Texto: Marcos Anubis
Fotos: Facebook Second Come/Arquivo pessoal

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Na transição entre as décadas de 1980/90, o Brasil viveu um período que revelou grandes bandas. Uma delas foi o Second Come, do Rio de Janeiro. Incorporando elementos do rock britânico da época, que usava e abusava das microfonias, Fábio Leopoldino (guitarra e vocal), Francisco Kraus (baixo), Dalton Vianna (bateria) e Fernando Kamache (guitarra) construíram uma história que fez com que a banda seja respeitada até hoje.

No dia 28 de agosto, o Second Come fez seu último show, encerrando uma trajetória marcada pela criatividade. “Não tocávamos desde 2017 e ficaríamos assim por um bom tempo. Esse show era para ser com o The Dead Suns (outro projeto de Kraus), mas como a banda já tinha outra apresentação marcada na mesma casa para o dia 4, recebemos esse convite. Eu resolvi fazer meu último show com o Second Come por achar que era preciso fechar esse ciclo, saca? Fizemos bons shows desde a volta, em 2015, mas estava na hora do fim. Não conseguia mais pensar em compor para o Second, então, era melhor parar enquanto estava divertido”, explica Kraus.

Com a certeza de que essa seria o último show do Second Come, o grupo procurou fazer com que o público visse uma apresentação marcante. “Foi ótimo! A certeza do fim fez com que fizéssemos um grande show! Resolvemos abrir com as canções novas, tocar logo depois algumas do ‘Super Kids’ e fechar o show tocando o ‘You’ na íntegra. Foi excelente! Quem foi pode celebrar e se divertir junto conosco!”, conta.

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Sincronicidade com a cena da época

O Second Come foi criado em 1989 e surgiu a partir da banda Eterno Grito, que tinha Fernando Newlands (vocal), Fábio Leopoldino (guitarra), Francisco Kraus (baixo) e Tuta (bateria). Desde o início, a sonoridade do Second absorvia claramente as influências das guitar bands da época, como o The Jesus and Mary Chain, mas tinha uma personalidade muito forte.

Kraus acredita que esse processo aconteceu de forma muito natural. “Nós tínhamos as mesmas influências das bandas da época, mas não fomos influenciados por elas. Sem querer soar pretensioso, acho que foi sincronicidade. Ouvíamos as mesmas coisas que algumas bandas da época também escutavam e acabamos construindo uma sonoridade similar. Fazíamos apenas o tipo de música que gostávamos e a única coisa com a qual sempre nos preocupavamos era a melodia. O Fabio era um senhor compositor de melodias pops, suaves, delicadas e colocadas por cima de uma base barulhenta, misturando tudo, sem se perder nada de ambas”, analisa.

As condições que levaram a essa similaridade de ideias impressionam ainda mais porque, naquele momento, o acesso às informações era muito difícil. “Deve ter sido a tal da sincronicidade (risos). Se estivéssemos do outro lado do hemisfério, faríamos a mesma coisa, só que estaríamos inseridos em uma ‘cena’. O acesso era difícil para as novidades, mas elas eram feitas das mesmas fontes e influências. E olha que nem havia a internet (risos)”, diz.

O som criativo e com muita personalidade fez com eu o  Second Come fosse a primeira banda a assinar com o Rock It!, selo criado pelo guitarrista da Legião Urbana, Dado Villa -Lobos, e pelo baixista da Plebe Rude, André X. “Foi excelente. Fomos a primeira banda do selo, a que fez a ‘ideia acontecer’. Por isso, também fomos os primeiros a ter problemas de grana e tal, mas foi ótimo!”, relembra.

O debut

Dessa união, nasceu o disco de estreia da banda. “You”, lançado em 1989 e gravado de forma muito rápida, é até hoje um dos melhores álbuns da história do rock brasileiro. “As bases foram gravadas em três ou quatro dias, quase ao vivo. Os coros de ‘Justify my love’, por exemplo, foram gravados no esquema ‘todos-na-sala-cantando-no-mesmo-microfone’, uma festa! O técnico de som não fazia a mínima ideia do som que queríamos e, por isso, a qualidade do ‘You’ não é a melhor do mundo. Faltou peso. A bateria tem um som ruim. O Savalla ainda tentou melhorar, mas a captação não foi boa e não tínhamos grana para gravar tudo de novo. Mas o disco acabou acontecendo e, por incrível que pareça, ainda acontece. Vai entender”, conta.

Mesmo com todos os problemas que envolveram a gravação do álbum, Kraus ressalta o tratamento que banda recebeu da Rock It!. “Usamos algumas fitas master de gravações da Legião Urbana, ’emprestadas’ pelo Dado do acervo da EMI. Gravamos em um estúdio que pertencia a amigos do Dado e do Andre X, na Barra. E ainda usamos o grande Carlos Savalla, do Paralamas do Sucesso, para tentar acertar umas cagadas de captação do som, em uma mixagem santa! Foi divertidíssimo! O Dado e o André são nota 1000!”, relembra.

Entre as histórias que cercam a gravação do álbum, Kraus conta que uma delas poderia ter consequências fatais. “No final de uma das sessões de gravação, o Fernando estava chegando em casa de carro, quando foi assaltado. Ele sofreu um sequestro relâmpago. Os caras levaram ele junto com o carro e, por sorte, largaram o Fernando a uns 10km longe de casa, a pé (não havia celulares em 92). E o pior é que a mãe dele estava na janela e viu tudo! Foi tenso”, relembra.

Três faixas do debut refletem muito bem o que era o som do Second Come: “Shower”, “I feel like I don’t know what I’m doing” e “Run, run”. Cada uma dessas canções tem uma história marcante. “Discordo de ‘The shower’. Ela foi uma das primeiras canções do Second Come e, na primeira gravação, ainda tinha uma sonoridade 80s. A versão no disco foi editada pelo Savalla para tentar salvar os erros de andamento e de execução do Kadu. A ‘I feel’ e ‘Run, run’ eram as canções mais ‘pra cima’ do disco. Lembro dos ajustes e arranjos que fiz nas canções. Até hoje me divirto com ambas”, revela.

A canção “I feel”, inclusive, gerou algumas críticas que, na época, deixaram a banda um pouco confusa. “Acho que ela é uma de nossas melhores músicas. Tinha um comentário engraçado sobre ela, feito pelo Marcel Plasse, que na época escrevia pra Folha, onde ele comparava a canção ao The Cure. Rimos muito, mas ele baseou o comentário na longa introdução, uma característica do Cure. Ainda acho engraçado, mas até acho que tem a ver (risos), diz.

O último registro

Na sequência, o grupo partiu para a gravação do que seria o último álbum. Em “Super Kids, Super Drugs, Super God and Strangers”, o grupo teve mais tranquilidade para conduzir todo o processo de gravação. “Musicalmente, o disco acrescentou muito. Tivemos tempo para ajustar as canções, gravar, produzir, mixar, etc. Era um disco mais elaborado, quase conceitual. Aprendemos mais a ‘domar’ um estúdio, pesquisar timbres, brincar mais com as possibilidades. É um disco que tem grandes canções e, outras, dispensáveis. É um bom disco”, analisa.

Porém, logo após o lançamento do disco, o Second Come encerrou as suas atividades. “A banda terminou pelo mesmo motivo que milhares de bandas acabaram: ‘divergências artísticas’ (risos). Algumas eram pessoais, mas resolvemos depois”, diz.

A morte de Fabio Leopoldino

O momento mais difícil para o Second Come, mesmo que banda estivesse inativa naquele momento, foi a morte do vocalista Fabio Leopoldino, em 2003, devido a um infarto fulminante. O acontecimento inesperado tambem foi um duro golpe para a música underground brasileira, mas, obviamente, o choque para os integrantes do Second Come foi ainda mais forte.

Para Kraus, que tinha uma ligação ainda mais pessoal com Fabio, enfrentar aquele momento não foi fácil, principalmente por causa de uma situação que se desenrolava há alguns anos. “O Fabio era meu amigo. Criamos o Second Come juntos, do conceito às músicas do primeiro disco. Ficamos afastados um bom tempo após o término da banda. Divergimos bastante sobre a forma e os porquês da coisa e deixamos isso ficar sobre o gostar da pessoa, da amizade”, conta.

Alguns meses antes do falecimento de Fabio, Kraus voltou a conversar com o velho amigo, por telefone. A ponte para esse contato foi construída por meio de um amigo em comum que os dois tinham desde a época da banda Eterno Grito. “Foi do caralho! Estávamos marcando um encontro na casa do Wagner, em Resende, no Rio de Janeiro, mas não deu tempo. Tomei uma baita porrada quando o Wagner me ligou para falar isso, chorei muito. Queria que tivesse havido tempo para ter não o músico e o artista com quem aprendi muito sobre como colocar uma bela melodia em uma canção, mas o amigo de volta”, conta.

O que era “ser independente”

Naquele momento da indústria musical em todo o mundo, ser uma banda independente, que fugia dos padrões, era muito diferente do que é hoje. “Fazer música independente no início dos anos 1990 não era simples. Da gravação à divulgação, tudo era caro, complicado e difícil. Ter acesso aos jornalistas era um trabalho hercúleo e não éramos de nenhum grupo ‘descolado’. Ninguém tinha grana, mas acabamos chegando em lugares e publicações que nem conseguiríamos imaginar quando começamos a banda. O esforço te faz valorizar a coisa. Como na primeira vez em que uma música tocava na rádio, a repercussão dos shows, a crítica positiva de jornalistas com os quais nunca tivemos contato, a eleição de melhores na Bizz, os festivais, a MTV, etc”, diz.

Estabelecendo um paralelo com o mundo atual das plataformas digitais e bandas que surgem e somem com a mesma velocidade, Kraus acredita que o processo ficou menos complicado. “Hoje, a independência é mais simples. Gravo um disco com qualidade similar ou superior ao ‘You’ dentro de casa, com custo quase zero. O cara divulga o material no Facebook, YouTube, Instagram ou Bandcamp e rapidamente alguém do outro lado do mundo te ouve, curte e repercute. Fácil. Tão fácil que, na mesma velocidade, se esquece tudo. Não entendo esses mecanismos (risos), mas acho que ninguém entendeu ao certo como a coisa funciona hoje. Quero apenas compor, gravar e fazer uns shows com os amigos do The Dead Suns. Se conseguirmos fazer mais shows, excelente!”, opina.

Os shows em Curitiba

O Second Come tocou algumas vezes em Curitiba, principalmente no 92 Graus. Os shows aconteceram no festival Bandas Independentes de Garagem, o B.I.G, nos anos de  . Essas apresentações, que coincidiram com o auge da cena musical curitibana naquele período, permanecem na memória da banda até hoje. “Cara, entre os melhores e mais divertidos shows que fizemos, com certeza alguns do 92 estão no meio. Era foda, mágico! O público era do caralho! As pessoas pulavam, dançavam, gritavam e se divertiam tanto quanto a gente tocando com eles. Ao lado do Roberto Cotrim, do Retrô, o J.R. fazia a diferença no underground. Era um cara que lutava por uma ideia, um sonhador. Gostaria de ter voltado a Curitiba com essa ‘encarnação’ do Second Come, mas já foi”, relembra.

Naquela época, Curitiba tinha uma cena musical riquíssima, mas não houve muito contato entre cariocas e curitibanos. “Conheci poucas bandas de Curitiba, entre elas, a Julie et Joe, a Relespública e o Pinheads, mas não mantive contato depois. Na real, fiquei alguns anos de molho depois do Second Come. Perto do fim da banda já estava de saco cheio do desgaste. Já não era divertido. Me afastei pra sobreviver”, conta.

Entre microfonias e melodias, o legado que o Second Come deixou nos dois discos que gravou é indiscutível. “Não tínhamos noção desse ‘legado’. Converso com várias pessoas sobre isso. Alguns músicos de bandas novas, que conheço e admiro, citam o Second Come como ‘influência’. Acho engraçado e fico envergonhado quando me falam isso. Ainda não tenho essa noção, mas do pouco que tenho, dá um baita orgulho sim. E dá orgulho ver que bandas como o Sky Down, o Early Morning Sky, o John Candy, o The Sorry Shop e o Oxy, por exemplo, tocam em frente o ideal de fazer bons sons, independentemente do mercado, das casas vazias e da falta de espaço. Os caras ainda se divertem e isso, para mim, ainda é o que basta!”, finaliza Fernando Kraus.