Texto: Marcos Anubis
Revisão e supervisão: Julie Fank
Fotos: Lex Kozlik
Direção de arte: Anderson Maschio
A música e a dança são as mais primitivas formas de arte que o homem incorporou ao seu cotidiano. Essas manifestações surgem da alma, são gotas de uma fonte pura que raramente consegue ser visualizada pela raça humana, cada vez mais impregnada de sombra e névoa.
Mas para oferecer esse maná ao público, é necessário um artista que sirva quase como um médium, sendo o canal para que essa energia pura flua em forma de música. Alguns desses “escolhidos” são ainda mais especiais, pois eles não absorvem essa essência, eles são a própria essência.
É o caso do multi-instrumentista Hermeto Pascoal. O “Bruxo”, como também é conhecido, caminha por um universo desconhecido de nós, seres comuns. Ali ele capta, transmuta e nos oferece sons únicos, vindos de lugares inacessíveis aos pobres mortais.
O tempo está nublado e carrancudo. Perto da casa de Hermeto, no bairro gastronômico de Santa Felicidade, em Curitiba, um cavalo pasta tranquilamente em um campo verde. O tempo, ali, parece ter parado. O som, porém, sempre está por perto do Bruxo. Os pássaros, o vento, e a minha própria pulsação parecem compor uma melodia de boas vindas quando toco o interfone e sou recebido cordialmente por sua esposa, Aline Morena.
Ao visualizar nosso entrevistado, me apresento e sou fitado com olhos desconfiados. “De onde você é? A Revista é daqui?”, pergunta o albino de fala mansa e tranquila. Meu anfitrião estava me testando, mas eu não sabia disso. Após mais alguns questionamentos filosóficos, Hermeto sorri e mostra a sua verdadeira face. “Eu estava brincando, fique à vontade”, diz.
De olho d’água a Curitiba
Hermeto Pascoal nasceu no dia 22 de junho de 1936 na cidade de Olho D’Água e foi criado em Lagoa da Canoa, que na época era município de Arapiraca, no estado de Alagoas. Há 12 anos ele desembarcou em Curitiba, trazido pelos caminhos do cora- ção. Corria o ano da graça de 2002.
Aline Morena, então estudante de canto no Conservatório de MPB de Curitiba, montou um show na capital paranaense chamado “Hermeto em voz para dançar”, onde transformava as canções do Bruxo em outros ritmos, como Xote e Baião. “Os melhores músicos de Curitiba tocavam a música do Hermeto e eu achava que esse som unia as pessoas”, relembra Aline.
Pouco depois, a jovem cantora foi assistir a um workshop de seu ídolo na cidade de Londrina. No dia seguinte, em Maringá, Aline deu uma canja ao lado do Bruxo. Estava feita a conexão afetiva, espiritual e musical que direcionaria a vida do casal nos anos seguintes. Ao adotar a Cidade Sorriso como seu lar permanente, Hermeto recebeu o mesmo aviso dado a tantos não curitibanos que desembarcam por essas plagas. “Quando eu cheguei aqui me disseram que o pessoal era fechado”, conta.
Quando ainda morava no Centro da cidade, o músico conta que cumprimentava as pessoas, no elevador, e elas o olhavam com um ar de espanto. Passados alguns meses, essa situação mudou. Nada mais compreensível. Não é fácil resistir à forma amável com que Hermeto trata as pessoas. Sua fala calma e carregada de paixão hipnotiza seus interlocutores e os convida para seu mundo.
Na visão do Bruxo, essa aura de “fechado” que o curitibano carrega como uma de suas mais marcantes características tem a ver com a influência da forte presença de descendentes de europeus na capital paranaense. “Na Europa, na França ou na Alemanha, por exemplo, você chega a um restaurante, senta, e se estiver falando alto o garçom já te chama a atenção, porque você está fazendo barulho. Se você pegar um instrumento e tocar, na primeira passagem ele já diz que vai chamar a polícia”, analisa.
Mas se na relação pessoal é necessário um período de adaptação para o curitibano “confiar” em alguém, o respeito deles pela música de Hermeto Pascoal sempre foi latente e perceptível. “Eu admiro a musicalidade do povo de Curitiba. Me sinto em casa com o público daqui”, complementa. Esse elo realmente se mostra muito forte porque a conexão do Bruxo com a capital dos paranaenses já existia, mesmo antes da entrada de Aline Morena em sua vida.
A maior prova disso é que, na vasta obra musical de Hermeto, existe uma homenagem à cidade, feita há mais de duas dé- cadas. “Canção no Paiol em Curitiba”, do álbum “Festa dos Deuses (1992), tem um solo belíssimo do saxofonista Carlos Malta e exalta, em som e alma, seu amor por seu novo lar. “Eu sempre digo que Curitiba é uma das minhas namoradas. É uma terra muito especial que eu admiro bastante”, diz Hermeto.
Uma obra imaculada
A realidade criada pela música do Bruxo remonta a lugares bucólicos, quase celestiais. Essa pureza talvez só seja possível porque ele mantém uma postura artística irretocável, fato que não é corriqueiro na carreira da maioria dos artistas do século 20. Boa parte dessas bandas e músicos se perdeu pelo caminho criativo ou foi engolido pela voraz indústria fonográfica e seus “ídolos de momento”.
E a ironia dessa constatação é que essa era um involução prevista. Entre 1960 e 1970, o artista plástico Andy Warhol, ícone da Pop Art, profetizava que no futuro todos teriam os seus quinze minutos de fama. Como uma confirmação catastrófica dessa afirmação, a música atual é cada vez mais refém do comércio, deixando de lado a qualidade do que se produz. Na contramão dessa realidade, Hermeto tomou uma decisão que provavelmente é única entre artistas de seu porte.
Sua obra, composta por mais de 600 canções, está liberada para a gravação, livre de direitos autorais. “Tomei essa decisão em função das gravadoras. Elas não nos pagam, nunca. Então eu achava injusto eu ter as músicas, nunca receber o que deveria e as pessoas ainda terem dificuldades para gravar. Puxa vida, para mim isso foi muito bom, aliviou o meu pensamento”, explica.
A verdade é que a indústria musical do século 21 ainda não se adaptou às novas tecnologias. Não por acaso a venda de CDs está em queda livre, pois as pessoas encontram os álbuns facilmente para download em sites de compartilhamento. O que não mudou é o que talvez seja a maior reclamação dos músicos brasileiros, desde sempre: a falta de pagamento dos direitos autorais.
Essa foi uma das razões para Hermeto permitir que qualquer pessoa possa gravar as suas can- ções. Para isso, basta imprimir a licença no site do músico. Ao lembrar de sua relação com as gravadoras, o desapontamento do Bruxo é tão visível quanto a qualidade de sua obra. “O que eu ganhava era irrisório. Dá até vergonha de dizer que você, de ano em ano, recebia trezentos ou quatrocentos reais”, reclama.
A era dos 15 minutos de fama
Experimente ligar o seu rádio, agora, e sintonizar em qualquer emissora de sua preferência. Você não vai ouvir a obra de Hermeto Pascoal, assim como não vai escutar Chico Buarque, Cartola, João Nogueira ou Noel Rosa. A música, como arte, foi banida das ondas radiofônicas, dando lugar ao lixo cultural do momento, seja ele qual for.
Esse é mais um motivo para figuras como Hermeto Pascoal serem ainda mais valorizadas. São esses paladinos que mantem a pureza conceitual da música tratando-a como ela realmente é: uma forma de expressão artística que não deve vir do bolso, mas do coração e da alma.
É preciso exaltar a perseverança desses seres iluminados que conseguem manter e emanar a sua luz mesmo com todas as trevas que gravadoras ou modas passageiras tentam impor. “Eu me sinto bem porque sempre fiz a música que eu gosto, como eu gosto de fazer. Fico triste pelos outros, mas eu sou muito feliz com as coisas que eu faço. Eu tenho a maior riqueza do mundo, que é o público”, explica Hermeto.
Música Universal
De violão a pandeiro, de chaleira a porta, de assovio a prato, a música de Hermeto Pascoal absorve inúmeras referências rítmicas, harmônicas e espirituais. Seria possível rotular esse som tão abrangente? Uma tentativa foi feita a partir do final da década de 1980, quando surgiu o conceito de World Music. Na época, qualquer artista que misturasse vários estilos em suas canções era tachado com esse rótulo.
Dois de seus maiores expoentes eram o ex-vocalista do Talking Heads, David Byrne, com seu álbum “Rei Momo” (1989), e o cantor, compositor e músico Paul Simon com “The Rhythm Of The Saints” (1990). Alheio a qualquer definição externa, Hermeto Pascoal chama a sua obra de Música Universal. “Eu já pensava assim há trinta, quarenta anos. Eu não falava nada porque queria ver a evolução das coisas”, conta.
Apesar de vir de todo o globo terrestre, e certamente também de outros mundos, as influências do Bruxo são firmemente calcadas nas raízes de seu país. É perceptível que suas andanças lhe ensinaram a valorizar ainda mais a diversidade cultural que o Brasil reúne, com suas várias etnias e imigrantes. “Eu nunca cheguei a um país e achei as pessoas tão diferentes, porque eu tenho o mundo no Brasil”, afirma.
Essa percepção de que tudo está interligado é muito forte na fala de Hermeto Pascoal, e suas ideias a respeito do tema demonstram isso de uma forma muito clara, quase religiosa. “A música é universal como o vento que a gente respira, as estrelas do céu ou as nuvens e as montanhas”, complementa
A Missa dos Escravos
Em 1977 Hermeto lançou um álbum que o afirmaria com um “gênio da raça”, um músico à frente de seu tempo. O trabalho reuniu alguns instrumentistas convidados que foram responsáveis por tornar ainda mais especiais as criações do Bruxo. “Slaves Mass” teve as participações, entre outros músicos, do baixista americano Ron Carter, do trombonista Raul de Souza, da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira.
A participação dessas referências mundiais em seus respectivos instrumentos foi essencial para que o álbum se tornasse um dos clássicos da carreira de Hermeto. “Eu não conhecia o Ron Carter assim, tocando de pertinho. Quando eu dei as cifras para ele tocar… Ele é maravilhoso”, elogia. “Slaves Mass” mostra de forma explícita uma das grandes características de Hermeto: experimentar.
O disco foi gravado nos Estados Unidos e teve, a pedido do Bruxo, a “participação especial” de duas figurinhas delicadas: os porquinhos de estimação que pertenciam a um casal de crianças americanas. “Cada um levou o seu porco, como se fosse um gatinho criado. Quando fomos levar os porquinhos para dentro do estúdio, as crianças começaram a chorar achando que fosse acontecer alguma coisa com os animais. Aí, como não falo inglês, eu pedi para que explicassem a eles que os porquinhos iriam fazer um som”, relembra.
A dupla suína aparece na música “Missa dos Escravos” e um deles faz pose delicadamente acomodado nos braços de Hermeto na contracapa do disco. A discografia desse cidadão do mundo nascido no Brasil contabiliza 36 álbuns, entre participações, parcerias e discos solo.
Todos são frutos de muito talento, criatividade, originalidade e de um ingrediente primordial no trabalho do Bruxo: a confiança. “Os empresários sempre me disseram que o povo não gostava da minha música. Mentirosos!”, diz, convicto. Alheio aos modismos, Hermeto Pascoal segue oferecendo boa música aos ouvidos dos que querem ouvir.
Brasileiros, cidadãos do mundo e seres de outros planos precisam agradecer por ainda existirem almas como essa vagando entre nós. “O músico que se concentra em tocar a música que ele acha que é do país dele, está perdendo tempo. Nenhum país tem a ‘sua’ música. A música é do mundo”, finaliza. Ouça o Bruxo. Ele sempre estará à frente de seu tempo.
Confira dois momentos do Bruxo improvisando em sua casa, ao lado de sua companheira Aline Morena, e ouça ou clássico álbum “Slaves Mass”.
Essa matéria foi escrita originalmente pelo jornalista Marcos Anubis para a Revista One.
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