Texto: Marcos Anubis
Fotos: Angelita Muxfeldt, arquivos pessoais Paulo Juk, Angela Rodrigues e Suka Rodrigues
O eterno vocalista do Blindagem deixou um legado gigantesco de música, poesia e amizades
Voz disfarçada de gente. Poucas vezes um apelido refletiu tão bem a alma de uma pessoa. Ivo Rodrigues, o inquieto e criativo gênio da música paranaense, falecido em 2010, se tornou conhecido pelo seu trabalho à frente das bandas Blindagem e A Chave.
Dono de um carisma inigualável, além do talento musical, Ivo tinha um lado humano sensível e bem humorado. Sua presença, em qualquer ambiente, trazia risos e boas conversas. São muitas as histórias engraçadas e curiosas que os amigos guardaram da convivência com o cantor.
A sua relação com a família sempre foi marcada pelo carinho. Sua filha, a DJ Angela Rodrigues, hoje com 32 anos, revela que o pai era cuidadoso e protetor. “Ele me levava e ia me buscar na escola até os 16 anos. Na adolescência, naquela fase em que não queríamos que ele fosse ao colégio, ele nos deixava na esquina e ficava olhando nós caminharmos até a entrada. Quando estávamos bem na porta, na frente dos amigos, ele passava buzinando e gritando ‘te amo princesa’. Isso com aquele vozeirão. Aí sim ele ia embora”, relembra.
Uma de suas grandes paixões era o cinema. Ele passava muito tempo com a sua família, em casa, assistindo TV e vendo filmes clássicos. Outra era a gastronomia. “Nos finais de semana, quando não estava tocando, seu programa preferido era almoçar em Santa Felicidade, isso desde que os filhos eram bem pequenos”, revela Suka Rodrigues, esposa do cantor.
Uma das situações mais engraçadas que Angela viveu com o pai foi em uma ocasião em que perdeu o seu celular. Para não receber uma “bronca”, ela disse que o aparelho tinha sido roubado. Dois dias depois do ocorrido, Ivo recebeu uma ligação e percebeu, pelo identificador de chamadas, que era o celular da filha, que havia sido “roubado”, na versão de Angela. “Ele atendeu, fazendo uma voz grave. Ele sempre fazia isso quando a intenção era assustar alguém, um namorado que ligasse lá em casa, por exemplo”, conta.
Eles acabaram combinando um local para se encontrarem e foram recuperar o celular. Ivo resolveu acompanhar a filha, achando que a ligação poderia ser de um ladrão. “Chegando lá, a pessoa que tinha encontrado o celular olhou para meu pai e disse: ‘Mas eu acho que conheço o senhor, da televisão. O senhor não é cantor?’. Meu pai, ainda querendo intimidar o rapaz, disparou: ‘Não, sou lutador. De luta livre!’. E nós três caímos na gargalhada”, relembra Angela, sorrindo.
Uma das histórias mais clássicas do vocalista é a do roubo de seu fusca. O Blindagem ensaiava na escola do baterista do grupo, Pato Romero, que ficava em frente à Universidade Tecnológica Federal do Paraná, (UTFR). Em um intervalo desses ensaios, o vocalista saiu para tomar um ar e percebeu que seu carro não estava mais estacionado em frente à escola. “Na verdade, para ele, foi muito triste. Durante alguns shows, quando eles tocavam ‘Dias Incertos’, o Ivo cantava ‘o meu fusca tá sumido’, mudando a letra de propósito”, relembra Claudia Falce, ex-presidente do Fã Clube da banda, chamado Loba da Estepe.
Uma particularidade, contada pelos amigos, é que o vocalista não gostava de apelidos, procurando sempre chamar as pessoas pelo nome. Outra “mania” de Ivo era contar piadas. “Ele contava a mesma piada umas 30 vezes e nós sempre ríamos”, afirma Claudia.
Parcerias, na música e na poesia, que resistem ao tempo
Ivo Rodrigues dividiu o seu talento, especialmente, com o poeta Paulo Leminski e com os seus companheiros do Blindagem. Músicas como “Oração de um Suicida” foram fruto da genialidade dos dois ícones da cultura paranaense.
Com a banda, o cantor se tornou conhecido nacionalmente, nos anos 1980. Canções como “Operário Padrão”, “Gaivota” e “Se eu Tivesse” fizeram parte da vida de milhares de pessoas em todo o país. “O relacionamento com todos da banda era muito tranquilo porque o Ivo era uma pessoa muito fácil de lidar. O que ele gostava mesmo era de tomar a sua cerveja, compor, cantar e se divertir”, conta Paulo Juk, baixista do Blindagem.
Um dos grandes momentos da história do grupo foi a gravação do DVD “Rock em Concerto”. As filmagens foram realizadas em um show no Teatro Guaíra ao lado da Orquestra Sinfônica do Paraná, em setembro de 2007. “Durante a primeira leitura que a Orquestra Sinfônica fez das músicas do Blindagem que seriam apresentadas no ‘Rock in Concerto’, eu e o Ivo estávamos sozinhos sentados na plateia. De repente, ele me disse ‘eu não sabia que a nossa música era tão bonita’, me olhando com os olhos cheios de lágrimas”, relembra Paulo Juk.
Todos os ingressos foram vendidos para essa apresentação no Teatro Guaíra. Foi a primeira vez que uma banda curitibana conseguiu tal feito. “Eu acho que eles não tinham noção de que poderiam lotar o Guaíra. Muita gente chorou, foi emocionante. O Ivo pediu várias vezes para acenderem as luzes para que ele pudesse ver o público”, relembra a bailarina Maria Helena Martins, fã da banda desde os anos 1980.
Os últimos dias
Ivo faleceu na noite de quinta-feira, 8 de abril de 2010, no Hospital de Clínicas de Curitiba. Debilitado por conta de um transplante de fígado realizado cerca de um ano antes, o cantor não resistiu às complicações decorrentes de um câncer na uretra, detectado apenas um mês antes do seu falecimento.
Grande parte dos amigos e da família tiveram o seu momento de despedida do vocalista, mesmo que, na ocasião, não tivessem consciência disso. “O último dia foi diferente de todos os outros. Ele não estava mais mal-humorado e também não parecia estar sentindo dores”, relembra Angela Rodrigues, emocionada.
Ela conta que o pai pediu para a esposa levar o seu violão para ele no Hospital. “Quando eu entrei ele estava sozinho no quarto. Escutei a sua voz cantando desde quando eu entrei no bloco em que ele ficava, lá no Hospital de Clínicas”, conta Angela. Um fato marcou muito esse momento para a DJ. “Quando eu abri a porta ele sorriu e falou: ‘É você, princesa?’. Quem mais está aí com você? Eu fiquei assustada porque não tinha ninguém comigo. Achei estranho, mas ele ficou insistindo que tinha mais alguém ali”, lembra.
Esses momentos diferentes da rotina que a família estava passando com o cantor no hospital também foram vivenciados pela sua esposa. “Falei com ele umas duas horas antes de ele morrer. Nesse dia ele fez mais um procedimento cirúrgico, não lembro bem com qual finalidade, talvez mais uma biópsia. Na volta do centro cirúrgico ele estava consciente e cantando uma de suas músicas, parecia feliz! Dizem que existe um momento antes da morte em que há uma consciência maior, quase uma euforia”, relembra Suka.
A esposa e os filhos se revezavam para cuidar de Ivo durante o período de internação. Ele nunca dormia sozinho no hospital. No dia do seu falecimento, por volta das 21h, ele insistiu para que a esposa fosse para casa descansar. Após conversar com a equipe médica e ser informada de que estava tudo bem, naquele momento, ela aceitou o pedido do marido. “No caminho ele me ligou perguntando por que eu estava demorando e dizendo que eu deveria levar a roupa dele para o trazer para casa. Eu disse que estava chegando em casa, mas que logo voltaria. Foram as nossas últimas palavras. Mais ou menos meia hora depois me ligaram do hospital pedindo para levar os documentos dele”, relembra Suka.
As experiências vivenciadas nesse período difícil não saem da memória de seus familiares mais próximos. “Hoje nós ficamos tentando achar um sentido, um significado para as coisas que ele disse. Eu tenho certeza absoluta de que ele sabia o que estava acontecendo”, diz Angela.
O último contato de Claudia com o ídolo foi pouco antes da sua morte. A fã mandou confeccionar uma camiseta com a caricatura do vocalista e os dizeres “Rock Star, Blindagem Vocal”, atendendo a um pedido de Ivo. “Antes de ele falecer eu fiz uma camiseta e pedi para o Paulo Juk entregar para ele. O Ivo estava internado e foi a última vez que falei com ele”, relembra.
Paulo Juk, companheiro de banda, tinha tomado a decisão de ir visitar o amigo pela última vez no hospital por não suportar mais vê-lo naquela situação. “Estive lá três dias antes de ele partir. Conversamos, demos boas gargalhadas e, na hora de eu ir embora, quando eu fechei a porta, ele me chamou e falou ‘sócio não acabe com a banda’. Eu ainda disse que estávamos esperando ele se recuperar. Ele apenas sorriu para mim. Fui embora e foi a última vez que o vi”, relembra emocionado.
Preservar a memória
Os artistas paranaenses raramente são reconhecidos e valorizados da forma que deveriam. Para tentar mudar esse cenário, o jornalista Luiz Felipe Fagundes está finalizando um livro que pretende recontar a história do Blindagem. “Enquanto buscamos formas de publicar, o processo de pesquisa continua. Ainda tem gente para conversar e muito material perdido por aí”, conta.
Poucos músicos viveram a sua arte com tanta intensidade quanto Ivo Rodrigues. A música, para ele, era o que fazia a sua vida ter sentido. “Ele sempre criticou os companheiros, seja da Chave ou do Blindagem, por terem outros trabalhos paralelos. Não por demérito a qualquer profissão, mas por acreditar nesse sonho de que eles deveriam viver de música, se dedicando exclusivamente a isso”, relembra Luiz.
No mundo atual, os artistas estão cada vez mais distantes do seu público. A paixão pela música, pela arte, não é uma qualidade facilmente encontrada no meio musical de hoje. Esse talvez seja o maior legado que Ivo Rodrigues tenha deixado para os fãs e para as novas gerações de artistas paranaenses. “Um músico com uma voz sem igual, um poeta, um grande artista. Alguém que viveu da sua arte, sem se corromper. Um ser humano ímpar, na sua integridade e quase pureza! Um menino grande, uma voz disfarçada de gente!”, finaliza Suka.
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