Os inúmeros exemplos das últimas décadas levantam um debate: até que ponto a influência negativa da indústria fonográfica deve ser deixada de lado pelas bandas e artistas?
Nos últimos anos, a questão da saúde mental se tornou uma grande preocupação para autoridades sanitárias em todo o mundo.
Afinal, em uma sociedade materialista dominada por angústias, incertezas e desigualdades, estar bem consigo mesmo passou a ser uma questão ainda mais fundamental na vida das pessoas.
Porém, apesar de ser uma situação que pode colocar em risco inclusive a vida das pessoas, a saúde mental ainda não é tratada com a seriedade que deveria ser.
Cientes dessa lacuna, muitos profissionais vêm se especializando na área da saúde mental para tentar ajudar essas pessoas que, muitas vezes, nem sabem que precisam de auxílio.
Dentro dessa frente de batalha, um dos destaques é a psicóloga carioca Ana Luiza Novis, que faz parte do grupo de idealizadores do Projeto Humanidades 2020.
A iniciativa inovadora levou o atendimento psicoterápico por meio do Whatsapp a 2,5 mil pessoas que sofreram de maneira mais forte o impacto da pandemia nos últimos dois anos e meio.
Como não poderia deixar de ser, essa experiência foi muito marcante para todos os envolvidos no projeto, pois eles fizeram questão de enfrentar o desafio de maneira direta, posicionando-se no olho do furacão. “A pandemia gerou um grande impacto na saúde mental das pessoas. Houve uma mudança inesperada de rotina e uma sensação muito grande de incerteza. Os casos de ansiedade, depressão e angústia aumentaram muito”, conta Novis.
O resultado dessa iniciativa está descrito no livro “Cuidados Compartilhados na Pandemia” (Hucitec Editora), que foi lançado em Curitiba no início de junho.
A obra, que também teve a participação de Novis, relata justamente as experiências vividas por 64 desses profissionais durante os 4 mil atendimentos realizados durante a pandemia.
A banalização da vida
No dia 4 de setembro, o cantor estadunidense Justin Bieber colocou ainda mais lenha nessa discussão e se tornou o novo “alvo” dos que usam a fragilidade alheia para ganhar views com posts e memes.
Naquela noite, Bieber era a atração principal e fecharia a programação do Palco Mundo, no festival Rock in Rio.
Porém, poucas horas antes da apresentação na Cidade do Rock, surgiram rumores de que o astro pop não faria o show para, justamente, preservar a saúde mental.
Na verdade, essa vem sendo uma grande preocupação do staff de Justin há muitos anos. O fato mais recente tinha acontecido em junho, quando ele cancelou as datas da “Justice World Tour” na América do Norte após ser diagnosticado com síndrome de Ramsay-Hunt. A doença fez com que o rosto de Bieber ficasse parcialmente paralisado.
Acontece que, nos dias 14 e 15 de setembro, após a apresentação no Rock In Rio, Justin também tinha dois shows marcados na cidade de São Paulo.
Porém, dois dias após fechar a quarta noite do RIR, a assessoria do cantor divulgou um comunicado dizendo que os shows na capital paulista não seriam mais realizados.
Na nota, Justin indicava que estava próximo do limite e que seria necessário uma parada para tentar amenizar esses problemas. “No último fim de semana, eu me apresentei no Rock in Rio e dei tudo que eu tenho para o povo brasileiro. Depois de sair do palco, a exaustão tomou conta de mim e percebi que preciso fazer da saúde a minha prioridade agora. Então, por enquanto, vou fazer uma pausa na turnê. Eu vou ficar bem”, dizia o texto.
Como de costume, a imprensa brasileira explorou o caso da pior maneira possível, utilizando o momento difícil pelo qual Bieber está passando para protagonizar um espetáculo de insensibilidade e falta de ética jornalística.
Nessa esteira de abordagem, surgiram até rumores de que ele tinha utilizado playback na apresentação no Rock in Rio. O problema é que, a não ser que você esteja ao lado da mesa de som assistindo a isso acontecer, não é possível afirmar algo tão sério.
Além disso, a saúde mental do cantor não foi levada em conta na hora de avaliar o show, como se o astro fosse um robô destinado a subir no palco e executar movimentos programados sem ser afetado por nada.
Quem acompanha o mundo da música um pouco mais de perto sabe que esse suposto glamour está longe de ser uma coisa verdadeira ou uma regra que atinja todas as bandas e artistas.
Exemplos não faltam
Para os fãs, a vida de um artista ou banda de sucesso parece ser um mar de rosas que envolve somente dinheiro e diversão.
Porém, para a esmagadora maioria dessas grandes estrelas, a realidade costuma ser muito diferente disso.
Na verdade, para se manter em evidência no showbizz, o artista precisa praticamente renunciar a vida “normal”, pois os compromissos principalmente com as turnês ao redor do mundo vêm sempre em primeiro lugar.
Afinal, é preciso ganhar dinheiro para sustentar tudo que envolve esses artistas e, nessa realidade, a chamada “máquina de moer carne” é a única coisa que é levada em consideração.
Esse é um dos apelidos da indústria que utiliza todos os recursos disponíveis para transformar um artista em um sucesso mundial a todo custo e, depois, explora essa mina até o último veio de ouro.
Esses sistema costuma consumir todas as forças dessas estrelas, pois exige dedicação integral ao trabalho.
No mundo da música, existem dezenas de casos que mostram claramente a importância de preservar a saúde mental dos artistas antes que se atinja um ponto sem volta.
No início deste ano, por exemplo, na turnê que o Metallica fez no Brasil, o vocalista e guitarrista James Hetfield mostrou claramente que vem passando por momentos difíceis.
O fato mais marcante aconteceu no show de Belo Horizonte, quando Hetfield usou o microfone para desabafar, dizendo que estava se sentindo inseguro, como se fosse um “cara velho que não pode mais tocar”.
James ainda revelou que os próprios companheiros de banda tomaram a iniciativa de ir até ele e dizer: “se você está lutando no palco, nós vamos te proteger”.
A atitude de ambos os lados teve um efeito que, talvez, Hetfield sequer imaginasse que poderia acontecer. “Várias pessoas que ouviram acabaram se identificando porque se sentem de maneira semelhante. Foi muito importante mostrar que, apesar de ser um músico bem sucedido, ele também é um ser humano que sente e sofre. Foi algo que pode ter ajudado muita gente”, avalia Novis.
Hetfield tem um longo histórico de luta contra as drogas e o álcool e, no início de agosto, ele se separou da esposa, Francesca Tomasi, com a qual estava casado desde 1997 e tem três filhos. Leia neste link a cobertura do show do Metallica em Curitiba.
Outro exemplo claro de desequilíbrio na saúde mental aconteceu no ano passado, quando o vocalista das bandas Faith No More, Mr. Bungle e Dead Cross, Mike Patton, resolveu cancelar os shows que as duas primeiras bandas fariam nos EUA.
O motivo foi, novamenente, a preocupação com o equilíbrio pessoal do artista. “Sinto informar que, por motivos de saúde mental, não posso continuar com as datas atualmente programadas com o Faith No More e Mr. Bungle. Tenho problemas que foram agravados pela pandemia e que estão me desafiando agora”, disse Patton.
Quando o staff fecha os olhos para o problema
Nessa longa lista de exemplos, o caso mais emblemático e pesado foi o da cantora inglesa Amy Winehouse que, nos anos 2000, foi a bola da vez do sensacionalismo da imprensa mundial ao enfrentar problemas seríssimos com drogas e álcool.
O mais revoltante nessa situação é que, mesmo com todos os avisos que a talentosa jovem vinha dando há muitos anos, o staff de Amy insistiu em jogá-la aos leões em turnês por todo o planeta.
Além de tudo isso, existe um agravante surreal: a equipe que cuidava da carreira artística de Amy tinha a participação inclusive do pai dela, o aspirante a cantor Mitchell Winehouse.
O resultado era óbvio, pois ela foi se afundando cada vez mais nos vícios até morrer de overdose alcoólica em 2011.
O peixe fora d’água
Outro caso que ilustra bem a importância da saúde mental é o do baixista do Sex Pistols, Sid Vicious.
A situação do jovem, que era apenas um amigo do vocalista Johnny Rotten e tinha 21 anos quando entrou na banda, se torna ainda mais estranho por um motivo bem simples: Sid não foi colocado no grupo por ser um bom músico (ele não sabia tocar sequer uma nota no baixo).
A entrada aconteceu porque, na visão do empresário/trambiqueiro Malcolm McLaren, Sid tinha um “visual perfeito para a banda”.
Na realidade, Sid era literalmente uma criança ingênua em vários sentidos e não estava preparado para o que viveria a partir dali.
A situação se complicou ainda mais quando ele acabou conhecendo a groupie estadounidense Nancy Spungen, apaixonou-se (sim, os punks também amam) e se afundou definitivamente no vício em heroína.
O relacionamento teve um fim trágico em 1978, quando Sid foi acusado de assassinar Nancy em um quarto de hotel em Nova York (até hoje o caso não tem uma definição). Poucos meses depois, ele morreu em decorrência de uma overdose.
Quase quatro décadas depois, Rotten ainda admite que se arrepende amargamente de ter colocado Sid nesse mundo perigoso para o qual ele não estava preparado.
Something in the way
Outro caso famoso é o do guitarrista e vocalista do Nirvana, Kurt Cobain, que se suicidou em 1994. Na época, a banda de Seattle era um sucesso mundial, mas o jovem músico não estava nem um pouco contente com essa situação.
Afinal, na cabeça de Cobain, o Nirvana era e deveria continuar sendo uma banda underground. Porém, a essa altura do campeonato, a máquina do showbizz já tinha percebido o potencial financeiro do trio como “porta-voz do movimento Grunge” e estava fazendo o máximo para explorar a joia que tinha em mãos.
Ao mesmo tempo, Kurt estava vivendo um relacionamento autodestrutivo com a guitarrista e vocalista do Hole, Courtney Love, em uma situação muito parecida com o que aconteceu com Sid e Nancy.
No fim, em 1994, Cobain acabou tirando a prória vida e deixou um bilhete emblemáico no qual era possível perceber o quanto ele estava atormentado. “Eu sou um bebê errático e triste! Eu não tenho mais a paixão e, por isso, lembre-se, é melhor queimar de vez do que se apagar aos poucos”, afirmou.
Um fio condutor liga todos esses casos: a dificuldade que esses artistas tiveram para assumir o problema e reconhecer que precisavam de ajuda.
Atualmente, essa realidade pouco mudou, o que faz com que não só os artistas, mas também os cidadãos que não estão envolvidos com o mundo da música, ainda tenham uma grande dificudade para aceitar ajuda. “As pessoas acham que é ‘coisa de maluco’. Nós ainda vemos muito preconceito”, diz Novis.
O limite para buscar ajuda
Mas qual é o limite entre a convivência minimamente racional com os sintomas e a necessidade imediata de receber ajuda?
Normalmente, os profissionais costumam alertar que é preciso mudar de atitude quando, apesar das tentativas de enfrentar a situação, os esforços não surtem efeito.
Nesses casos, a doença pode se manifestar por meio de momentos de ansiedade, tristeza ou insatisfação, além dos pensamentos autodepreciativos que não se dissipam.
Outros sintomas que podem indicar um quadro de saúde mental debilitada são a palpitação e a dificuldade para dormir. “Nesse momento, a pessoa deve considerar que a terapia pode ser um caminho que pode ajudá-la a se compreender melhor”, explica Novis.
De maneira geral, além da ajuda profissional, existem algumas atitudes que podem ajudar a melhorar a saúde mental de cada um de nós.
Entre elas, estão as atividades físicas e artísticas, a meditação e a leitura. Porém, acima de tudo, uma regra serve para qualquer caso, seja ele mais grave ou não: sempre respeitar os nossos sentimentos. “Se a gente não se sente bem, pedir ajuda é um ato de autocuidado. Foi isso que o James Hetfield fez. Ele estava mostrando a humanidade dele. Nós vivemos em uma cultura na qual todos precisam estar bem o tempo todo”, explica Novis.
O problema é que, nesses casos, justamente por causa da dor que o problema está provocando, nem sempre a pessoa consegue ter essa clareza. Na verdade, esse medo faz com que a busca por ajuda ainda seja pequena.
Mesmo assim, durante o período mais severo da pandemia, os psicólogos perceberam que esse pensamento quase dominante foi sendo parcialmente desmistificado. “Muitas pessoas entenderam que ir para a psicoterapia é refletir sobre você mesmo, reconhecer toda a potência que a pessoa tem para lidar com a adversidade pela qual ela está passando”, avalia Novis.
Na prática, ter esses momentos com um profissional que amplie essas percepções gera, sem dúvidas, um grande benefício. “Por pior que seja a adversidade, o ser humano sempre encontra uma maneira de lidar coma situação. É isso que nos faz únicos e especiais. Se tem uma coisa que eu aprendi com a pandemia, com todas as dificuldades e desafios que nós passamos, é a imensa capacidade que o ser humano tem de dar conta de situações extremas”, diz Novis.
Levando tudo isso em conta, os exemplos que fazem parte do mundo da música, apesar de serem repletos de dor, são reveladores porque mostram a cada um de nós o quanto é importante buscar ajuda de um profissional. “Quando a pessoa está passando por um problema, ela não deve se deixar de lado. É preciso entender que pedir ajuda não é demérito nenhum. Pelo contrário, é algo genuinamente humano e que faz parte da nossa história”, finaliza Ana Luiza Novis.
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