Texto e foto: Marcos Anubis
Revisão: Pri Oliveira

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Houve um tempo no Brasil em que a MPB dominava as rádios e as emissoras de TVs do país. Repleta de grandes estrelas, o estilo era admirado e respeitado pelo público e pela mídia. Hoje, alguns desses artistas, inacreditavelmente, são até hostilizados por causa das suas posições pessoais.

Por outro lado, o espaço que a “grande mídia” abre para quem encara a música como arte é cada vez menor. “Hoje, a música é outra, em vários aspectos. A música comercial está corrompida pelo dinheiro. Atualmente, quem faz sucesso, com raríssimas exceções, é alguém que ‘eles’ escolhem. A maioria do pessoal nunca teve chance. Muitos fazem o seu trabalho na internet, às vezes até lotam seus shows, mas não são conhecidos, não chegam às TVs e às rádios”, diz o cantor, compositor e músico mineiro Flávio Venturini.

Nessa segunda-feira (23), Flávio fez um pocket show na Livraria Cultura do Shopping Curitiba. A apresentação, que faz parte do Trajeto Lumen FM, também foi transmitida ao vivo pela rádio curitibana. A emissora, aliás, é uma das poucas do Brasil que ainda se preocupam com a qualidade do que é levado ao ar em sua programação.

Na realidade, a banalização da música brasileira a que Flávio se refere vai além da simples falta de espaço. “Para você entrar em uma rádio, mesmo sendo um artista conhecido, é preciso pagar. Se eu lançar um disco e quiser que toquem uma música nova, eu tenho que pagar e eu não faço isso. Então, quem gosta acaba indo aos shows ou ouvindo pela internet. Eles tocam as minhas músicas antigas, meus sucessos. Mas para tocar uma canção nova, fazer um sucesso novo, é preciso dinheiro. Eu sou de outra geração”, explica.

O show

O palco do Trajeto Lumen foi montado logo na entrada da livraria, que ficou lotada. Nas escadas e no mezanino, as pessoas tentavam arrumar um lugar para ver o show e escutar as músicas de Flávio. Todo esse esforço valeu a pena. Acompanhado apenas por seu teclado, Flávio proporcionou uma noite mágica para os fãs da velha MPB. E

le abriu a apresentação com “Nascente”, do álbum “Clube da Esquina 2” (1978). Durante a apresentação, Flávio contou algumas histórias vividas em seus mais de 40 anos de carreira e foi muito simpático com o público. “Eu gosto de shows assim porque você olha nos olhos das pessoas, interage. Eu me sinto mais à vontade, pois é um show que não tem banda, então, eu toco mais solto”, diz.

Um dos momentos mais marcantes da apresentação foi “Espanhola”. Essa canção, aliás, nasceu de forma completamente inusitada. Em uma madrugada qualquer do ano de 1977, o músico, cantor e compositor Guarabyra, da dupla Sá & Guarabyra, estava voltando para casa depois de passar a noite em um bar na cidade de São Paulo.

Durante a caminhada, como fazia muito frio, ele decidiu passar na casa de Flávio Venturini, que morava ali perto. Apesar de ser “incomodado” na fria madrugada paulista, Flávio acolheu o amigo. Algumas horas depois, Guarabyra foi para a sua casa.

Na manhã seguinte, Flávio telefonou para o amigo dizendo que havia musicado a letra que ele tinha escrito durante a passagem por sua casa. Só que Guarabyra não se lembrava de nada. “Na madrugada? Que letra?”, perguntou. Nascia assim uma das músicas mais bonitas da história da MPB. Ela foi gravada no álbum “Pirão de Peixe com Pimenta” (1977), da dupla Sá & Guarabyra.

Outra canção que emocionou o público foi a belíssima “Clube da Esquina 2”, uma das grandes pérolas da coleção de Flávio. “E basta contar compasso, e basta contar consigo, que a chama não tem pavio. De tudo se faz canção e o coração na curva de um rio”, diz a letra.

O setlist do show ainda contou com grandes clássicos da carreira de Flávio, entre eles “Céu de Santo Amaro”, “Besame”, “Noites de sol” e “Todo azul do mar”. “Mais uma vez” encerrou a apresentação. A pedidos, Flávio voltou ao palco e tocou “Linda juventude”, um dos clássicos do 14 Bis, antes de se retirar definitivamente.

Uma carreira criativa

Desde 2015, Flávio tem excursionado ao lado da dupla Sá & Guarabira e do grupo 14 Bis com a turnê “Encontro Marcado”. Agora, ele retomou os seus shows solo com a tour “Paisagens Sonoras”. No setlist dessas apresentações, Flávio incluiu algumas canções que representam uma de suas paixões: a música instrumental. “Eu sempre ouvi muita música erudita, Rock Progressivo. Eu venho do grupo O Terço, que tinha uma linguagem de Rock Progressivo, então, eu sempre fiz esse trabalho instrumental”, explica.

Apesar de ser um estilo que sempre esteve presente em seu trabalho, esse ainda é um lado pouco conhecido da carreira de Flávio. “Eu nunca fiz um disco instrumental, portanto, as pessoas e eu mesmo fico me cobrando. Eu vou acabar fazendo esse álbum. O objetivo do show ‘Paisagens Sonoras’ é trazer essa linguagem de volta para a banda, até mesmo para eles irem conhecendo e exercitar a execução dessas canções. Essa é uma vertente do meu trabalho que eu acho importante. Não é comercial, é uma coisa mais do prazer pela música, da beleza do instrumental que, às vezes, leva você a outros universos”, complementa.

O álbum deve ser gravado nos Estados Unidos e contará com várias participações de músicos americanos e brasileiros. “Eu não sei quando e nem como ele ficará pronto. Eu sei que já tenho o repertório”, diz.

Ao investir em um estilo segmentado, como a música instrumental, Flávio Venturini demonstra que acredita na continuidade da MPB como forma de arte. “Eu sempre recebo ótimas músicas que as pessoas me mandam. Não dá pra dizer que a música de boa qualidade morreu, ela está aí sim. Eu gostaria que, se essa história da corrupção na música não acabasse, pelo menos que esse cenário fosse mais equilibrado. Que houvesse espaço para os artistas novos. Não digo nem para mim. Eu já tenho o meu público, mas é claro que eu também desejo participar do bolo, quero que as minhas músicas novas se tornem conhecidas. Hoje, eu tenho que trabalhar muito por meio dos shows e pela internet, que também funciona. Ela está se tornando, cada vez mais, um caminho”, analisa.

Esse novo formato, ao que parece, veio para ficar. Cabe aos artistas a necessidade de se adequar o mais rápido possível e procurar soluções. Para isso, a forma mais comum de se produzir música é lançar um trabalho de forma independente, sem o carimbo e as exigências das grandes gravadoras. “Eu fiz meus quatro últimos álbuns de forma independente. Eles saíram pelo meu selo e foram muito bem. O ‘Porque não tínhamos bicicleta’, de 2006, teve cinco músicas em novelas. Agora está ficando mais difícil. O mercado elege um ritmo e aceita ser comprado mesmo (risos)”, opina.

Um dos momentos mais marcantes na carreira de Flávio foi a sua participação no álbum “Clube da Esquina 2”. Ali, ao lado de outros grandes nomes da música mineira, ele viveu uma de suas fases mais criativas. “A minha entrada no Clube da Esquina foi ‘tocar com todos’. Antes mesmo da gravação do ‘Clube da Esquina 2’, embora eu não conhecesse o Milton no ‘Clube da Esquina 1’, eu já conhecia o Beto Guedes. Eu acordava e ele já estava tomando café com a minha mãe e, aí, a gente já fazia um som em uma casa de ensaios de uma banda que eu tinha. O Lô Borges também já tinha me chamado para tocar no ‘disco do tênis’ e eu já tinha gravado um álbum com o Toninho Horta. Isso foi uma escola de música para mim”, relembra.

Sua contribuição para esse time de estrelas teve início com uma das músicas mais emblemáticas daquele álbum. “O Milton tinha me visto no grupo O Terço e me chamou para participar do ‘Clube da Esquina 2’. Eu gravei a ‘Nascente’, que foi a música que lançou o álbum. Naquela época, havia essa coisa de música de trabalho, uma faixa que a gravadora escolhia para tocar. E foi a minha música. Então, sem dúvidas, eu fiz parte do Clube da Esquina, embora eu seja da segunda geração”, diz.

Daquele momento mágico, ficaram as amizades e o reconhecimento. “Foi uma honra estar ali, ao lado deles. Eu excursionei com o Milton como convidado especial no ‘Clube da Esquina 2’ e continuei amigo de todos, participando de trabalhos deles. Com o tempo, cada um foi seguindo o seu caminho, mas ainda continuamos muito amigos”, afirma. “O Milton e todos eles participaram de vários trabalhos meus. Depois, nós montamos o 14 Bis e o Milton produziu o primeiro disco da banda. Nós também gravamos várias músicas dele”, complementa.

Flávio também deixa as portas abertas para novas parcerias com seus velhos amigos. “Eu ainda tenho vontade de fazer muitas coisas com eles, embora cada um tenha a sua agenda. Além da amizade, eu tenho muita admiração por eles como músicos. É uma coisa incrível tocar com um guitarrista como o Toninho Horta, por exemplo. O Beto e o Lô são dois gênios. É muito gostoso ter essa convivência musical com o pessoal do Clube da Esquina”, finaliza.

Aos 67 anos, Flávio Venturini demonstra que a música não precisa ser entregue aos mecenas do mercado fonográfico. Ainda é possível fazer de sua arte a sua maior expressão.