Caetano Veloso, um dos maiores nomes da MPB, esteve exilado em Londres de 1969 a 1972. Na capital inglesa, o músico produziu um de seus melhores álbuns, “Transa”, lançado em 1972. Chico Buarque, outro ícone de nossa música, viveu um auto-exílio em Roma, entre janeiro de 1969 e março de 1970. Ambos sempre tiveram uma postura contundente contra o regime militar, usando metáforas nas letras de suas canções para burlar os censores.
Atualmente, os dois artistas fazem parte da Associação Procure Saber, que ainda conta com Milton Nascimento, Gilberto Gil e Djavan, entre outros nomes importantes da nossa música. O grupo é coordenado por Paula Lavigne, ex-esposa de Caetano Veloso. A iniciativa defende que seja necessária a autorização do biografado para que um livro seja publicado.
Os artistas do Procure Saber se baseiam nos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro, de 2002. O artigo 20 determina que o uso da imagem de uma pessoa pode ser proibido ou gerar a “indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Já o artigo 21 afirma que “a vida privada da pessoa natural é inviolável”.
Ninguém entende nada
No começo deste mês, a Associação Procure Saber perdeu um aliado de peso. O cantor Roberto Carlos, que em 2007 conseguiu proibir que a biografia “Roberto Carlos em detalhes”, escrita pelo jornalista e historiador Paulo César de Araújo, fosse recolhida das lojas e tivesse a sua venda proibida, se retirou do grupo após receber críticas de Caetano Veloso.
Após ser anunciado como membro do grupo, Roberto foi mudando o tom de suas declarações. Em uma entrevista para o programa Fantástico, da Rede Globo, que foi ao ar no último dia 27 de outubro, ele afirmou ser a favor da publicação de biografias não autorizadas, mas com “conversas e ajustes” entre autores e biografados ou seus representantes.
Visões distintas
A questão é muito ampla e envolve vários pontos de vista. Em um biografia autorizada, nada que não esteja de acordo com o entrevistado será publicado. Isso abre a possibilidade, mais do que real na maioria dos casos, de que fatos sejam omitidos pelo entrevistado, preservando a sua imagem. Por outro lado, muitas biografias são escritas por autores que procuram criar polêmica, algo que chame a atenção para o seu trabalho, usando qualquer artifício disponível.
Um dos atores desse caso é a Associação nacional dos Editores de Livros (ANEL), que move no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando os dois artigos do Código Civil que impedem a publicação sem a anuência prévia dos biografados ou de seus herdeiros. Para a entidade, as normas atuais violam a liberdade de expressão e o direito à informação.
O advogado especialista na área de Direito da Comunicação, Ney Queiroz Azevedo, explica o que diz a lei brasileira. “A Constituição defende a liberdade de expressão e proíbe todo tipo de censura. Ela também defende a intimidade e a vida privada. É crime, também, a difamação, injúria e a calúnia, segundo o Código penal”, diz.
Sua opinião sobre o caso, levando em conta tudo o que foi discutido até agora, é baseada no que dizem as leis brasileiras. “Defendo a liberdade de expressão. Se, no entanto, o autor extrapolar limites, responderá por este abuso. A censura prévia é descabida e inconstitucional”, argumenta.
Ana Paula Mira é professora do curso de jornalismo da Universidade Positivo, de Curitiba, e sócia da Toda Letra, empresa que presta Consultoria em Língua Portuguesa. Segundo ela, um dos perigos da publicação autorizada é o controle de informação. “Acredito que a biografia não autorizada tem mais vantagens do que a autorizada. Isso porque é muito fácil esconder determinados aspectos quando o biografado ‘controla’ o que será escrito”, analisa.
Para a professora, a possibilidade de levantar fatos que não dependam da aprovação do entrevistado enriquece a publicação. “Há mais chance de honestidade porque não acho que o escritor de uma biografia não autorizada tenha como principal objetivo destruir a imagem do biografado”, diz.
Um dos pontos mais criticados pelo grupo Procure Saber é justamente esse, a publicação de fatos sem a comprovação dos biografados, como uma entrevista dada a um jornal ou uma revista publicados há muito tempo. “A questão defendida pelo pessoal da Procure Saber é baseada no Código Civil e no eventual uso comercial das obras. Mas e a revista, que fala de personalidades públicas sem pedir autorização e é vendida como um livro? Para mim, é o mesmo caso”, opina Ney.
No último dia 17, durante o 1º Festival Internacional de Biografias, realizado em Fortaleza no Ceará, foi organizado um manifesto, lido pelo jornalista e escritor Lira Neto. O documento, chamado de Carta de Fortaleza, foi assinado por biógrafos como Fernando Morais, Ruy Castro e Mario Magalhães e encaminhado aos congressistas e ministros do Superior Tribunal Federal. No texto, os participantes chamam de “instrumentos de censura” os artigos 20 e 21 do Código Civil. Eles também manifestam o seu apoio à Ação Direta de Inconstitucionalidade desses artigos, movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros, e ao projeto de lei 393/2011, do deputado Newton Lima.
Certamente o debate continuará. Teriam alguns dos nossos maiores artistas, que sofreram com a censura do governo militar brasileiro durante os anos de ditadura, se tornado censores? O assunto é controverso e envolve uma infinidade de opiniões, pontos de vista e ressalvas. Aguardemos os próximos capítulos.
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