Texto: Marcos Anubis
Revisão: Julie Fank
Fotos: Lex Kozlik
Direção de arte: Anderson Maschio

(Foto - Lex Kozlik - www.lexkozlik.com.br)

“A arte, em Curitiba, é quase um fator de resistência contra a própria cidade”. A frase provoca uma reflexão e remete a bravos guerreiros lutando contra um inimigo em comum. E a música na capital das Araucárias, desde os seus primórdios, realmente materializa esse cenário bélico.

Um dos soldados desse front é Rodrigo Barros Del Rei, que no cenário musical curitibano também atende pela alcunha de Rodrigão. O músico participa desse embate cultural há mais de três décadas, atuando como vocalista e guitarrista de várias bandas seminais na história da capital paranaense, como a Contrabanda, o Beijo AA Força e o Maxixe Machine.

Rodrigão desembarcou em Curitiba, vindo de Brasília, em 1978. Na capital brasileira, nomes como Renato Russo (Legião Urbana) e Philippe Seabra (Plebe Rude), começavam a dar os primeiros passos para construir o rock dos anos 1980, que transformaria a maneira de se encarar e de se fazer música no Brasil, para o bem e para o mal.

No final de 1981, já estabelecido em Curitiba, Rodrigão formou a Contrabanda. Foi nesse momento que surgiram personagens que o acompanhariam até hoje: os músicos Luiz Ferreira e Walmor Frank Goes, que se tornariam seus parceiros inseparáveis.

Sua trupe punk durou apenas dois anos, o suficiente para seus integrantes impregnarem seus corpos com o DNA do rock, de maneira incurável. Pouco depois nascia o Beijo AA Força, banda que estava destinada a ser uma das referências da música curitibana nas décadas seguintes.

Além do punk rock, o BAAF teve a ousadia de incorporar a MPB às suas canções, uma inovação assombrosa para os padrões da época. Por mais estranho que possa parecer, nos anos 1980 existia um muro praticamente intransponível entre o rock e a Música Popular Brasileira.

Coube ao Beijo AA Força ser um dos responsáveis por implodir esse muro, desbravando o abismo que separava os dois estilos. Na época, o que os menos avisados poderiam entender como um ato de intransigência musical acabou se tornando uma das maiores marcas do grupo curitibano. Eram outros tempos, onde o radicalismo artístico, assim como em outras áreas do desenvolvimento humano, não era tão enraizado como no mundo atual. “Os artistas da primeira geração do punk eram caras tranquilos em relação a isso”, explica.

A carreira do grupo, hoje adormecido, rendeu algumas pérolas. Uma delas é “Homem de Ferro”, que talvez seja a canção que melhor simbolize o Beijo AA Força. Nas mãos da banda, a letra composta pelos poetas Marcos Prado, já falecido, e Sergio Viralobos, ganhou uma base sonora contundente. “Não haverá mais remédios. Os belos serão os bélicos. Elmos no lugar de cérebros. O ferro-velho tomará os cemitérios”, brada Rodrigão.

Qualquer semelhança com o mundo atual, cada vez mais politicamente correto e engessado, não é mera coincidência. “Para nós, o signo do movimento punk era a destruição, o ferro… Ela é um exercício de lógica e poética punk, que foi musicada”, explica. Mesmo reunindo tantos predicados, o BAAF não conseguiu decolar da forma que a sua qualidade sugeria. Por quê? A discussão sobre os motivos que enraízam as bandas curitibanas ao solo da cidade, impedindo que alguma delas alce voos mais altos, é eterna e, aparentemente, sem solução. “É um cenário prolífico, mas ainda semiamador”, analisa Rodrigão. A dura constatação é que, invariavelmente, essas barreiras acabam afastando grandes talentos dessa estrada musical.

Ao longo dos anos, muitos grupos curitibanos se perderam nas areias do tempo, cedendo ao chamado da vida capitalista. “Quantos amigos meus continuaram, dos que começaram lá no início dos anos 1980? Poucos, de contar nos dedos”, lamenta. Esse processo, por mais cruel que pareça, faz as suas vítimas sem piedade. À medida que os caminhos do cenário musical se tornam mais espinhosos, seus abnegados são obrigados a buscar outros atalhos para sobreviver. “O tempo acaba depurando não por qualidade, mas por necessidade”, complementa.

Além de suas encarnações musicais, Rodrigão possui um universo cultural composto por vários elementos. Se em suas bandas as guitarras, distorções, batuques e pandeiros se misturam para formar um som original e contemporâneo, suas outras incursões também exigem uma veia criativa não menos aguçada. Recentemente, o músico participou do projeto Psycho Circus, assinando a produção de dez vídeos de bandas psychobillies curitibanas, entre elas o Sick Sick Sinners e Chernobillies.

Outro ato de resistência contra a estagnação criativa da cidade é o programa Radiocaos, que há 16 anos vocifera contra a mesmice cultural curitibana. A iniciativa, que surgiu em 1998, é capitaneada em parceria com o radialista Samuel Lago, que apresentava o programa 96 In Concert, na rádio 96 Rock. As gravações vão ao ar semanalmente em três rádios e web rádios brasileiras, além de uma em Portugal.

Unindo poesia e música em meio ao caos, como o próprio nome sugere, o programa já abriu espaço para inúmeros autores, entre eles o poeta paranaense Thadeu Wojciechowski. Mas a lista de convidados do Radiocaos nessas quase duas décadas também extrapola os limites do estado, abrangendo figuras que vão do ator Alexandre Nero ao músico Maurício Pereira, do duo Os Mulheres Negras. O mais recente “astro da companhia” é o diretor de teatro Antônio Abujamra que gravou o audiolivro “Presença de Espíritos”, dando vida aos versos eternos de poetas como Rimbaud e Baudelaire.

Alheio ao chamado autofagismo curitibano, lenda (ou realidade) que sustenta que a cidade devora qualquer iniciativa cultural antes que ela possa gerar frutos, Rodrigo Barros Del Rei se arma de talento para encarar a horda de entraves que cercam a arte na capital paranaense. “Antigamente nós tínhamos os Padres, os milicos e os piratas, que eram a iniciativa privada, pois não pertenciam nem à religião e nem ao Estado. O artista é um pirata, um empreendedor”, compara. Essa aura desbravadora é essencial e talvez seja o principal motivo que faz com que Rodrigão se mantenha na linha de frente, até hoje.

Esta matéria foi escrita pelo jornalista Marcos Anubis originalmente para a Revista One. Veja alguns momentos da carreira de Rodrigão com o Beijo AA Força, uma entrevista falando sobre a cena musical curitibana e a galeria de fotos produzida pelo fotógrafo Lex Kozlik.

Rodrigo Barros Del Rei - Rodrigão - Fotos Lex Kozlik - www.lexkozlik.com.br