(Foto – Lex Kozlik, www.lexkozlik.com.br. Arte – Anderson Maschio)

 

Texto – Marcos Anubis – Revisão  e supervisão – Julie Fank

Fotos – Lex Kozlik – Direção de arte – Anderson Maschio

 

ZYB 404, 90.1 megahertz, Estação Primeira , uma frequência à frente do seu tempo. Se você se arrepiou ao ler essas simples palavras, seu coração e sua alma foram levados a meados da década de 1980. Certamente, no caminho em que seguimos, esse é um tempo que não voltará a existir. Nele, as bandas e artistas nacionais ou internacionais eram julgados pela qualidade de sua música, não pelo potencial comercial que ela tinha.

A rádio Estação Primeira esteve no ar de 1986 a 1995 e formou uma geração de ouvintes em Curitiba. Graças a ela, boa parte dos curitibanos que hoje estão na faixa dos 40 anos pôde desenvolver um senso crítico capaz de separar o joio do trigo no mundo musical.

A imortal Estação Primeira é a principal, mas não a única criação do empresário Helinho Pimentel. Atualmente, aos seus 58 anos, esse típico curitibano de sotaque carregado e fala firme cuida do maior e mais tradicional espaço para shows de Curitiba, o complexo do Parque das Pedreiras, que reúne a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame.

Totalmente reformulado, ele promete retomar a vinda dos grandes shows internacionais para a capital paranaense. Idealizador de projetos culturais que mudaram a cara de Curitiba nas últimas décadas, Helinho Pimentel abriu seu coração e suas memórias para o jornalista Marcos Anubis, contando fatos marcantes de uma vida inteira dedicada à música.

 

Onde você nasceu e como foi a sua infância e adolescência?

Eu nasci em Curitiba, no ano de 1956. Me criei aqui, vivendo parte do tempo na cidade de Curitiba e um período importantíssimo da minha vida na Estação Experimental do Trigo, onde meu pai era diretor. Esse local fica a uns 20 km de Curitiba, em direção à estrada antiga de Colombo. Ali, eu tive contato com a natureza de uma forma muito interessante, além da possibilidade de viver com os colonos que trabalhavam naquela fazenda.

Eles eram pessoas muito boas. Durante os cinco primeiros anos da minha vida, essa foi uma experiência muito intensa. Depois, meu pai foi para o Rio de Janeiro se tornar Secretário Nacional da Produção Agropecuária. Lá morei durante três anos. Nós voltamos para Curitiba quando houve o golpe de 1964. No mesmo ano, ainda guri, eu já comecei a ouvir muita música.

 

Como nasceu a sua paixão pela música e de que forma ela entrou na sua vida?

Ainda nessa época, os Beatles estavam surgindo e a Jovem Guarda estava acontecendo aqui no Brasil. Eu já era fanático por música e gostava de ouvir os sucessos no radinho de pilha e comprar os compactos. Em 1970, eu comecei a entender o que era o rock and roll e qual era a sua importância. No ano seguinte, aconteceu um fato de grande relevância na minha vida, que foi conhecer a chamada Casa Branca. Ela ficava na Rua Padre Anchieta nº 31 e tinha como conceito o desenvolvimento da cultura.

Nessa casa, moravam os integrantes da Chave, que foi o principal grupo de música que o Paraná teve, formado pelo Orlando Azevedo, Carlos Gaertner, Paulinho Teixeira e Ivo Rodrigues. Na Casa Branca, muita coisa aconteceu e mudou o meu olhar sobre aquele tempo importante que o mundo estava vivendo. O que aconteceu nos anos 1960, na Europa e nos Estados Unidos, foi bater aqui no Brasil no final dessa década.

E aquele polo de inteligência chamado Casa Branca conseguiu captar e influenciar pessoas de uma forma muito forte aqui na cidade de Curitiba. Outras pessoas também frequentavam a Casa Branca, como o Ike Loyola, que foi uma pessoa muito à frente do seu tempo e importante para muita gente em Curitiba, e também o Paulo Leminski e a Alice Ruiz. Então eu, com quinze anos de idade, tive a possibilidade de estar muito na casa do Paulo e da Alice e isso foi importantíssimo na formação do meu background cultural. Essa relação com a Chave, com o Leminski e com o Ike me fez olhar o mundo sob outro prisma.

 

De que forma a convivência com as pessoas que frequentavam a Casa Branca influenciou a sua vida?

Eu tinha 15, 16 anos e estava lendo Hermann Hesse, Aldous Huxley, Krishnamurti, “O despertar dos Mágicos”, que eram coisas que essas pessoas me mostravam. Por conta disso, eu saí de uma existência convencional para viver a vida de um outsider, olhando o mundo de uma maneira diferente da que eu via até então. O que me garantiu uma transição em meio a toda aquela efervescência dos anos 1970 foi o contato com essas pessoas, quando eu vi que o rock and roll não era apenas três acordes e uma música para se divertir.

Vi que rock era o grande meio, a possibilidade de uma transformação do pensamento do ser humano. Então o rock passou a ser uma coisa missionária na minha vida. E nesse período, quando havia muitas possibilidades de se perder no caminho, o convívio com esses amigos, além de uma relação muito intensa, de carinho e amor, com o meu pai e a minha mãe, me possibilitaram atravessar a década de 1970 de uma maneira muito legal.

 

Como era, ou ainda é a sua relação com dois monstros sagrados da MPB do porte de Caetano Veloso e Gilberto Gil?

Nos anos 1970, eu, o Leminski e a Alice acabamos nos tornando embaixadores – nós nos denominávamos assim – da cultura baiana em Curitiba. Criamos uma relação muito afetiva com o Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira e depois com a Cor do Som, que tinha uma influência baiana do Armandinho e do Ari. Toda vez que algum deles vinha para Curitiba, nós nos reuníamos na minha casa, na do Leminski, ou em restaurantes e festas.

Então, eu, com 16, 17 anos, tive a possibilidade de estar ao lado deles em várias noites e madrugadas na minha casa ou na do Paulo, tocando violão e ouvindo conversas de pessoas que tinham vindo do exílio, como o Gil e o Caetano.

Tive a chance de ouvir o Gil tocar “Expresso 2222”, ao meu lado, e de assistir ao Caetano apresentar as músicas do “Transa”. Esses dois álbuns, ao lado do “Acabou Chorare” dos Novos Baianos e do “Fruto Proibido” da Rita Lee são os grandes discos desse movimento pós-tropicalista no Brasil. E na época eu tive a oportunidade não só de ouvir as músicas no vinil, mas de presenciar essas pessoas tocando na minha casa.

Imagine ouvir o Caetano mostrar as músicas do recém-lançado “Transa” ali, ao vivo, com o Leminski e a Alice dando opiniões. É algo que me arrepia, aqui lembrando e falando com você, porque é uma coisa muito, muito especial.

 

A literatura, nessa época, teve uma influência muito forte na sua formação intelectual?

Nesse período de convivência com o Gil, Caetano, Leminski e o Orlando Azevedo, eu tive acesso à história da geração beat, a autores como William Burroughs, Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Imagine um guri de 17 anos lendo “On the Road” e ouvindo sobre todo esse pré-rock and roll que aqueceu as questões sociais e comportamentais do mundo. Ao mesmo tempo, eles me emprestavam livros como os do Fernando Pessoa, que o Orlando Azevedo me falou que era demais, e eu lia. E de repente eu estava lendo Krishnamurti, que tem uma importância muito grande na minha vida.

Eu acho que as pessoas deveriam, efetivamente, ler a obra inteira do Hermann Hesse, como “O Lobo da Estepe”, “Sidarta” e “O Jogo das Contas de Vidro”. Outro livro importantíssimo pra mim foi o “O Despertar dos Mágicos”. Às vezes as pessoas associam o rock and roll só a motocicletas, festas e loucura. Naquele momento de nossas vidas, nós estávamos lendo livros sobre religiões orientais, como “Viagem ao Oriente” do Hermann Hesse, com a cabeça totalmente diferente do que a gente vê, em determinados movimentos libertários atuais, que também são importantes.

Mas naquele momento dos anos 1970, ser libertário estava diretamente ligado com uma questão que eu considero até religiosa. Você estava buscando caminhos nas religiões orientais, o entendimento, uma alimentação natural ou a prática de yoga. Foi uma coisa muito especial que aconteceu para toda aquela geração. Alguns conseguiram entender e sobreviver a aquele momento, foi como passar por uma prova de fogo.

(Foto - Lex Kozlik, www.lexkozlik.com.br)

(Foto – Lex Kozlik, www.lexkozlik.com.br)

 

Na sua visão, as décadas de sessenta e setenta influenciam o mundo até hoje?

Eu acho que essas duas décadas serão vistas com outros olhos, daqui a alguns anos ou séculos, da mesma forma que hoje nós enxergamos a Renascença ou a cidade de Atenas na época de sua grande efervescência intelectual e filosófica. Os anos 1960/70 receberam um facho de luz intenso que hoje o mundo pouco entende. Nós ainda estamos muito colados naquela época, pois 30 ou 40 anos não são nada perto de um tempo universal.

Daqui a algum tempo, as pessoas poderão entender Bob Dylan ou Rolling Stones, compreender o mundo por um prisma diferente, onde antes nada se podia. Foi uma época em que se adquiriu a consciência sobre os direitos ambientais, civis, raciais e das mulheres. O grande legado desse período da humanidade em que eu tive o prazer de viver foi o da conquista das liberdades.

Então, se me perguntarem qual foi a minha maior e mais importante experiência na vida e qual é o legado que eu pretendo deixar, eu responderei que é ter contribuído um pouco na mudança do pensamento de uma humanidade tão bonita, mas ao mesmo tempo, às vezes tão preconceituosa, conservadora, e com distâncias sociais e culturais tão grandes.

E esses são os fatores que marcaram demais a minha infância e juventude: a convivência com meu pai e minha família, a relação com esses amigos importantíssimos na minha vida e a relação com a música na sua amplitude maior e mais especificamente com o rock and roll, que faz parte integral da minha vida.

 

Quais são as bandas e artistas que até hoje você ouve e respeita?

Gosto de muitas coisas, mas algumas bandas me acompanham e eu as admiro até hoje. Os Rolling Stones são a maior banda de rock and roll de todos os tempos, pela sua trajetória e pelos anos e anos de existência, sempre com uma pegada genial. Admiro muito o Keith Richards, que é “o cara” da guitarra. O Neil Young, que eu e meus filhos ouvimos direto, pois somos fãs desse canadense genial.

Adoro todo o som feito em São Francisco nos anos 1960, que marcou muito a minha vida, como Buffalo Springfield, Grateful Dead e Jefferson Airplane. Tenho uma grande admiração pelo Bob Dylan que é o grande poeta do rock, pelo Jimi Hendrix que deu uma nova leitura aos sons elétricos feitos na guitarra e pelo The Band. Esses são os artistas emblemáticos na minha vida, apesar de eu gostar de outras figuras como Lou Reed, David Bowie e Steppenwolf e muitos outros.

 

Você foi empresário de grandes nomes da música brasileira, como Pepeu Gomes, Baby Consuelo e A Cor do Som. Como surgiu essa oportunidade de trabalhar com música?

O trabalho com música veio de uma forma natural. Na primeira metade dos anos 1970, o que eu mais fiz na minha vida foi ouvir música. Eu acordava e ia tomar banho já escutando Grateful Dead, Lynyrd Skynyrd, Allman Brothers, Crosby Stills Nash & Young ou Rolling Stones. Essa era a minha trilha matinal e assim eu colocava o pé na estrada e ia viajar. Era a época do “on the road” e, graças a Deus, eu coloquei o meu pé na estrada. Aliás, eu acho que isso é uma coisa que muitas pessoas deveriam realmente fazer, colocar o pé na estrada durante um período de suas vidas.

Durante essa primeira metade da década de 1970, eu tive um contato muito forte com a música, lendo coisas, me informando e absorvendo. E em 1976 eu pensei: “Agora que eu já andei por esse mundo, vou começar a fazer alguma coisa voltada para o que eu realmente gosto”. Eu ainda era guri, tinha 19 anos de idade. Então eu batalhei para ter um programa no rádio que se chamava A Grande Alquimia.

Ele era em uma emissora AM, porque na época não existia FM, e ia ao ar todas as noites, de segunda a sexta, das 21h às 23h. Ali eu apresentava os grandes clássicos do rock and roll, como Dylan, Stones e Eric Clapton. Tudo o que eu passei a primeira metade da década de 1970 ouvindo em casa com os meus amigos, eu vi uma maneira de colocar no ar para que a cidade ouvisse, para que ela soubesse mais sobre o rock and roll.

Nesse programa eu não só tocava as músicas, mas falava sobre questões como a importância do rock and roll, não de uma forma chata, mas de uma maneira divertida. Então, eu iniciei o meu trabalho com música por meio desse programa da rádio Cruzeiro do Sul e, alguns anos depois eu pensei: “Vou aproveitar essa minha relação com a música e com rádio. Vamos fazer um show!”. O primeiro evento que eu fiz foi em 1979 no Círculo Militar e se chamou “Adeus 70”.

Participaram os grupos Tutti-Fruti, Blindagem e Bixo da Seda, que era uma súper banda, uma das principais que o Brasil já teve, formada pelos gaúchos Mimi, Marcão e Edinho. Era uma banda sensacional! O Tutti-Frutti era o grupo do Luis Sérgio Carlini, meu amicíssimo, meu irmão. Para mim, ele é o maior guitarrista de rock do Brasil, criador de solos maravilhosos como o de “Ovelha Negra” e parceiro da Rita Lee na criação dos principais discos da carreira dela.

Depois de ter feito esse show, eu resolvi me aventurar e fazer turnês pelo sul do Brasil. Comecei com A Cor do Som, Moraes Moreira, Alceu Valença e Gilberto Gil, que estavam estouradíssimos na época. Eu comprava pacotes de datas e fazia os shows no Paraná, Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Nesse início eu fui procurar parceiros para fazer esses eventos no Rio Grande do Sul e cheguei ao Dody e ao Cicão, por uma indicação que eu não me lembro de quem foi. Eles tinham uma empresa que se chama Dody & Cicão Eventos, especializada em eventos universitários.

Então eu conversei com eles por telefone, eles compraram umas datas e nós fizemos várias turnês juntos no interior do Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, no Gigantinho. Isso já tem mais de 30 anos, mas essa amizade e a relação profissional perdurou. A Dody & Cicão virou a DC Set Eventos e foi se transformando em uma grande empresa. Com isso, eles foram para São Paulo e hoje agenciam, há 20 anos, o Roberto Carlos.

Atualmente, ela é a maior produtora do Brasil, com mais tempo de vida e mais solidez. Eles se tornaram meus sócios no Lupaluna e no projeto do Parque das Pedreiras, aqui em Curitiba. São meus irmãos, grandes amigos. A minha trajetória na música começou assim. Como eu tinha feito as turnês de vários artistas, como A Cor do Som, Baby Consuelo & Pepeu Gomes, Moraes Moreira e Alceu Valença, no final de 1981, a Baby e o Pepeu me convidaram para ser empresário deles, no Rio de Janeiro.

Eles gostaram muito da turnê que nós fizemos aqui no sul do Brasil, e realmente ela era muito bem feita, então acabaram me convidando. Eu tinha 25 ou 26 anos na época e aceitei. Nessa época, o meu primeiro filho já tinha nascido e o segundo estava para nascer. Então eu fui para o Rio de Janeiro e, quando a Cor do Som soube que eu estava indo, eles também me convidaram para ser empresário deles.

Aí eu montei um escritório no Rio, na Niemeyer em frente ao Hotel Sheraton. Ela era uma casa genial que tinha até estúdio de ensaio e ali nós cuidávamos das carreiras da Baby, do Pepeu e da A Cor do Som. Durante três anos eu tive a oportunidade de realizar, vender e produzir eventos no Brasil inteiro, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Nós fazíamos 100 shows por ano com cada um desses artistas, viajávamos em todos os finais de semana pelo Brasil inteiro. Esse período da minha vida foi muito importante porque eu tive a possibilidade de conhecer pessoas muito profissionais.

Como eles eram artistas da Warner, tive uma relação muito forte com o André Midani, pois sem – pre me reunia com ele, o Liminha e o Guti Carvalho. E naquele período da minha vida isso foi uma grande escola. E ali começou esse processo de eu ter contato com os grandes produtores de música do Brasil e do exterior. Em 1984 eu voltei para Curitiba, pois nós tínhamos conseguido as concessões da Estação Primeira e de uma AM onde depois foi montada a Estação da Luz. E a partir daí aconteceu o meu regresso para Curitiba, onde eu me firmei e desenvolvi inúmeros projetos.

Amanhã, na sequência da entrevista,  Helinho Pimentel fala sobre a criação da mítica rádio Estação Primeira. Essa matéria foi escrita originalmente pelo jornalista Marcos Anubis para a Revista One. Ouça algumas músicas que faziam parte da programação da emissora.