A apresentação na Ligga Arena, que faz parte da turnê de despedida do ex-Pink Floyd, durou mais de duas horas e teve um setlist composto por alguns dos maiores clássicos da história do Rock 

“Se você é um daqueles que diz ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaze para o bar”! A mensagem exibida nos gigantescos telões no palco da Ligga Arena, nesse sábado (4), em Curitiba, já dava o tom do espetáculo que Roger Waters queria direcionar aos verdadeiros fãs.

Afinal, na essência, um fã é alguém que gosta da obra de uma banda ou artista específico e se identifica plenamente com ele.

Desse sensato ponto de vista, deve ser muito estranho para o próprio músico quando ele vê uma pessoa pagar para ir até o local do show única e exclusivamente para vaiar, como aconteceu em 2018, quando  Waters se apresentou no Estádio Couto Pereira (relembre neste link como foi a nossa cobertura).

Felizmente, de maneira muito diferente daquela fatídica ocasião, os fãs que praticamente lotaram o estádio do Athletico Paranaense foram até lá somente para fazer o que deve ser feito nessas ocasiões: aplaudir e apreciar a obra de um dos grandes compositores da história do Rock.




Hello? Is there anybody in there?

De maneira geral, desde os anos 1990, as turnês dos grandes artistas e bandas internacionais vêm se tornando um grande espetáculo visual, com telões e artifícios tecnológicos que encantam os fãs ao redor do mundo.

Desde a tour “The Wall Live”, no início dos anos 1990, Roger Waters tem levado isso ao extremo. Na Ligga Arena, os curitibanos puderam conferir essa característica bem de perto logo que entravam no estádio e se deparavam com o monumental palco da turnê “This Is Not A Drill”.

Diferentemente do show da tour anterior, “Us And Them”, que tinha um único telão gigantesco montado atrás do palco, dessa vez, quatro enormes telões estavam posicionados pouco acima dos músicos. A estrutura era tão alta que chegava até ao teto da Ligga Arena, que é o único estádio coberto do Brasil.

Roger Waters (baixo, vocal, violão e piano), Jonathan Wilson e Dave Kilminster (guitarras e vocais), Jon Carin (teclado, guitarra e vocais), Gus Seyffert (baixo e vocais), Robert Walter (teclado), Shanay Johnson e Amanda Belair (backing vocals), Seamus Blake (saxofone), e Joey Waronker (bateria), abriram o show simplesmente com “Comfortably Numb”, um dos maiores clássicos do Pink Floyd.

Porém, a canção foi tocada na versão que Roger acabou de regravar no álbum “Dark Side of The Moon Redux”, que foi lançado no mês passado. Nesse novo formato, o vocal possui um tom bem mais grave e soturno do que o original do disco lançado pelo Pink Floyd em 1973.

Além disso, o clipe que foi criado especialmente para essa versão também foi exibido nos telões, mostrando imagens de pessoas vagando sem rumo em uma cidade futurista.

Na sequência, após “The happiest days of our lives”, veio “Another brick in the wall, part 2”, uma das músicas mais conhecidas pelo público brasileiro que gosta de Rock e, também, uma das preferidas dos fãs do Pink Floyd.

Aliás, Curitiba é uma cidade repleta de fãs do quarteto que era formado por Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason. “O Pink Floyd é parte importante na vida de muita gente! Quem nunca curtiu um vinil com volume bem alto, deitado no sofá, e viajando com um dos grandes discos deles? Escutar o Roger e o jeito consciente que ele tem de mostrar as agruras do mundo, com uma voz mágica, é demais!”, diz o bancário aposentado Renato Sozzi, que estava assistindo a um show do ídolo pela quarta vez.

Um fato curioso, para quem não mora em Curitiba, é que essa música tem uma ligação muito forte com a própria Ligga Arena, pois ela é cantada pela Torcida Organizada Os Fanáticos, do Athletico Paranaense, proprietário do estádio, em uma versão chamada “Atirei o pau nos coxas”.

A música, que foi criada em 1990, pouco antes da final do Campeonato Paranaense daquele ano (na qual o Athletico foi campeão em uma final contra o Coritiba, no estádio do rival), é uma espécie de segundo hino da torcida do Furacão e tem uma letra na qual foram usados praticamente todos os palavrões existentes na língua portuguesa.

Ou seja, Roger Waters nunca tocou essa canção em um local tão apropriado. “Esse foi o meu quarto show e todos foram únicos e incrivelmente emocionantes. Entretanto, sendo um bom athleticano, esse teve um sabor especial, pois foi a despedida do mestre em um templo sagrado!”, diz Sozzi, que foi presidente da Torcida Organizada Os Fanáticos de 1979 a 1994.

Em “The bravery of being out of range”, Waters nomeou diversos ex-presidentes dos EUA como criminosos de guerra, entre eles, Ronald Reagan, Barack Obama, George Bush e Bill Clinton, mostrando a imagem de cada um deles nos telões e citando os respectivos crimes.

O atual, Joe Biden, também entrou nessa lista, certamente, pela posição dos Estados Unidos em relação ao massacre dos palestinos na Faixa de Gaza, após o atentado sanguinário protagonizado pelo grupo terrorista Hamas.

Em “Have a cigar”, os telões exibiram uma narrativa na qual Roger fala sobre os primórdios do Pink Floyd e a amizade com Syd Barret (integrante fundador do grupo, falecido em 2006).

Em seguida, vieram dois clássicos eternos do Rock: “Wish you were here” e “Shine on you crazy diamond”, que foram cantados por todo o público que estava presente na Ligga Arena.

Nessas três músicas, diversas fotos dos integrantes do Pink Floyd foram exibidas nos telões. Entretanto, para espanto (ou não) dos fãs, nenhuma imagem de David Gilmour foi incluída.

Na verdade, o guitarrista foi sumariamente ignorado por Roger, certamente, por causa das inúmeras desavenças e trocas de farpas entre esses dois gênios da música que, infelizmente, parecem não ter fim, o que é um grande desperdício.

Afinal, inúmeros grandes nomes do Rock, entre eles, Jagger e Richards (Rolling Stones), e Steven Tyler e Joe Perry (Aerosmith), se desentenderam em algum momento da trajetória dessas bandas, mas conseguiram aparar as arestas e voltar a trabalhar juntos.

No embalo desses momentos de lucidez, Roger e David poderiam e deveriam se reconciliar, chamar o baterista Nick Mason, e premiar os fãs com uma última turnê do Pink Floyd. Sendo realista, é pouco provável que isso aconteça, mas não custa sonhar…

Para encerrar essa primeira parte do show, Waters cantou, “Sheep”, faixa do álbum “Animals” (1977). Durante a música, uma enorme ovelha inflável foi conduzida a um passeio pelo gramado da Ligga Arena, em volta do público, levada pela equipe de staff.

No fim, a banda saiu do palco para fazer um intervalo de 15 minutos, dando aos fãs, e aos próprios músicos, uma chance de recuperar o fôlego.




“Ele é louco, não dê ouvidos”!

Após os 15 minutos de intervalo, um grande porco inflável, com os olhos vermelhos, surgiu do lado direito do palco, mostrando a frase “ele é louco, não dê ouvidos”.

Em seguida, a banda tocou a sensacional “In the flesh?”, uma das composições mais emblemáticas de Roger com o Pink Floyd e que abre o lendário álbum “The Wall” (1979).

Nos últimos meses, alguns vídeos dessa música, gravados ao vivo nos shows, ajudaram a causar muita polêmica no Brasil por causa de uma suposta “apologia ao nazismo”. Na verdade, jornalistas e “fãs” que fizeram esse tipo de alegação se mostram completamente fora da realidade porque a intenção de Waters vai claramente na direção contrária dessa afirmação.

Além disso, há 33 anos, Roger já fazia essa encenação na turnê “The Wall Live”, na qual o show mais conhecido foi no dia 21 de julho de 1990 em uma praça na capital alemã chamada Potsdamer Platz.

No concerto, que foi beneficente e organizado para celebrar a reunificação da Alemanha e a queda do Muro de Berlim, Roger já vestia os uniformes que trazem os martelos marchando (e que já estavam presentes em várias cenas do filme “The Wall”, lançado pelo Pink Floyd em 1982).

Na época do show em Berlim, Waters deu uma entrevista para a revista alemã Der Spiegel explicando qual era a intenção daquela performance impactante. “Não é um comício do partido do Reich, tampouco uma convenção de fusão de dois partidos irmãos de Leste e Oeste”, disse.

Aliás, a sede por grandiosidade também já estava presente naquela versão histórica da “The Wall Live”, afinal, o palco tinha nada menos do que 168 metros de largura, 41 metros de profundidade, e foi construído por mais de 600 operários que trabalharam durante mais de um mês para finalizar a  estrutura.

Para abrilhantar ainda mais o show, Roger convidou vários artistas. A banda alemã Scorpions, por exemplo, abriu o concerto tocando “In the flesh?”, e a cantora irlandesa Sinéad O’Connor interpretou “Mother”.

Todo esse projeto impressionante empolgou o público alemão, que comprou mais de 220 mil ingressos antecipadamente. No final, estima-se que 350 mil pessoas assistiram ao show na Potsdamer Platz.

Em relação ao tema “guerra”, a ligação de Waters, e as consequentes críticas aos conflitos armados que continuam surgindo em todo o mundo, é muito mais forte do que os haters podem imaginar, pois ela vem de família.

Afinal, Roger perdeu o avô , George Henry Waters, que morreu em combate durante a Primeira Guerra Mundial, e o próprio pai, o tenente Eric Fletcher Waters, que faleceu em fevereiro de 1944 durante um desembarque dos aliados na praia de Anzio, que fica na região da Sicília, na Itália. Ele tinha apenas 30 anos de idade.

Ou seja, na “era da informação”, a história está aí para ser conhecida e, acima de tudo, compreendida.





Nós e eles

Na sequência do show, veio a belíssima e tocante “Us and them”, que é uma crítica aos “senhores da guerra” que, ainda hoje, como podemos ver diariamente nos conflitos Rússia x Ucrânia e Israel x Hamas, insistem em mandar os comandados para a morte enquanto tomam as decisões que melhor representam os próprios interesses.

Durante a canção, imagens de conflitos armados e de civis sofrendo nos campos de batalha foram mostradas nos telões, causando um impacto emocional forte e diferente em cada pessoa que estava no estádio.

Fazer com que os fãs reflitam sobre questões como a guerra, o capitalismo, e os direitos humanos é uma clara intenção de Roger nessa e em todas as turnês que ele fez até hoje.

Em “Déjà vu”, Waters instigou o público, mais uma vez, pedindo direitos iguais para diversos grupos, entre eles, indígenas, refugiados, trans, e palestinos.

Porém, de maneira bem diferente do show de 2018, não houve vaias ou impropérios dirigidos a ele pelos fãs que dizem “eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger”, como o próprio Waters definiu.

Nessa parte final do show, “Brain damage”, uma grande homenagem a Syd Barret, foi um dos momentos mais marcantes, com os lasers coloridos criando um gigantesco arco-íris em frente ao palco, fazendo referência a capa do álbum “Dark Side of The Moon”.

Depois, Roger se mostrou visivelmente emocionado com o carinho dos curitibanos e agradeceu ao público de maneira efusiva, arriscando até um “obrigado”, em português.




Uma experiência única e uma aula de história e cidadania

“Outside the Wall”, tocada de maneira acústica, lembrando as canções folclóricas irlandesas, encerrou a apresentação. Roger dedicou a música ao irmão dele, John D. Waters, que faleceu no ano passado.

No final, a banda se despediu rapidamente dos fãs e os músicos se retiraram do palco, deixando o público com aquela sensação de que o show poderia continuar, pois ainda existiam muitas canções que poderiam ser tocadas.

É claro que cada um dos fãs que assistiram a apresentação na Ligga Arena poderia dar uma opinião diferente em relação ao setlist do show. Roger não tocou “Time”, por exemplo, um dos grandes clássicos do Pink Floyd e que foi presença constante nas turnês que ele fez nas últimas quatro décadas.

“Welcome to the machine” também foi uma ausência fortemente sentida (as duas canções fizeram parte do setlist do show de 2018, no estádio Couto Pereira). Porém, essas são questões menores em relação a grandiosidade do que foi apresentado ao público.

Se essa é realmente a despedida de Roger Waters, ninguém sabe. Porém, se for, privilegiados foram aqueles que tiveram a oportunidade de assistir a um show desse inglês contestador e que, durante quase seis décadas, brindou o público ao redor do mundo com uma obra repleta de letras inteligentes, melodias tocantes e uma postura crítica que continua incomodando os poderosos, até hoje.

Assista aos vídeos de “Comfortably numb” e “Another brick in the wall, part 2”, gravados ao vivo no show do Roger Waters na Ligga Arena., e veja o nosso álbum de fotos.

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Roger Waters - Ligga Arena - Curitiba - Brazil - 4/11/2023