Texto: Marcos Anubis
Fotos e revisão: Pri Oliveira

nuno mindelis

A 4ª edição do Festival BB Seguros de Blues e Jazz vai reunir, no dia 26 de maio, no Museu Oscar Niemeyer (MON), quatro grandes nomes da música brasileira e mundial. Um deles é o guitarrista angolano/brasileiro Nuno Mindelis. O evento ainda contará com o “bruxo” Hermeto Pascoal, com o guitarrista Pepeu Gomes e com o virtuoso e inovador guitarrista norte-americano Stanley Jordan. Também fazem parte do lineup as bandas BB Seguros Jazz Band, Milk’n Blues e O Bando.

O mais interessante é que o evento é gratuito, fato raríssimo atualmente, quando os grandes shows estão cada vez mais caros e inacessíveis a boa parte dos fãs. Dessa forma, muitas pessoas, que talvez nunca tivessem a oportunidade de ter contato com esses músicos, poderão conferir de perto um universo musical rico e diferente do qual estão acostumados.

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Blues em dialeto angolano

Nuno é reconhecidamente um dos bluesmen mais importantes do país, pois construiu uma carreira consistente e criativa que já dura quase três décadas. Atualmente, ele está trabalhando em um projeto inusitado que envolve músicas cantadas em kimbundu, uma das línguas bantas mais faladas em Angola, sua terra natal. “Quando eu era menino, até os 17 anos, ouvi kimbundu e ovimbundu (esse último de outra região a apenas 600 km de distância) todos os dias, sem exceção. Tenho participado de festivais em Angola, de uns anos para cá, e uma coisa que constatei é que não se fala mais a maioria dessas línguas que partem de um tronco de 12 línguas bantus e podem chegar a mais de 50 dialetos diferentes só em Angola. O próprio kimbundu tem suas variações e derivações”, explica Nuno.

Durante esses shows, Nuno teve contato com uma nova geração, que demonstrou grande interesse nas tradições angolanas. “Ouvi jovens dizendo ‘adoro, queria aprender, minha avó falava’. Para mim, soou inconcebível que essas línguas estejam desaparecendo, especialmente o kimbundu. Talvez porque tenha sentido um choque de realidade inesperado. Desde criança, eu convivi com aquilo, então, foi como se de repente eu constatasse que o português não existe mais, algo assim”, continua.

Diante da urgência do mundo moderno, que acaba sepultando certas tradições culturais, Nuno resolveu tentar fazer a sua parte para manter vivo esse legado. “Por tudo isso, senti necessidade de abordar essa questão. Quem sabe o registro seja ouvido por mais pessoas e possa ajudar a difundir essa língua riquíssima, altamente estruturada e supermusical. Palavras como caçula (kassula), caçoar (kassuada = zombaria), cachaça, cafuné, banguela, bagunça, canjica, bunda (nbunda) moleque (muleke), dendê (ndende), zanzar, cochilo, fiofó e outras centenas, senão milhares, têm origem no bantu/kimbundu”, explica.

Encaixar os vocais em kimbundu dentro da estrutura musical do Blues não foi difícil para quem está tão habituado a esses dois mundos. “O kimbundu é altamente musical, talvez mais até que o inglês. Desliza com beleza e suavidade”, explica. “Como costumo dizer, ‘bluesifiquei’ a parte estritamente musical. Fundi as minhas duas maiores influências, digamos”, complementa.

Nuno transpõe de forma muito natural essas influências para as suas composições. “O Blues, o Jazz, o Samba, tudo veio da África. Então, se você nasce no Texas, é possível que fique só naquela linguagem, mas se ouviu desde cedo o Semba (precursor do Samba), o Samba, o Erudito, o Rock inglês, o Brit Blues, etc. (foi o meu caso), acaba se tornando um caldeirão de influências. Se você ouvir os meus discos, achará em todos eles muito dessa diversidade. É impossível escapar dela”, diz.

No show no BB Seguros, Nuno será acompanhado por Dhieego Andrade (bateria), Allex Bessa (teclados) e Marcos Klis (baixo). Porém, como a música africana é repleta de gingado e “malemolência”, de forma muito parecida com a brasileira, Nuno prepara a inclusão de um novo integrante na tradicional formação de baixo, guitarra, bateria e teclado. “Ainda não posso levar um percussionista para Curitiba, mas pretendo anexar um à banda, no máximo a partir de julho e de forma permanente”, diz.

O repertório do show no MON deve incluir músicas que retratam a carreira do bluesman, com a inclusão de algumas novas canções em kimbundu. “Vai ser homeopático, uma ou duas, porque são mais levinhas. Os palcos serão grandes e, ao ar livre, não dá para ser muito intimista”, revela.

O festival ainda contará com a participação de Hermeto Pascoal, Pepeu Gomes e Stanley Jordan o que, em tese, abre a possibilidade de uma jam session de um ”time dos sonhos” de guitarras. “Seria uma honra, mas não tenho nenhum plano ou ideia de que uma canja venha a acontecer. Normalmente, não peço para fazer, acho que deve partir de quem convida ou quando o festival cria esse momento, digamos”, comenta.

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O novo projeto e o descontentamento como mercado fonográfico

Até hoje, a discografia de Nuno conta com sete álbuns: “Long Distance Blues” (1991), “Texas Bound” (1996), “Blues on the Outside” (1999), “Twelve Hours” (2003), “Outros Nunos” (2005), “Free Blues” (2010) e “Angels & Clowns” (2013).

Atualmente, o guitarrista cogita a possibilidade de lançar seu novo projeto em kimbundu. Pensando nisso, ele tem postado alguns trechos de ensaios dessas canções para sentir a receptividade do público. “Tenho vontade de registrar essa coisa da incursão na música angolana, fazer essa massa sonora nova Blues-Semba. Há limitações, pois não há mais selos e os poucos que existem parecem querer só música puramente brasileira. O crowdfunding é um caminho, mas preciso ter a certeza de que os meus fãs blues-puristas efetivamente bancariam um projeto assim. Sei que existe apoio para um disco de Blues elétrico puro nos moldes que sempre fiz. Precisarei experimentar para ver o que acontece”, diz.

Essa desconfiança em relação ao mundo fonográfico é mais do que justificada. Afinal, no início da carreira de Nuno, a gravadora do guitarrista chegou a relançar o disco “Long Distance Blues” com outro nome, sem o conhecimento e aprovação do músico. “De fato, sete anos depois do lançamento original, eles reeditaram o disco com outra capa, outra sequência, etc., sem me avisar e/ou consultar. Um monte de gente comprou um disco que já tinha. As coisas não melhoraram depois disso, pois descobri por acaso que, há dois ou três anos, publicaram esse mesmo disco (e incluíram músicas dele em várias outras coletâneas) em todas as plataformas de streaming digitais sem me avisar, sem ajustar royalties, etc.”, conta.

Por causa dessas desavenças e da forma desrespeitosa com que a maioria dos artistas são tratados, Nuno acabou se afastando do mercado fonográfico. “Estou por fora. Faz tempo que percebi que é só Axé, Sertanejo, agora ‘Urban’, etc., e os poucos selos que existem são dedicados à MPB, creio que exclusivamente”, diz.

Mercado no exterior

Nuno trabalha bastante fora do Brasil, fazendo shows na Europa e nos Estados Unidos. Entre a maioria dos artistas, tanto os mais conhecidos quanto os do cenário underground, existe quase um consenso de que o tratamento recebido fora do país é muito mais respeitoso.

Dentro de um formato bem mais profissional, as casas de shows ou produtores contratam e oferecem estadia, alimentação, pagam o cachê como foi combinado, ou seja, existe um circuito preparado para receber qualquer banda.

Nuno vivencia esse cenário há muitos anos. “Eu só saio daqui com a certeza de que me arrumarão acomodações, alimentação e cachê. Não tenho problemas com isso, mas entendo que deva haver cano aqui e ali, especialmente quando se trata de bandas jovens em início de carreira, e tal. O circuito é muito maior nos dois casos, logo, é mais fácil acomodar qualquer banda ou gênero que apareça. O mainstream existe em todos os lugares, mas não se relega o resto. Há espaço para todos os gêneros e estruturas profissionais sedimentadas pela longa tradição”, finaliza Nuno Mindelis.

Além dos shows, a programação do Festival BB Seguros ainda conta com atividades para as crianças, das 11h às 16h, como oficina de desenho, colagem e de malabares, pintura artística facial e escultura de balão. A participação é gratuita, por ordem de chegada.

A programação é a seguinte: 11h BB Seguros Jazz Band, 12h Milk’n Blues, 13h10 O Bando, 14h10 Nuno Mindelis, 15h15 Pepeu Gomes, 16h20 Hermeto Pascoal, 17h40 Stanley Jordan e Dudu Lima Trio. O Museu Oscar Niemeyer fica na Rua Marechal Hermes, 999, no Centro Cívico.