra com as harmonias vocais.

Obviamente, no novo EP das Criaturas, não foi diferente. “Pra mim, a parte mais divertida da canção é harmonizar as vozes. Eu venho de uma família musical na qual cada encontro natalino era uma cantata em oito vozes com meus pais, irmãos, primos e tios. Por isso, inclusive, é que os meus projetos com o Wasted, a Naína e os Gianninis eram tão atrativos pra mim. Neles, eu podia criar livremente essas linhas melódicas secundárias”, diz.

Nas Criaturas, Xanda investiu ainda mais na construção desses arranjos vocais bem trabalhados. “Quando eu passei a ser a voz principal nas Criaturas, parecia que faltava alguma coisa. Eu ouvia os backings na minha cabeça, mas o Caetano, o Bruno e o Tile não cantavam. Então, chamamos a Tatti Lemos (irmã de Xanda) logo no segundo ensaio. Quando o Rafa Rodrigues (guitarrista e vocalista) entrou na banda, a gente se divertia muito criando linhas de backing vocals um pro outro. O Caetano também participava, quando resolvia se arriscar. Então, ficavam as três vozes e aquilo pra mim era muito louco”, complementa.

“Bianca”, faixa que abre o EP “Lugares Comuns” (2005), é um bom exemplo disso. “Ali, dá pra perceber bem como eu e o Rafa intercalávamos o vocal principal e o backings dentro de uma mesma música. E ainda tem o Caetano fazendo a terceira voz no refrão. No álbum ‘O Sexto Dedo’, também exploramos as três vozes em ‘Insuportavelmente só’, que eu canto junto com o Yan e Yuri, que são meus sobrinhos”, analisa.

No novo trabalho, as variações vocais também estão presentes. “Fizemos isso em ‘Better times’ (com as participações do Bruno Sguissardi e do Frank Lennon), e em “Omalola” (com o Cris, a Alice Lemos e Mariana Zibáh cantando com o Yan, o Yuri, Bruninho Sguissardi e eu). Sem falar na festa do final de ‘Réquiem’, quando todo mundo que estava no estúdio, não importando se era cantor ou não, acabou cantando”, complementa.

Mariana Zibáh gravando as flautas e vozes de “Omalola”, no Nico’s Studio




As músicas

Musicalmente, o EP revela até mais influências do que era possível perceber nos outros trabalhos lançados pelas Criaturas até hoje. “Acho que a mescla de estilos reflete primeiro a procedência dessas músicas. Duas foram composições que eu criei no piano, o que é um fator que já faz uma diferença enorme na pegada e nos arranjos”, avalia.

“Vestígios”, a canção que dá nome ao álbum, é uma composição de Yan lemos que entrou em pauta aos 45 minutos do segundo tempo, mas acabou se tornando a referência desse trabalho da banda. “A começar pelo título, esta música é a que melhor representa o que estamos vivendo hoje. Sonoramente, ela também ficou muito poderosa, com um refrão pegajoso que você não consegue mais parar de cantar depois que escuta e aprende. Também acho que ela é a que melhor representa a nova fase ‘criaturesca’ com o Yan e o Yuri. Por tudo isso, e claro, por estarmos em 2020, vivendo os dramas do Covid-19, o EP não poderia ter vindo com outro nome. Se você prestar atenção na letra, verá que ela parece ser profética, no sentido de que foi composta antes da pandemia, mas já previa que o tempo e os sinais iriam fechar para nós que somos e não somos mais jovens”, diz.

A emblemática “Omalola” é a faixa mais ousada do EP. A canção tem uma pegada bem na linha do que os músicos, cantores e compositores Peter Gabriel e Paul Simon faziam nos anos 1980/90.

Mas o que chama mais atenção em “Omalola” é que ela é cantada em iorubá, uma língua nativa do continente africano, e tem uma história bem forte, ligada ao filho de Xanda e Bruno. “A ‘Omalola’ é incrível por ser uma criação ‘tricontinental’. Ela é uma música originada na Nigéria, pré-produzida nos Estados Unidos e gravada no Brasil. Quando o meu filho nasceu, descobriram que ele tinha uma cardiopatia que comprometia os níveis de oxigenação no sangue. Então, ele teve que ficar na UTI respirando com auxílio de aparelhos. Quando ele veio pra casa, tivemos que trazer toda a parafernália do hospital e o estado da Geórgia nos obrigou a contratar uma profissional de saúde para fazer visitas diárias em casa enquanto ele tivesse que usar os aparelhos”, explica.

A enfermeira se chamava Omalola e, quando o filho de Xanda teve alta do cardiologista, a curitibana decidiu que precisava de algo para lembrar do trabalho dedicado e vital prestado pela enfermeira naquele período difícil. “Eu pedi para a Omalola cantar uma música da infância dela, para que eu pudesse cantar para o bebê e nunca mais esquecesse. Ela gravou um voice-memo no meu telefone. Então, quando você ouve alguém no refrão da música dizendo ‘this is Omalola’, é a própria Omalola que vos fala!”, revela.

Pouco tempo depois, o baixista Caetano Zagonel desembarcou em Atlanta para visitar o sobrinho recém-nascido e, obviamente, a música entrou em pauta. “A gente começou a pré-produção com várias linhas vocais gravadas por mim, pelo Caetano, pelo Bruno e por minha mãe. Então, o Caetano fez uma linha de baixo e ele e o Bruno tentaram gravar uns tambores, mas não tinha ficado muito bom. Quando o Caetano voltou ao Brasil, ele mostrou a música para o Gui Miudo e para a Mariana Zibáh (músicos da banda Central Sistema de Som) e eles injetaram mais vida na canção, com flautas e tambores. Tanto que fizemos questão de chamá-los para gravar a versão definitiva”, diz.

Essa atitude colaborativa deu um sentido ainda maior para uma canção que já nasceu especial. “Essa música não é só da Omalola, do meu filho ou das Criaturas. Ela é uma música coletiva, do Gui e da Mariana, e representa bem essa dimensão comunitária que existe ainda hoje em territórios africanos que não foram completamente ocidentalizados. É uma música para lembrar que todos nós somos parte de um mesmo organismo, de uma raça humana única em sua infinita diversidade”, complementa.

Cada uma das canções do álbum têm uma particularidade na composição ou um significado especial para a banda. “Em ‘Better times’, por exemplo, existem várias influências que se cruzam e vão do Swing americano ao Carolina Shag, da Soul Music da Motown ao Ska jamaicano. A ‘Réquiem’ tem muita psicodelia, mas também traz um pouco de música clássica. Eu fiz essa música na época em que eu tentava tirar um dos ‘Noturnos’ do Chopin. Já a ‘Sunday’ eu não sei, acho que ela veio do coração. Então, são cinco canções muito diferentes porque vieram de lugares diferentes e foram compostas para instrumentos diferentes”, afirma.

Xanda, Caetano, Rafael e Bruno, a formação das Criaturas na época do EP “Lugares Comuns”




A história das Criaturas

As Criaturas surgiram em 2002 e a primeira formação contava com Xanda Lemos (guitarra e vocal), Tile Douglas (guitarra), Caetano Zagonel (baixo), Tatti Lemos (backing vocals) e Bruno Zagonel (bateria).

Em 2003, o grupo participou de duas coletâneas que foram lançadas por jornais curitibanos: “Novos Sons Fora do Eixo” (Jornal do Estado, em parceria com a De Inverno Records), e “Os 4 Elementos da Música Paranaense” (Gazeta do Povo).

Pouco tempo depois, Tatti Lemos saiu da banda e, em seguida, Tile Douglas também deixou o grupo para assumir o baixo na Copacabana Club.

Então, Rafael Rodrigues, do grupo mod Tarja Preta, entrou para dividir os vocais e as guitarras com Xanda e trazer uma pegada mais Punk Rock ao som das Criaturas. “O Rafa mudou bastante a cara e o som do grupo, como dá para ver na capa e nas músicas do EP ‘Lugares Comuns’. E não foram apenas as composições dele, porque as minhas também acabaram enfatizando mais a crueza, as distorções e a velocidade do Punk Rock”, diz.

Criaturas com Rafael Rodrigues, a formação mais visceral das Criaturas




Energia e camaradagem

Naquele momento, essa troca de influências entre os integrantes fez muito bem para a banda. “O Rafa também acabou compondo várias baladas. Acho que rolou uma química e um equilíbrio muito legal entre a gente. Não havia nenhuma disputa de egos entre nós, com os dois músicos na linha de frente. A gente sabia dar espaço um pro outro em cada música”, diz.

Com essa formação, a banda lançou o EP “Lugares Comuns” (2005), que é o trabalho mais visceral do grupo, e o álbum ao vivo “Criaturas ao Vivo – Grande Garagem que Grava” (2007).

No final de 2007, Rafael também se desligou da banda e Xanda fez uma viagem de três meses para os EUA. Já em 2008, pouco antes da mudança definitiva de Xanda e Bruno para os Estados Unidos, o grupo gravou o álbum “O Sexto Dedo”. Esse foi o primeiro e único full length das Criaturas e só foi lançado em 2009. Na sequência, Xanda e Bruno decidiram morar definitivamente em Charlotte, na Carolina do Norte.

No mesmo ano, Rafael precisou largar a música para tratar da saúde. Ele acabou falecendo em 2013, mas deixou um legado que até hoje é reconhecido pelos integrantes das Criaturas. “Quando ele soube que estava com nódulos nas cordas vocais, ele parou de tocar e cantar para preservar a garganta. Mas mesmo depois que ele saiu do grupo, a gente nunca deixou a amizade de lado. Logo depois, viemos para os EUA e, embora a distância tenha nos separado mais, sempre que íamos ao Brasil a gente se encontrava. A morte dele foi um golpe muito duro pra todos nós”, lembra.

Desse período em diante, a banda só fez alguns shows esporádicos quando Xanda e Bruno vinham à Curitiba, mas o grupo não deixou de existir.

As Criaturas na festa de casamento de Xanda e Bruno, em 2008




A vida e a música nos EUA

Atualmente, Xanda e Bruno moram na cidade de Atlanta, na Geórgia, e vivenciam um cenário bem diferente em comparação com a vida dos músicos no Brasil. “A diferença maior eu acho que é a grana. O investimento e os sacrifícios financeiros que um músico tem que fazer no Brasil são absurdos. Aqui, a gente tem acesso a instrumento bom e equipamento profissional a preços não tão proibitivos. Os espaços para música ao vivo também oferecem mais estrutura de luz e som do que a maioria dos locais no underground brasileiro, com raras exceções. Quanto aos cachês, não posso dizer, porque nas poucas vezes que toquei aqui foi de graça”, explica.

Nos EUA, apesar das ocupações com estudo e trabalho, Xanda e Bruno não abandonaram a música. “A cena musical de Atlanta é alucinante. Não é à toa que o Sir Elton John mora aqui. É uma pena que viemos para cá quando eu já estava grávida de sete meses. Com filho pequeno, cursando um doutorado e sem família por perto, foi impossível aproveitar tudo o que a cidade tem pra oferecer. Não trabalhamos com música desde que mudamos pra cá, mas tocamos em casa e, eventualmente, fazemos uma jam com os amigos e pré-produzimos as composições novas que aparecem”, diz.

As Criaturas no festival Demo Sul, em Londrina, no ano de 2005




A cena musical curitibana dos anos 2000

As Criaturas nasceram na cena musical curitibana nos anos 2000, que foi construída na base da atitude “faça você mesmo” de cada uma das bandas que fizeram parte daquele período. “A virada do milênio foi marcada por uma efervescência do Rock alternativo e independente. Tinha muita banda nova surgindo e somando com as veteranas, muitas produtoras culturais criando catálogos de artistas e vendendo shows, festivais de música acontecendo, e um número razoável de lugares pra tocar”, conta.

Além disso, várias outras particularidades também ajudaram a fazer com que aquele momento fosse especial para o underground curitibano. “Além da nossa própria inventividade e juventude, acredito que existiram alguns fatores que contribuíram para a relevância daquele momento. Primeiro, tinha o fenômeno das redes sociais (na época era o Orkut) que propiciava às bandas locais a possibilidade inédita de juntar fãs e seguidores no Brasil inteiro de maneira bem mais eficiente e explícita do que simplesmente trocar fitas demo e zines com grupos de outras cidades. Com a internet, surgiram blogs especializados em arte, literatura e música, um fator que impulsionava a interação e também as intrigas entre os artistas dentro e fora cidade”, conta.

Na opinião de Xanda, uma questão essencial naquela cena foi a imprensa cultural que existia da época, tanto na capital paranaense como em outras cidades do Brasil. “Existiam vários jornalistas especializados para escrever sobre a gente nos principais jornais dentro e fora da cidade. Alguns jornais, inclusive, fizeram coletâneas e coleções com várias bandas em um mesmo disco”, diz.

Outra característica daquele período foi a atitude dos artistas em relação à cena. “Além de fazer praticamente tudo, desde compor, arranjar, ensaiar, gravar a música e marcar o show, a gente também imprimia vários cartazes e saía panfletando em bares, nos parques e até em semáforos. Havia um misto de colaboração e animosidade entre nós e os donos de bares e entre os donos de bares e os produtores culturais”, explica.

Assim, aos poucos, as bandas curitibanas começaram a conquistar espaço no circuito brasileiro. “Alguns grupos estavam se profissionalizando e angariando públicos em outras capitais do país. As bandas buscavam obstinadamente um lugar ao sol, o que na época ainda significava aparecer na MTV e assinar um contrato com alguma gravadora. Havia muita segmentação dentro daquela cena com os mods, os rockers, os indies, os grunges, os góticos, os punks, os hardcores e os metaleiros. Mas não sei se isso era um fenômeno específico daquela época”, diz.

Outra questão importante para a consolidação daquela cena foi a quantidade de festivais que foram realizados naquele período. “As edições do ‘Rock de Inverno’, que a Adriane Perin (jornalista da De Inverno Comunicação) e o Ivan Santos (jornalista do jornal Bem Paraná) produziram no 92 Graus, e também outros festivais (inclusive alguns que incluíam bandas internacionais no lineup), tinham uma cobertura pesada da imprensa nacional. Eles certamente contribuíam para a rápida projeção de muitos grupos pra fora de Curitiba. Mas aquela onda, assim como veio, acabou recuando antes do final da década e muitas bandas deixaram de existir junto com o Orkut, as fitas cassete e a MTV”, complementa.

No final, ficaram os bons momentos e a história que cada grupo construiu. “Eu acho que Curitiba sempre foi rica e diversa musicalmente, e agora, eu acredito, deve ser ainda mais. É óbvio que, para nós que vivemos e fizemos parte daquilo tudo, os anos 2000 parecem que foram uma espécie de idade de ouro”, afirma.

A primeira formação do Wasted com Joan Lang, Ivan Rodrigues, Xanda Lemos e Gabriel Nogueira




O início com o Wasted

A trajetória artística de Xanda teve início em 1998 com o Wasted, que também foi um dos grandes nomes daquela cena curitibana dos anos 1990/2000. “O Wasted foi absolutamente importante e com certeza cumpriu seu papel na minha evolução musical. Por outro lado, a banda tinha um potencial enorme que simplesmente deixou de ser explorado quando o grupo desandou”, conta.

Formado em 1998 por Joan Lang (guitarra e vocal), Xanda Lemos (guitarra e vocal), Gabriel Nogueira (baixo) e Ivan Rodrigues (bateria), o quarteto teve uma vida rápida, mas muito criativa.

O Wasted só lançou o álbum “It’s All We’ve Got” (2000)” e acabou se desfazendo em seguida. “A Joan queria ir para Londres e a gente não encarou. Ela foi, voltou e remontou a banda com outra formação que contava com a maravilhosa Babi Age na bateria. No fim, ela retornou para solos ingleses, onde vive até hoje”, explica.

Xanda ainda destaca o talento de Joan Lang que, na época, não recebeu o reconhecimento que merecia. “A Joan é uma das melhores compositoras que Curitiba já teve. Talvez, poucos soubessem disso na época porque ninguém ou quase ninguém conseguia ouvir o que ela cantava. A voz dela era linda, mas nós, que somos mulheres e cantamos em banda de Rock, em bar com som precário, só conseguimos ser ouvidas quando a gente se esgoela. E a Jô era elegante demais para se esgoelar”, diz.




Lurdinha (esposa de Sérgio Dias), Xanda Lemos, Sérgio Dias e Bruno Zagonel no Curitiba Pop Festival, que aconteceu em 2003 na Ópera de Arame




A convivência com Sérgio Dias, um dos ícones da música brasileira

Em 2001, Xanda estabeleceu uma parceria com a cantora, instrumentista e compositora Naína Carvalho. Juntas, elas começaram a chamar atenção do público e da crítica quando tocavam nos bares curitibano da época, principalmente no extinto Era Só O Que Faltava.

Em 2001, em um desses shows no Era Só, em um projeto chamado “Elas Tocam MPB”, o duo recebeu um convite inesperado que poderia ter mudado a vida artística das duas jovens curitibanas. Tudo aconteceu quando, durante uma noite normal de show, elas receberam a notícia de que alguém muito especial estava assistindo e queria participar da apresentação.

Esse “alguém” era, simplesmente, o multi-instrumentista, cantor e compositor Sérgio Dias, dos Mutantes, um dos maiores gênios da música brasileira. Obviamente, ele foi atendido e se divertiu no palco tocando algumas músicas dos Mutantes com Xanda e Naína.

Depois da apresentação, já no camarim, Sérgio disse que tinha gostado muito do trabalho das curitibanas e perguntou se elas não queriam gravar um álbum produzido por dele.

Em uma entrevista publicada na época pelo portal O Bonde, Sérgio explicou quais foram os motivos que fizeram com que ele se interessasse pelo trabalho da dupla curitibana. “Pela originalidade, pela beleza das composições e pelas letras excelentes. Elas são a representação atual da juventude. São refrescantes. Elas não estão preocupadas em fazer sucesso e para isso seguir um ‘padrãozinho’ imposto. Arte não é padrão”, disse.

Alguns dias depois, Xanda e Naína embarcaram para São Paulo, acreditando que aquela era uma oportunidade única. “Trabalhar com o Sérgio Dias foi surreal. Assim que a gente chegou no apartamento dele, que ficava na Avenida Angélica, se não me engano, ele e a Lurdinha (esposa de Sérgio) receberam nós duas com todo amor. Eles tratavam a gente como se fôssemos filhas. Imagina que coisa louca, você dormir e acordar na casa do ídolo, tomar café da manhã, almoçar e jantar junto, e ainda se enfurnar no estúdio até tarde da noite, vendo ele criar os arranjos para as nossas músicas”, conta.

Naquele lugar quase mítico, a dupla curitibana teve contato com uma realidade musical única. “Na sala de estar do apartamento ficava o piano de cauda que foi da Dona Clarisse (mãe de Sérgio), o mesmo instrumento no qual o Arnaldo Baptista aprendeu a tocar e onde ele compôs as músicas que embalaram tantas gerações. As teclas eram amareladas e esburacadas, sinais que indicavam o quanto aquele piano tinha sido martelado pelos dedos tanto da Clarisse quanto do Arnaldo. Tocar naquele piano e na legendária guitarra de ouro, feita pelo Dias Baptista mais velho, dava a sensação de estar profanando objetos sagrados”, conta.

Entretanto, nem tudo foram flores. Aos poucos, o nível de exigência que Sérgio colocava em cada etapa da gravação logo começou a ser notado pela dupla curitibana e isso gerou alguns atritos. “Lembro de quando eu mostrei o ‘Homem mosca’ para o Sérgio e ele ficou me olhando embasbacado, de boca aberta. Pensei que ele tinha gostado, mas na verdade ele tinha era ficado puto! Segundo ele, a música só era boa porque era plágio de ‘Pra Portugal de navio’ (do álbum “Jardim Elétrico”, lançado em 1971 pelos Mutantes)”, conta.

Xanda não teve outra opção a não ser reformular a estrutura da música. “Ele me apontou uma porta como que dizendo ‘entra’! E me fechou lá dentro e disse que eu só poderia sair depois que a música estivesse mudada. Eu fiquei trancafiada durante horas. Me deu fome, sede, vontade de ir ao banheiro e eu chorei de ódio e de desespero. Pra mim, a ‘Homem mosca’ estava pronta e, realmente, ela lembrava a música dos Mutantes, mas de maneira alguma era um plágio. Pelo menos não era intencional. Depois de longas horas de sufoco, acabei ‘bossanovalizando’ alguns acordes na estrofe e mudei alguma coisa da melodia. Ele achou bom o suficiente e finalmente me deixou sair”, complementa.

Porém, o esforço acabou não sendo suficiente porque, após alguns desentendimentos, o trabalho foi interrompido antes do que era previsto. “Aquela ruptura doeu bastante. Eu lembro que voltei sozinha de ônibus para Curitiba, chorando praticamente durante as seis horas de viagem. Como todo fracasso, foi uma frustração enorme. Nunca mais falei direito com a Naína e nem com o Sérgio depois que decidimos parar a produção. Nossas poucas interações sempre foram superficiais e/ou pouco amigáveis”, diz.

Daquelas sessões de gravação, só uma faixa acabou sendo lançada. “O Sérgio nunca liberou nada além de ‘Outono’, a primeira parceria minha e da Naína, que inclusive tocou bastante nas rádios”, conta.

O peso daquela situação difícil, na qual os sonhos foram rapidamente destruídos, acabaria fazendo a diferença futuramente. “Como toda ruptura, ela trouxe novas oportunidades. Afinal, as Criaturas só começaram a existir por causa daquilo. O Bruno, que era meu namorado na época, tinha acabado de comprar um equipamento novo e me pediu para tocar algumas músicas para ele testar o som e aprender a gravar. Depois, sem eu saber, ele gravou a bateria e pediu para o Caetano gravar o baixo. Quando ele me mostrou a música pronta eu pirei! Assim nasceram as Criaturas”, explica.

Na verdade, Bruno já tinha a intenção de montar um projeto e esse episódio acabou sendo uma oportunidade de colocar essa ideia em prática. “Como eu já tocava no Wasted e tinha o duo com a Naína, eu não achava que precisava ter mais um grupo. De repente, sem o Wasted e depois sem a Naína, eu estava pronta para montar uma banda e tocar as minhas composições. Aquele fim foi apenas um novo começo”, complementa.

Mesmo assim, as fortes lições daquele triste episódio ainda ecoam na mente de Xanda Lemos. “Aprendi que tudo tem seu tempo, que uma coisa é ter talento e outra coisa é ter profissionalismo, enfim…”, diz.




As Criaturas e Waltel Branco no ginásio do Círculo Militar durante o Words Festival, em 2004




Momentos marcantes

Em 18 anos de estrada, as Criaturas tiveram a oportunidade de vivenciar várias situações marcantes. Uma delas aconteceu em 2004, quando a banda se apresentou no Words Festival com o maestro Waltel Branco.

O show foi realizado no ginásio do Círculo Militar e uniu duas gerações da música brasileira. “Foi uma experiência que tivemos depois de receber o convite de Manuel Neto, que era o curador do Words Festival. Na verdade, o show do Waltel era uma atração separada e ele estava escalado para tocar antes da gente. Nós entramos no palco no final do show do Waltel, tocamos uma composição dele e ele tocou uma nossa. Foi uma lição tremenda dividir o palco com o maestro Waltel. Ele trazia toda uma história de grandeza musical, mas ao mesmo tempo, tinha uma profunda humildade”, lembra.

A banda também participou de duas edições do Festival da Canção Cultura e Arte (FUCCA), em Blumenau, Santa Catarina. “Nós fomos premiados em 2002 com a música “O Homem mosca” e, nessa oportunidade, dividimos o palco com o Engenheiros do Hawaii”, conta.

Já em 2003, com apenas um ano de vida, a banda se apresentou no Curitiba Pop Festival, na Ópera de Arame. A grande atração do evento foi o Breeders, banda da então baixista do Pixies, Kim Deal. Além deles, o lineup também reuniu nomes importantes da cena musical brasileira, entre eles, a Nação Zumbi e o trio curitibano Os Catalépticos.

Naquele dia, um problema no som ameaçou estragar a estreia das Criaturas em um grande festival nacional. Entretanto, uma ajuda inesperada acabou salvando o show dos curitibanos. “O som saía no retorno, mas não estava saindo no P.A. Então, eu vi o Sérgio Dias, de quem eu tinha acabado de levar uma bronca no backstage. Ele tinha visto uma matéria na Folha de São Paulo na qual o jornalista dizia que ele era o produtor das Criaturas, o que de fato não era verdade, mas também não era culpa minha. Jornalistas às vezes se confundem… Eu tentei explicar, mas foi em vão porque ele não se convenceu”, conta.

Porém, mesmo sem aceitar a explicação, Sérgio procurou ajudar a banda naquele momento. “Na nossa primeira música, eu vi que ele saiu puto das coxias e foi atrás do técnico para fazer com que as caixas funcionassem. Eu nunca tive a oportunidade de agradecer, mas lembro nitidamente de ver o Sérgio indo para frente do palco e fazer sinal de ‘jóia’ para o técnico, avisando que o som já estava nos trinques”, conta.

Já a estreia das Criaturas, que aconteceu em 2001 no festival Morretestock, que foi realizado em Morretes, no litoral paranaense, também fez com que a banda vivenciasse algumas situações no mínimo inusitadas. “Nunca vou esquecer da gente atravessando uma dessas pontes suspensas, com todos se equilibrando com o amplificador e com as guitarras nas costas. Pouco depois, chegamos no que parecia ser um grande happening hippie e, em frente ao palco, tinha uma fogueira. Quando a gente começou a tocar, a galera fez ciranda, dançando de mãos dadas em volta do fogo. Foi a iniciação de banda mais mística que podia ter existido!”, conta.

Outro momento emocionante aconteceu no ano passado, quando Xanda participou do show de 30 anos da Relespública. Na apresentação, que foi realizada no Jokers Pub, em Curitiba, ela cantou a música “Marcianos”, um dos clássicos da Reles. “Foi uma noite memorável e uma responsabilidade enorme ter sido a única mulher tocando com a Relespública naquele show. Emoção ainda maior foi ver o meu sobrinho, Yan Lemos, que hoje também é um integrante das Criaturas, cantar com eles pela primeira vez”, diz. Yan interpretou a canção “Sol em Estocolmo”.

Aliás, “Marcianos” não foi escolhida por acaso, afinal, a canção tem uma velha e forte conexão com a vocalista das Criaturas. “Eu cantei essa música porque ela tem uma história muito legal. Quando saiu o disco ‘As Histórias São Iguais’ (lançado em 2003 pela Relespública), eu escrevi um texto sobre essa canção e ele foi publicado no extinto site cultural O Bule. Aquela crítica apaixonada foi o que me aproximou da Relespública e do Crivano”, conta.

De certa maneira, “Marcianos” curou as feridas de um desentendimento que já durava um bom tempo e culminou no lançamento deste novo trabalho das Criaturas. “Antes do lançamento do ‘As Histórias São Iguais’, a gente bateu boca por e-mail com o Crivano. A briga foi por causa de uma ficha técnica com informações erradas das Criaturas que saiu no encarte de uma coletânea da Gazeta do Povo, cuja curadoria era responsabilidade de uma produtora com a qual o Crivano estava envolvido. Olha que coisa louca! A história da Relespública está tão intricada com a nossa que, se não fosse pela ‘Marcianos’, aquele texto que eu escrevi jamais teria existido, eu nunca teria feito as pazes com o Crivano e jamais teríamos produzido esse nosso disco. Ou seja, não haveria nem vestígios de ‘Vestígios’ (risos). Vida longa às Criaturas, à Relespública e aos Marcianos!”, finaliza Xanda Lemos.

Assista a dois vídeos gravados ao vivo no show de 30 anos da Relespública, no Jokers. No primeiro, Xanda Lemos canta “Marcianos” e, no segundo, Yan Lemos interpreta “Sol em Estocolmo”.

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