Texto: Marcos Anubis
Fotos: Arquivo pessoal Gustavo Corsi
Algumas bandas na história do rock nacional mereciam um reconhecimento muito maior, pela obra que possuem. O Picassos Falsos é um desses casos. A banda possui dois dos melhores discos lançados na música brasileira: “Picassos Falsos”, de 1987, e “Supercarioca”, de 1988. Além disso, a influência do grupo no cenário musical tupiniquim permanece até hoje.
O Cwb Live apresenta uma entrevista exclusiva com a banda, recontando a sua história desde a sua formação, no início dos anos 1980, passando pelos discos gravados, pelo fim da banda após o LP “Supercarioca”, culminando com a volta do grupo, em 2001.
O início
O Picassos Falsos foi formado no começo da década de 1980, no Rio de Janeiro. O vocalista Humberto Effe conta como a saga do grupo teve início. “No bairro da Tijuca existia uma garotada ligada, principalmente, ao rock, blues, black music e música brasileira, diga-se Caetano, Gil, Jorge Ben etc. Eu já conhecia o Abílio de outros carnavais. Ele era baterista do Eletroforese, banda que também tinha o Gustavo como guitarrista e o Luiz Romanholli no baixo. Eu era fã deles, principalmente pelos covers”, conta.
Nessa época, o baixista da banda era Caíca, músico ligado ao blues e ao soul. Ele é o autor da marcante linha de baixo da música “Carne e osso”. O baterista Abílio, que já havia tocado com Humberto Effe e conhecia as suas composições, acreditava que o vocalista poderia formar uma grande dupla de compositores com Gustavo Corsi. Essa visão se mostrou uma realidade, rapidamente. “Fui apresentado a eles e começamos a tocar algumas músicas que eu levava no bolso. Acho que essa junção entre nós quatro foi seminal para o que veio se concretizar, depois, no Picassos”, afirma Humberto.
Nesse começo, o grupo era formado por Humberto Effe no vocal, Gustavo Corsi na guitarra, Caíca no baixo e Abílio Rodrigues na bateria, mas se apresentava com outro nome. “Fizemos uma meia dúzia de shows por bares da cidade como O Verso. Em meados de 1986 um amigo nosso virou empresário. Ele e a sua namorada, a hoje apresentadora Lorena Calabria, entre outras pessoas, detestavam o nome e acabamos trocando durante as gravações de uma ‘demo’ produzida pelo cantor e compositor Alvin L”, relembra Gustavo. Na visão de Humberto, o nome também não era adequado. “No início, tivemos um nome muito ruim, O Verso, talvez uma homenagem às minhas letras, sei lá. Tocamos em todos os buracos possíveis”, conta.
As influências, e referências no começo da banda, tinham muito do clima etéreo do rock inglês dos anos 1980 e do pós-punk. “Quando nos juntamos, garotos, queríamos reproduzir o que representava para a gente um ‘novo som’. Os primeiros sons que levamos eram muito influenciados por U2, Echo and the Bunnymen, Legião Urbana, The Cult, The Cure, The Alarm, The Smiths e afins. Não por acaso, nos batizamos de O Verso. Muito cedo, porém, nossas outras influências apareceram”, relembra Gustavo.
Todos esses ingredientes foram misturados no som da banda, com cada músico dando uma “pitada” sonora nesse caldeirão. “O Abílio sempre propunha umas levadas de música brasileira, o Humberto apresentava compositores clássicos do samba, o Caíca era basicamente um músico de rock e blues e eu sempre fui muito influenciado por black music e funk. O que acontecia, mesmo, é todos tínhamos uma bagagem muito diversa e, naturalmente, isso era despejado no caldo”, explica Gustavo.
O primeiro álbum
Aos poucos, a mídia e o público começavam a notar o som do Picassos Falsos. A banda passou a tocar em um pub chamado Robin Hood, no Rio de Janeiro, e a fita demo gravada por Alvin L começou a ser tocada na rádio Fluminense FM, a chamada “maldita”, uma das emissoras brasileiras que mais revelaram artistas, nessa época. “Aliás, fomos a primeira banda a ter três músicas de uma demo tocando na programação principal da Fluminense FM. Ficamos mais conhecidos e fizemos alguns shows em São Paulo também, onde fomos bem recebidos. A gravadora RCA nos contratou, logo depois”, conta Gustavo.
Em 1987 eles lançaram o seu primeiro trabalho, intitulado “Picassos Falsos”, já com um novo baixista, Zé Henrique. O disco de estreia tinha uma abordagem limpa, com guitarras fazendo climas “atmosféricos” para o vocal de Humberto. “O primeiro disco foi um pouco influenciado pelas novas tecnologias do momento, um som mais limpo, talvez, juntando-se, claro, com algumas características do nosso amigo e produtor, o grande Zé Emilio Rondeau. Houve, também, uma completa inexperiência nossa em lidar com a megalomania que era uma gravadora, naqueles tempos. Considero um disco de música brasileira com as tonalidades e pegadas da época, assim como o segundo álbum”, analisa Humberto.
De acordo com o vocalista, o debut da banda teve algumas faixas que foram muito bem trabalhadas. “Ainda acho que, nesse primeiro disco, existem várias músicas melhor realizadas do que no trabalho seguinte. ‘Contrastes’, ‘Carne e Osso’ e ‘Quadrinhos’ são um bom exemplo”, analisa.
O primeiro LP, além de ser brilhante musicalmente, já delineava o estilo próprio que a banda teria. “O som do Picassos já estava ali, inclusive até antes do primeiro disco. ‘Carne e osso’ citava Ismael Silva, ‘Quadrinhos’ era Funkadelic, atípico na época, ‘Bater a porta’ era baião e ‘Contrastes’ afoxé. Em ‘Bonnie e Clyde’ eu ‘chupei’ uma linha de baixo do Chic. ‘Últimos carnavais’ tenta reproduzir uma batucada de escola de samba e ‘Que horas são’ uma de maracatu”, conta Gustavo.
A vida real sempre sempre traz subsídios para uma boa música. “Olhos mudos”, uma das canções mais envolventes do disco, é um exemplo disso. “Tudo isso é porque não te esqueci. Tudo isso é porque nunca mais te vi. Afinal conheci todas as suas crises e manhas. Agora a cada manhã minha cara no espelho me diz pra partir pra outra. Como se tudo fosse pouco pra nada. E sei, seus olhos estavam mudos. Ficaram prendendo nossos sonhos, sem volta”, diz a letra. A inspiração, segundo Humberto, veio de um ex-relacionamento. “Ela foi uma das primeiras músicas que mostrei, bem no início da banda. Eu tinha deixado uma namorada, logo depois nós nos encontramos e vi que ela tinha perdido muito do brilho e estava triste. Fiz a música como se eu estivesse na pele dela. Me senti um canalha por isso, depois da música gravada, mas na época eu acreditava que sabia fazer música e fazia música para tudo que acontecia”, revela.
O guitarrista Gustavo Corsi relembra os bastidores da gravação. “Foi, provavelmente, a faixa mais polêmica de todas as que gravamos. Tínhamos um arranjo bem pesado e típico de bandas pós-punk, com uma melodia leve em cima de uma ‘esporreira’. Acho que chegamos a gravar ela assim”, conta.
Uma levada de baixo cheia de efeitos, delays e echos, marca a música, do começo ao fim, e dá o tom para o seu clima soturno. A importância de um bom produtor musical, com sugestões e sacadas dentro do trabalho de uma banda, é primordial para fazer um disco ser especial. Gustavo revela que a ideia inicial, de gravar a música de uma forma mais pesada, foi totalmente quebrada pela sugestão do produtor. “Nosso primeiro produtor, Zé Emílio Rondeau, sugeriu um piano e o Zé Henrique começou a tocar a melodia de uma forma bem leve, bem de quem está aprendendo. Foi um choque. Ficamos admirados pela beleza da melodia em cima daquele arranjo que era o oposto do que considerávamos como ‘o’ arranjo. A partir daí, tentamos diversas soluções e formas até que entendemos que ela deveria ser feita com uma bateria eletrônica. Programamos uma Linn Drum, a mais sofisticada da época”, conta.
A polêmica, e talvez a faísca que fez a música se revelar especial, ficou por conta da discussão que a banda teve no estúdio. “Não sei exatamente por que, mas saiu um puta quebra pau que acabou fazendo com que eu, o Abílio e o Zé Henrique deixássemos o estúdio por muitas horas. O Humberto, que provocou toda a ‘quizumba’, ficou sozinho gravando as vozes. Quando voltamos, a música estava quase pronta e as partes vocais tão lindas e bem gravadas que nem deu para implicar”, relembra Gustavo.
Logo após o primeiro disco, o baixista Zé Henrique seria substituído por Romanholli, o que acrescentou uma boa dose de swing ao som do Picassos. O músico era fã do grupo e já acompanhava os shows há algum tempo. “Eu tocava em outra banda e via o Abílio, o Gustavo, o Humberto e o Caíca fazendo um som léguas à frente do que eu fazia. Jamais vou esquecer as primeiras vezes em que eu li/escutei as letras do Humberto. Fiquei impressionado”, conta Romanholli.
Confira as músicas “Quadrinhos” e “Carne e osso”, publicadas por Gustavo Corsi, guitarrista do Picassos Falsos, em seu canal no YouTube.
“Supercarioca”, um dos clássicos do rock brasileiro
Com o primeiro disco lançado e tendo o seu nome mais reconhecido no país, o Picassos estava prestes a lançar uma pérola. O segundo trabalho da banda, “Supercarioca”, de 1988, é considerado um dos melhores da história do rock nacional. “Acho que é um disco ao mesmo tempo mais maduro e mais juvenil. Certamente mais ambicioso. Conseguimos doses certas de alguma maturidade que já tínhamos naquele longínquo ano de 88 do século passado com uma ousadia e petulância típicas da juventude”, afirma Romanholli.
O álbum apresentava um som fortemente influenciado pelo samba e pela música brasileira. Riffs pesados, insinuando Hendrix, se misturavam com as bases swingadas feitas pelos violões, dando uma cara única ao disco. “As referências eram completamente diversas. Queríamos um som mais cru, mais parecido com o que estávamos ouvindo na época, que era a música produzida nas décadas de 60 e 70. Isso acabou configurando um som anos 90″, analisa Gustavo.
Essa mistura de influências que, segundo o baixista Romanholli não era nova, ao lado do “tempero” que a banda deu, forjou definitivamente o som do Picassos. “Várias bandas, como os Novos Baianos e A Cor do Som, já tinham feito aquela mistura de rock com ritmos brasileiros. Não chegou a ser uma novidade, portanto. Acho que o que fizemos de diferente foi trazer um pouco mais de soul e funk, além do rock dos anos 80 e sons contemporâneos para a gravação do disco. E as letras, claro, todas de um nível artístico altíssimo”, explica.
Humberto Effe acredita que a musicalidade de todos os membros do Picassos aflorou neste segundo álbum. “Mostramos mais as nossas garras. Algumas coisas que estavam ainda contidas no primeiro, explodiram no ‘Supercarioca’, como a forte influência do samba rock do Jorge Ben, Hendrix, Tim Maia, Novos Baianos, o samba tradicional, Rolling Stones, Doors e por aí vai”, conta.
O isolamento da banda em uma cidade de Minas Gerais ajudou na criação desse clássico do rock brasileiro. O convívio diário entre os músicos e a possibilidade de trabalhar melhor as músicas, revelaram um grupo ainda mais coeso e criativo do que no primeiro álbum. “O ‘Supercarioca’ teve um processo de criação muito bacana. No carnaval de 1988, nós viajamos para uma fazenda em Baependi, Minas Gerais, para terminar as músicas que tínhamos esboçadas e criar outras. Foi muito bom. Esse processo criativo se reflete no resultado final de forma clara. O disco segue um roteiro quase cinematográfico, a partir de um conceito genial do Humberto”, relembra Romanholli.
O vocalista concorda e ressalta que a entrada do novo baixista reforçou a química que já existia. “O‘ Supercarioca’ já tem um conceito de disco, já pensamos melhor sobre esse formato pra não fazer só uma sequência de músicas em um vinil. Sonoramente, o álbum foi feito de forma mais interessante. A banda estava mais ‘banda’ e acho que a entrada do Luiz Romanholli foi fundamental para isso porque ele já tocava com o Abílio e o Gustavo há muitos anos”, analisa.
As influências e a experiência que o grupo tinha adquirido, no palco e no estúdio, fizeram com que o segundo disco demonstrasse, de uma forma mais direta, os vários gostos musicais da banda, como explica o baixista Romanholli. “Nós quatro escutávamos de tudo, desde pequenos. Não tenho dúvidas de que isso é consequência do fato de termos crescido em uma época muito rica para a música brasileira, os anos 1970, e em que as rádios ‘de sucesso’ eram mais ecléticas. Escutávamos Chic e Milton Nascimento na mesma emissora”, conta.
Uma das músicas mais marcantes do álbum é a trágica “Marlene”. Humberto Effe relembra como a música surgiu. “Ela começou a ser feita em um ensaio. A gente às vezes improvisava sobre uma ideia, um riff de guitarra, uma batida de bateria ou uma linha de baixo e ficávamos um bom tempo na mesma levada. Eu procurava improvisar uma melodia sobre aquilo. Depois, em casa com o violão, eu dava um formato de canção para aquela ideia, mas o arranjo e todas as nuances da música já haviam surgido no ensaio”, explica.
O trabalho de cada músico é saber encaixar a sua parte instrumental no todo da música, sem “atrapalhar” a sua harmonia. Romanholli explica como a linha de baixo foi composta. “Eu percebia a canção como um samba soturno e procurei encaixar o baixo nesse clima. A inspiração para a linha principal de baixo foi a música ‘Slave’, dos Rolling Stones. É uma faixa do disco ‘Tattoo You’, que eu escutava muito na época. ‘Slave’ e ‘Marlene’ têm a mesma onda. Acho uma das grandes interpretações do Humberto”, explica.
Uma das peculiaridades que distinguem os bons músicos da mesmice é a capacidade de soar diferente, de forma destacada, em cima de uma melodia. Gustavo Corsi conseguia isso sem esforço. “O que eu lembro é que eu queria soar o mais pesado e torto possível em cima daquele samba lento e meio blues. Lembro de muitos detalhes da gravação de guitarra. As camadas que eu fui gravando, alguns momentos em que sugeri que a guitarra fosse mutada para fazer contraste com as partes em que ela aparece…”, conta Gustavo.
Gravações são sempre cheias de detalhes e curiosidades. Muitas vezes o que é planejado sai de forma totalmente diferente no estúdio e, em algumas ocasiões, passa a fazer parte da música. “Tem um momento em que eu errei um trecho e, para chamar a atenção do produtor e dos técnicos, eu fiz um ruído na guitarra. Nos acostumamos com ele e esse ruído permaneceu na mixagem. Está lá em 1:56, logo depois de ‘Eu posso estar delirando’. É, inclusive, alto pacas”, revela Gustavo.
O texto da música, com em todas da banda, é muito bem construído. “Tanto risco, tantas coisas ouvia no meio da noite. Como um gato ninguém vê. Só você quando passa, quando passa. O que você sempre dizia não dá mais pra se dizer. O que você sempre dizia quase ninguém escutava. Agora coisas estão chegando pela sua contramão. O que você sempre dizia quase ninguém escutava”, diz a letra.
Humberto explica qual foi a ideia que ele quis passar. “A letra é bem vaga e misteriosa. Considero uma continuação meio soturna de ‘Bolero’, um pouco Nelson Cavaquinho. As músicas iniciais do ‘Supercarioca’ são todas subjetivas. Um personagem sozinho, ainda sem saber para que lado vai, tudo ainda está se formando… ‘Marlene’ está nesse contexto. O nome não tem nada a ver com ninguém. Às vezes batizo uma música como quem dá nome a um cachorro”, conta.
“Sangue” é, talvez, a música mais “violenta” do Picassos Falsos. Com uma introdução fantástica de bateria, seguida de um dos melhores riffs tocados por Gustavo Corsi, a canção é uma espécie de “ode apocalíptica”. “Estarei presente no final dos dias, estarei presente, estarei. Cantando, quem sabe, novas melodias que dos seus lábios ressuscitarei”, diz a letra.
O guitarrista relembra como a música surgiu. “O riff principal é do Zé Henrique tanto que, mesmo já não sendo da banda na época da gravação, ele levou o crédito de autor. É muito interessante como aquelas partes tão diferentes se encaixam. As passagens são tão radicais, que parecem editadas na mixagem. É um dos melhores sons de bateria que o Abílio já tirou e uma de suas melhores performances. Ele sempre usou muito bem os tambores”, afirma Gustavo.
Romanholli explica a sua visão sobre a música. “É uma carnificina de guitarra com o Abílio arrebentando na bateria. A frase de bateria que introduz a música, para mim, é um clássico. Eu tentei não atrapalhar e misturei funk/disco e The Who. A linha de baixo funky das partes sem voz é a minha favorita de todas as que eu fiz no Picassos. No fim tem um micro, ‘ou seria mico’, solo de baixo à la John Entwistle. Tocar ‘Sangue’ e ‘Marlene’ ao vivo eram sempre experiências incríveis”, afirma.
Humbero Effe explica o contexto da letra de “Sangue”. “Acho que é a nossa ‘Helter Skelter’. Sobre a letra e a melodia, é o nascimento de um personagem, de uma personalidade cheia de simbologia carioca, um ‘parangolé tijucano’. Pensei também em escrever algo que falasse da banda, da sua relação com o que era atual e o que era dito como tradição e passado. ‘Estarei presente no final dos dias, cantando quem sabe novas melodias que dos seus lábios ressuscitarei’, poderia ser um release do ‘Supercarioca’. A melodia bem imperativa, em tom de discurso, realça tudo o que há de tom carnavalesco e caótico na letra. A levada funk/samba do meio da música é muito Picassos Falsos”, explica.
Confira as músicas “Sangue” e “Bolero”, do disco “Supercarioca”, postadas pelo guitarrista Gustavo Corsi em seu canal no YouTube.
O fim da banda
Inexplicavelmente, após “Supercarioca”, o Picassos Falsos encontrou muitas dificuldades para lançar o seu terceiro álbum. “Um ano, mais ou menos, depois de lançar o disco, fomos dispensados pela nossa gravadora, a BMG/Ariola, antiga RCA. O primeiro LP teve duas músicas bem executadas. Com o reconhecimento que o ‘Supercarioca’ teve na época do seu lançamento, criou-se uma expectativa sobre o seu ‘sucesso’ comercial, que acabou não acontecendo. Só soubemos que a canção ‘O homem que não vendeu sua alma’ tinha uma execução considerável em Belo Horizonte, por exemplo, quando chegamos lá para um show. No Rio não tocou nada”, explica Gustavo.
De acordo com o vocalista, o processo de gravação do segundo álbum foi cercado de discussões com a gravadora. “Os diretores não queriam o disco da forma que foi feito e com o produtor que escolhemos, o Geraldo D’Arbilly, mas na base de muita conversa fomos conseguindo realizar a gravação. O certo é que a gravadora queria um LP que tivesse outra ‘Carne e osso’ ou outra ‘Quadrinhos’. Tinham os seus motivos”, explica.
A falta de visão da RCA foi inacreditável. Cegos ao fato de que estavam diante de uma pérola do rock nacional, ela se recusou a promover o disco. “Quando o ‘Supercarioca’ estava pronto, na hora de partir para a estrada, após alguns meses de seu lançamento, nos comunicaram que nada iriam fazer sobre o disco, nenhuma publicidade e nada em rádio. Sugeriram que gravássemos outro pois aquele havia morrido para a gravadora”, conta Humberto.
As dificuldades de inserir a sua música, original e com qualidade, em um mercado cada vez mais comercial, foi decisiva para o fim do grupo, segundo Humberto. “Para mim, particularmente, foi um baque. Deu uma desanimada. A própria banda começou, internamente, a duvidar se era aquele mesmo o caminho que deveríamos trilhar no nosso trabalho. Normal, todo grupo em um momento difícil tem as suas divisões. Poderíamos ter continuado, mas paramos. Eu mesmo pedi um tempo para ver o que era melhor fazer. Esse tempo acabou sendo um pouco longo e cada um seguiu seu caminho”, relembra.
Esse foi um dos primeiros exemplos do poder da indústria fonográfica brasileira que, usando o seu lado “gatekeeper”, fez uma leitura, de forma comercial, decidindo o que as pessoas gostariam de consumir, naquele momento. “Gatekeeper” é um personagem da teoria jornalística que decide o que as pessoas vão ouvir, quais serão as notícias que irão ao ar enfim, o selecionador de conteúdo. “Costumo dizer que surfamos a última onda do que ficou conhecido como ‘rock Brasil’. Na nossa época os sertanejos e o ‘pagode paulista’começaram a aparecer e dominar o mercado. Não procuramos outra gravadora e não fomos procurados”, relembra Gustavo.
A volta do Picassos Falsos
Após essa parada, cada um seguiu o seu caminho. Gustavo, por exemplo, gravou com vários artistas, entre eles Marina Lima, Dulce Quental e Leoni. Humberto lançou um disco solo, em 1995, chamado“Humberto Effe”.
Em 2001 o grupo retomou às suas atividades, para alegria dos velhos fãs e da boa música nacional. O terceiro álbum de estúdio, chamado “Novo mundo”, foi lançado em 2004. Gustavo revela que a química entre os músicos ainda existia e que isso foi essencial para essa volta.“Voltamos porque adoramos tocar juntos. Eu adoro o CD. Acho que ele representa muito bem a trajetória da banda”, afirma. “Gosto muito deste disco. Infelizmente foi muito mal trabalhado e muito mal distribuído”, lamenta Humberto.
Segundo o vocalista, grandes nomes da música brasileira estavam voltando à ativa e as pessoas sempre perguntavam sobre uma possível reunião do Picassos. “No final dos anos 90, houve um certo revival dos 80. Estávamos sempre sendo questionados do porque não fazíamos um show, pelo menos, ou porque a banda não voltava, e isso começou a nos influenciar”, explica Humberto.
A volta, na visão do grupo, não teria sentido se fosse somente para tocar as músicas antigas. A intenção era compor e lançar um material novo, dando continuidade ao ciclo que foi quebrado após“Supercarioca”, em 1988. “Não queríamos ficar presos ao que havia sido feito, então pensamos que a volta só valeria a pena com um novo trabalho, com personalidade própria, e que desse um passo além do que já tinha sido lançado”, define Humberto.
A repercussão entre a mídia e com os fãs foi animadora. Ter de volta uma banda que, com apenas 2 discos, tinha uma carreira tão consistente, criou uma grande expectativa entre o público e os críticos. “Sempre fomos super respeitados pela imprensa. Acho impressionante isso, nem sei se merecemos tanto. Fizemos alguns shows e o disco foi bem recebido pela imprensa”, explica Humberto.
O grupo tocou no TIM Festival, em 2004, ao lado de grandes nomes da música underground, como o PJ Harvey e o Primal Scream de Bobby Gillespie, ex-baterista do Jesus and Mary Chain. “Fizemos um show desastroso no TIM Festival. Desastroso não pelo show em si, mas pela completa falta de planejamento em como nos colocar em um festival desse porte”, explica Humberto.
Além do disco novo, a banda criou o projeto “Hipercariocas”, que era uma celebração da canção do Rio de Janeiro. Nele, o Picassos tocava músicas de compositores como Paulo da Portela, João Donato, Chico Buarque e João Nogueira.
Apesar de toda a expectativa em torno da esperada volta da banda, mais uma vez, o destino conspirou contra o grupo. As mudanças que o mundo estava sofrendo com a influência, cada vez maior, da internet, foram determinantes nessa nova parada. “O mercado não estava muito aquecido, o golpe nas multinacionais tinha sido forte. As pessoas não estavam entendendo, como entendem hoje, a alternativa que a internet oferecia. Enfim, nós nos encontramos mais uma vez sem uma estrutura empresarial que nos suportasse. A Psicotrônica, gravadora que o nosso produtor Beni Borja havia montado naquela época, ainda tentou cuidar da parte empresarial, vendendo shows, mas não foi muito à frente”, explica Gustavo.
Novamente, o Picassos teve de lidar com a frustração de um novo hiato em sua carreira. “Exatamente como em 1989, depois da expectativa do lançamento de mais um disco que nos consumiu quase dois anos de trabalho duro, depois de boa aceitação , os shows escasseavam. Cada um de nós estava envolvido com os seus outros projetos, musicais ou não. Fomos, gradualmente, nos afastando do projeto da banda. Humberto ainda fez alguns shows dele e, em dado momento, nos juntamos e eu o ajudei a conceber um show em duo, que também rendeu muito, artisticamente falando, mas a banda hibernou”, relembra Gustavo.
Apesar de terem de enfrentar esses contratempos, eles tinham a certeza de que essa “tempestade” passaria. “Diferente da primeira vez, nesse momento nós não oficializamos o fim do Picassos. Sabíamos que era questão de tempo uma nova reunião”, lembra Gustavo.
A influência da banda na música brasileira
O legado musical do Picassos Falsos é uma referência forte para boa parte das bandas brasileiras, até hoje. A originalidade e criatividade que o grupo sempre mostrou em seus discos ainda serve como base para quem transita pelo rock nacional, atualmente. “Sempre soubemos, ou suspeitamos, que havia um bom trabalho ali. Quando eu comecei a viajar, alguns anos depois, tocando com vários artistas, tive a impressão, em alguns lugares, de que a banda era querida e tinha alguma influência sobre o trabalho de um ou outro artista mais jovem”, explica Gustavo.
A Nação Zumbi, o nome mais importante da chamada “mangue beat” surgida em Recife nos anos 1990, incorporou certos elementos da música do Picassos Falsos na sua música. “Em 1994, quando eu estava gravando o primeiro trabalho solo do Toni Platão, (ex-vocalista do Hojerizah), no estúdio ‘Nas nuvens’, eu estive com o Chico Science e o Lucio Maia na gravação do primeiro disco deles. Eles ficaram muito surpresos e confessaram que eram fãs do Picassos. Em 1998 eu passei alguns dias em Recife e conheci os meninos do Devotos do ódio, do tal Alto José do Pinho, e lá eu vi que éramos adorados e representávamos um certa referência para algumas bandas”, relembra Gustavo.
Hoje o rock nacional está mais aberto à influências, dos mais variados estilos. Nos anos 1980 e 1990, existia uma certa divisão entre os gêneros rock e MPB. Humberto Effe acredita que essa separação entre estilos está, finalmente, ficando para trás. “O rock nacional está inserido em uma situação fantástica e extremamente rica chamada música brasileira. A música no Brasil vive, hoje, um dos seus melhores momentos. É gente nova fazendo samba, rock, pop, funk, blues, etc. Finalmente acabaram com aquela idiotice de separar o que era passado e o que era novo, em nossa música. Ficou tudo a mesma coisa, não existe tradição nem modernidade, existe a música brasileira”, explica.
Confira as músicas “Presidente Vargas” e “Rua do desequilíbrio”, postadas pelo guitarrista Gustavo Corsi em seu canal no YouTube.
Os novos tempos
O cenário brasileiro mudou muito em relação aos anos 1980, 1990. Hoje, a internet é uma ferramenta poderosíssima para a divulgação de novas bandas por meio do Myspace, Youtube, Facebook, Twitter e outros canais. “O CD, já há alguns anos, principalmente para os novos artistas, é apenas um cartão de visita. Sua força como mídia de mercado acabou. A internet foi, e é, muito importante para música. Democratizou o acesso e a divulgação, ajudou a tirar o poder das grandes gravadoras, que monopolizavam o mercado e faziam uma grande farra com o nosso dinheiro enfim, tudo bem, todos concordam com isso. Mas o chato é que hoje o cara manda dez e-mails antes de pegar no telefone e falar com alguém”, comenta Humberto Effe. Essa dependência que o ser humano desenvolveu acaba quebrando uma relação mais direta entre as pessoas, segundo o vocalista.”Está tudo muito web. Acho que a internet tem que ser repensada na nossa vida. Assim como ainda é um grande problema para quem vive de direitos autorais”, critica.
Para o guitarrista Gustavo Corsi, a rede mundial de computadores ainda não possui uma forma definida. “Eu sou fã da internet e de todas as transformações que ela não para de trazer. Hoje consome-se música de uma forma diferente. Faz-se música de uma forma diferente e não consigo ter um julgamento preciso. Não acho melhor nem pior do que foi quando eu era moleque. Vejo um número enorme de vantagens e desvantagens na quebra da indústria da música. Estou sempre esperando o que vai acontecer depois de amanhã”, comenta.
O mito
Tudo que vira excessivamente “popular” acaba saturando os ouvidos do público. O Picassos Falsos sempre foi um banda “cult” pois só os que buscavam a música fora da grande mídia, que pesquisavam em “sebos”, que ouviam rádios que fugiam do padrão “paradas de sucesso”, como a lendária Estação Primeira, 90.1 FM, em Curitiba, conheciam o grupo. Ironicamente, esse distanciamento do mainstream alimentou, ainda mais, a reputação da banda como uma das melhores do rock nacional. “O fato de não sermos muito conhecidos do grande público favorece este culto de quem é mais interessado em música e coisas mais ‘alternativas’, ‘autênticas’, e uma série enorme de sinônimos. Mantivemos, até por que não fizemos sucesso, um certo prestígio. Entre meus colegas, no meio musical, há bastante respeito até hoje”, explica Gustavo.
Alguns fatos, na história da banda, se tornaram históricos para os músicos, como a gravação da música “Bam ba la lão”. Em 1986, após gravar um fita demo que não satisfez a banda, eles resolveram entrar novamente em estúdio, desta vez no Casablanca do baterista Charles Chalegre. Alvin L, que era amigo do grupo, se ofereceu para fazer a produção. As músicas escolhidas foram “Quadrinhos” e “Idade Média”. O que aconteceria, a partir daí, fica no hall daquelas “coincidências”, ou não, que acontecem na vida das grandes bandas. “Gravamos as duas canções, estávamos satisfeitos e, em cima da hora para acabar a sessão, o Alvin, que havia assistido um ensaio dias antes, pediu: ‘Toca aquele que fala alguma coisa de bam ba la lão, meu coração, sei lá. Uma lenta e meio etérea que eu ouvi no ensaio’. Nós identificamos que era ‘Carne e osso’, uma das nossas primeiras composições coletivas e, quando começamos a tocar, ele sentenciou: Grava!”, relembra Gustavo.
A música foi gravada quase de primeira, coisa rara em um estúdio pois, cada instrumento, cada passagem é feita separadamente, sempre corrigindo os erros até ficar o mais próximo possível da perfeição. “Fizemos em um ou dois takes. O próprio Alvin sugeriu e dobrou, com o Humberto, um corinho no final que ficava repetindo ‘o meu coração, o meu coração’ e assim ficou”, conta Gustavo. Poucos dias depois de finalizada, a banda levou a fita demo para a rádio Fluminense FM, em Niterói. “Entregamos a fita lá e pegamos a barca de volta para o Rio. Quando chegamos em casa, na Tijuca, cerca de duas horas depois, já havia uma ligação da rádio. Queriam gravar um programa com a gente no dia seguinte”, diz Gustavo. A Fluminense apresentava essas fitas demo em um programa especial e, só depois de passarem por essa “aprovação”, elas entravam na programação diária. “Nós fomos a primeira banda na história da rádio que teve uma demo entrando direto na programação oficial com três canções. Foi muito bacana”, lembra Gustavo.
Um ano e meio depois, já com o seu primeiro disco lançado, “Carne e osso” era escolhida como a canção de trabalho pela gravadora RCA, para espanto de todos na banda. “Sempre achei muito interessante o fato de que eu, todos nós, na verdade, achávamos aquela canção muito torta, muito erradinha, sem uma harmonia formal, sem guitarra base, muito ruído. Ela tinha um formato que eu achava muito transgressor e, por iniciativa do Alvin, parou na demo aos 47 do segundo tempo, fez um relativo sucesso na Fluminense FM e acabou sendo música de trabalho”, relembra Gustavo.
A canção talvez tenha sido a mais conhecida do Picassos Falsos. “Tocou no país inteiro. Sempre achei uma loucura. Alguns anos antes, na faculdade, quando sabiam que eu era guitarrista e pediam para ouvir alguma coisa, eu botava ‘Carne e osso’ logo de primeira e me divertia vendo a cara contrariada das pessoas. Olha no que deu”, brinca Gustavo.
A notícia que todos esperavam: O retorno do Picassos Falsos
Já no fechamento desta matéria, o guitarrista Gustavo Corsi deu a notícia que todos queriam ouvir, com absoluta exclusividade para o Cwb Live. A banda está ensaiando um novo retorno, em breve. “Já voltamos a tocar juntos. Estamos reunindo fragmentos e ideias de repertório e colocamos na cabeça que, mais cedo ou mais tarde, não há como prever, o Picassos lançará um novo trabalho que, hoje em dia, não dá nem para afirmar que será um disco. Podem ser alguns registros, um EP, um single enfim, não temos nada formatado a não ser a ideia de que a banda vai ‘acordar’ de novo”, revela.
O trabalho, no momento, é reunir tudo que foi feito nesses quase 30 anos de banda e planejar, com calma e segurança, essa nova volta. “Estamos fazendo, já há algum tempo, um levantamento de um enorme material que temos registrado. Uma infinidade de gravações de shows, de demos, de jams, ensaios, algumas muito raras. Acho pouco provável que exista interesse neste material mas, quem sabe. Pode ser que um ou outro, dos quase vinte e um fãs que temos espalhados pelo Brasil, queira ouvir isso. Já há algumas possibilidades de shows por aí. Estamos indo com muita calma. Vamos ver o que acontece. 2013 é um ano importante para nós. O ‘Supercarioca’ fará 25 anos. Adoraríamos celebrar isso ao vivo”, conta Gustavo. “A banda foi sempre muito bem recebida, seja no Rio ou em outros estados. Ouvindo o que se faz hoje, acho que ainda temos um lugar para ocupar, vamos ver”, diz Humberto. O Picassos Falsos é um gigante adormecido que possui um lugar cativo, tranquilamente, em qualquer cenário musical que o Brasil apresente.
No último mês de agosto o jornalista Marcos Anubis, do Cwb Live, viajou para São Paulo e conferiu de perto um show do Picassos Falsos no Sesc Belenzinho. A matéria ainda traz uma entrevista exclusiva, em vídeo, com a banda que prepara novidades para 2014. Leia neste link.
Após ler uma crítica bastante favorável, comprei o LP Picassos Falsos em 1987 e achei o trabalho tão bom que adquiri o Supercarioca tão logo foi lançado. Acho Humberto Effe um excelente cantor e compositor, sem falar da parte musical que é ótima. Hoje busco novidades da banda através da web. Abraço.